por Bruno Cava
Uma das questões mais ardentes sobre o filme noir é o que faz um filme noir e, em consequência, quais filmes se incluem na classificação. Os historiadores não chegam a um consenso mínimo sobre como defini-lo. Contribui para isso o fato que, na época em que eram filmados, nas décadas de 1940 e 1950, eles simplesmente não eram chamados de filmes noir e os realizadores não se viam fazendo-os. A classificação não existia. Somente muitos anos depois, em uma construção retrospectiva da crítica especializada, é que um conjunto variável de filmes passou a ser catalogado dessa maneira. Cada autor que escreve sobre o noir agrupa os filmes em uma constelação de sua preferência, segundo critérios particulares que dificilmente se repetem.
É bem verdade que alguns filmes – digamos, Relíquia macabra, Fuga do passado ou Pacto de sangue – terminam entrando em praticamente todas as listas. Ainda assim, os motivos da inclusão costumam variar e não se sedimenta um cânone. Os teóricos do cinema estão em desacordo sobre se o filme noir constitui um gênero ou não. Como não há caracteres comuns pacíficos, o conjunto não é totalizável. Por isso, somente poderia ser chamado de gênero cinematográfico se for adotado sentido diferente do que, por exemplo, quando se fala que o faroeste ou o musical são gêneros. Como se o noir constituísse um paradoxal “gênero sui generis“. Se, por um lado, todos concordam que é difícil lidar teoricamente com ele; por outro lado, há uma percepção convergente que essa abertura lhe confere uma vitalidade inesgotável. Em suma, o noir presta-se mais a um campo problemático do cinema cuja abordagem nos exige primeiro que nele instalemos o olhar, do que a um objeto delimitável, resolvido, pronto para receber um olhar externo.
O paradoxo não fica apenas na definição, como ocorre também na gênese. Em sua formação histórica, o filme noir incorporou tanto o mais cerebral cinema expressionista alemão dos anos 1920 (Wiene, Wegener, Rippert, Murnau, Pabst, Fritz Lang), quanto a tradição muscular da ficção policial dura à americana dos anos 1930 (Spillane, James M. Cain, Raymond Chandler). Do primeiro, herdou a cinematografia recortada de sombras e geometrias góticas, com suas linhas quebradas, agulhadas e ogivais, assim como a profundidade psicanalítica, onírica e amnésica (Quando fala o coração, O homem dos olhos esbugalhados, Man in the dark). Do segundo, absorveu a atmosfera de violência iminente ou gratuita, e personagens que se revezam entre esgrima verbal e vias de fato, preparados para prolongar o cinismo dos diálogos em perseguições desabaladas ou na franca troca de murros (Relíquia Macabra, Macau, Até a vista, querida, À beira do abismo).
O filme noir mergulha a narrativa nos escuros de uma consciência desorientada ou maníaca ao mesmo tempo que erige um narrador em primeira pessoa, frequentemente em voz off, que imprime fluência aos acontecimentos. Simultaneamente lança mão do flashback para elucidar o presente (Cinzas que queimam, Um corpo que cai) quanto para embaralhá-lo (Pavor nos bastidores), ao multiplicar perspectivas subjetivas. Duas criaturas são recorrentes: o detetive particular (A morte num beijo) e a mulher fatal (Pacto de sangue, Crepúsculo dos deuses, O grande golpe). As duas também embutem o paradoxo. O investigador privado é paradoxalmente ativo e impotente. Ao agir, a sua ação tende a ser engolida por forças corrosivas e mais poderosas: o desejo noturno, a conspiração sombria, o maquinário subterrâneo da metrópole. Já a mulher fatal oscila entre dois extremos: poder máximo e suprema vítima. Ela tanto mobiliza ao redor de si o olhar e a ação, quanto mesmeriza a narrativa até o desfecho terrível ou melancólico, em que acaba vitimada pelas circunstâncias. Em um filme noir, os contornos são borrados (Gilda, Laura) e os signos transitam continuamente entre polos por vezes contraditórios e irreconciliáveis (A dama de Shangai). Desligado em seu funcionamento dos valores firmes e enredos admonitórios, em meio a um mundo corrupto, criminoso ou simplesmente desiludido, o desejo se torna ódio e vice-versa.
À primeira vista, nada parece mais distante de nossa conjuntura do que o noir. Hoje há uma fissura quase obsessiva em firmar o sentido em rótulos e categorias, sem margem a polivalências, ao que pejorativamente é chamado de “relativizações”. A ambiguidade é imediatamente interpretada como negativa, pois nela poderia ser contrabandeado todo um contexto estrutural de opressão e corrupção. O fenômeno se dá à esquerda e à direita do espectro político, num estranho estado-maior conjunto contra o caráter problemático da realidade e a possibilidade de nuançá-la. Normatiza-se não só o jeito de se vestir, as cores das bandeiras, mas também se homologam quais opiniões podem ser emitidas, quais são tabu. As falas devem ter lugar, mas o lugar também deve corresponder às falas, numa via de dupla disciplina enunciativa. Antes de formular ou analisar conteúdos programáticos, seria preciso ser de esquerda ou de direita, ser reconhecido enquanto pertencendo a uma ou outra, deixar isso sem limiar de dúvida, como se o ser precedesse a política. A flutuação e a deriva se tornaram perigosas, pois podem levar-nos a fazer o jogo de um demonizado “Outro Lado”, um perfeitamente circunscrito e caracterizado. Se, de um lado, menino é de azul e menina de rosa, do outro lado, manifestação tem de ser de vermelho. Cristalizam-se fórmulas e senhas, que operam na forma de índices obrigatórios de pertencimento e vigias do desencaminhamento dos discursos. Pode ser a palavra “golpe”, “fascismo”, “comunismo” ou “ideologia de gênero”, dependendo do grupo que a cultiva. A situação é tão saturada de narrativas engessadas que estamos a ponto de atingir o que o filósofo Willard Quine chamava de “ascese semântica”. O ponto em que não se disputam mais as coisas, mas a narrativa sobre as coisas. Congestionados de discurso pré-fabricado à disposição, desistimos de mudar o mundo: basta “ressignificá-lo”, outra palavra frequente em tempos rebaixados de pretensões.
Uma maneira de se ver o noir é entender o esfumaçamento dos contornos e essências como diminuição de sua força. Fortes seriam os filmes da Hollywood clássica, antes da Segunda Guerra, com seus roteiros dicotômicos de mocinhos e bandidos, do tipo Nós x Eles, e suas mensagens edificantes para reunir uma nação dividida nos princípios de uma moral superior. Outro modo de ver é entender o noir como uma tentativa de abarcar uma mutação irreversível. A consciência flutuante e turvada aí seria menos uma perda da forma, consistência ou divisor moral, do que um ganho de precisão, ao propiciar que o olhar seja instalado no interior de uma realidade ela mesma em errância. No momento em que o sonho americano se abala de seu próprio âmago e a comunidade unanimista sonhada pelos pais-fundadores da nação é corroída por dentro, o noir atesta a degradação realista de um meio. Na comunidade perdida, os comportamentos não podem mais ser organizados através de realismo ingênuo, metrificado pela moral puritana do “self made man”. Um ambiente degradado, uma cidade sórdida repleta de sexo e violência, passa a superar a consciência dos personagens de modo que sua ação virtuosa não pode mais mudá-la, ele nem mesmo acredita ser capaz de mudá-la. O caráter vago ou borrado do paradoxal realismo noir, a aparência amorfa de sua definição mesma como gênero, não significa meramente a rendição desolada desse cinema à desorientação existencial do pós-guerra. Mas, sim, o reencontro de outra estética para recomeçar o cinema americano em outros termos, instalado agora em essências morfológicas essencialmente flutuantes, numa errância que nos conduz à experimentação perceptiva. Em outras palavras, o noir não é inexato por acidente ou defeito, mas pela afirmação de uma nova substância que ele pesquisa. O anexato é um outro rigor. É o que a filosofia fenomenológica de Edmund Husserl conceituava como “essências anexatas”, em que o “anexato” está além do exato e do inexato, mais associado às deformações, transformações e eventos-afetos do que a uma essência bem delimitada e caracterizada.
Apesar da primeira impressão, não seria esta, no fundo, a nossa conjuntura? Ou talvez o seu avesso? As manifestações de junho de 2013 até hoje não encontraram um consenso entre os teóricos quanto a caracteres comuns e delimitações. Não conseguimos chegar a um acordo sequer sobre como chamá-las: seriam Jornadas, Levante, Protestos? Situação similar se encontram aqueles que, noutros países, analisam e escrevem sobre outras expressões do ciclo global das primaveras árabes, no Egito, Espanha, Ucrânia, Hong Kong etc. As cronologias são complexas e faltam categorias, métricas, lentes adequadas. Os sentidos passaram a vacilar e as essências se tornaram anexatas, embaralhando as análises de conjuntura numa desorientação geral. Impôs-se, com esses acontecimentos irreversíveis, a tarefa de instalar o olhar no interior de um objeto que se esfumou, tornando-se campo problemático. Contudo, a partir de 2014, no sentido contrário, organizou-se uma contrarrevolução semântica, à esquerda ou direita, tudo para reconduzir o solto nas velhas caixinhas. No Brasil, junho instaurou uma percepção fugidia, mas as instâncias político-partidárias reagiram procurando refixá-la nos velhos valores e recodificá-lo em categorias estremecidas. O sonho brasileiro da nação unida de classe média se converteu na desilusão da crise do desenvolvimentismo. Com a Lava Jato e as manifestações anticorrupção, o mundo encantado ganha-ganha do lulismo escancarou a sua face degradada de falso unanimismo, uma representatividade fraturada, uma descrença na própria atividade político-partidária. Mas sobreviveu como narrativa reativa, no rebaixamento implicado nas estratégias de ressignificação e nas batalhas das bandeiras. Daí o desprezo pela variação, a franja, a nuance, o limiar, que vem marcando os debates, obcecados em repudiar o impuro do real em nome de uma pureza restabelecida, seja ela uma Nova Esquerda, seja uma Nova Jerusalém.
A curiosa persistência do noir testemunha a sua eficácia como paradoxo. Seu estatuto de permanente controvérsia é um aspecto produtivo que nos instiga o olhar. Em vez de perguntar se a longa tradição desse cinema pode nos servir para pensar a atualidade, seria caso de perguntar se estamos à altura do estilo noir, se estamos à altura de junho. Assumir um ponto de vista por meio do que podemos olhar para nós próprios e o nosso mundo, como uma mônada. Do contrário, paralisada pela guerra de narrativas, a crítica se esgota e se restringe a denunciar o mau uso das instituições existentes, como se fosse possível resgatar o sonho perdido.
Bruno Cava é ensaísta e professor de cursos livres de Filosofia. Autor de vários livros, entre eles “A multidão foi ao deserto” (AnnaBlume, 2013) e “Enigma do disforme” (Mauad, 2018).