por José Eduardo Faria
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Há quase dez anos, a Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, publicou um importante estudo sobre a trajetória da Constituição brasileira nos seus primeiros 25 de vigência. Intitulado Resiliência Constitucional: compromisso maximizador, consensualismo político e desenvolvimento gradual[1], o trabalho foi preparado para ser apresentado num evento da Iniciativa Latino-americana em Direito e Democracia (ILADD) apoiado pela Ford Foundation.
O texto é uma análise dos mais variados aspectos da ambiciosa Constituição brasileira e seu denominador comum foi a ideia que ela demonstrou resiliência ao longo dessas duas décadas e meia. Na física, resiliência é a propriedade que possuem determinados materiais de acumular energia, quando submetidos a situações-limite, sem que ocorram rupturas ou mudanças permanentes. Por isso, à medida que acomodam estímulos e pressões, esses materiais preservam sua função e identidade em diferentes ambientes. Ao trazer esse conceito da física para o direito, o trabalho lembra que, apesar das duras críticas que sofreu na época de sua promulgação, em 1988, a Constituição teria não só conseguido manter estável o sistema político, mas, também, adaptar-se às necessidades políticas e econômicas do país, ao longo de distintos momentos de tensão institucional e de governos com ideologias conflitantes.
A ambição da Constituição decorre do fato de que ela abrigou diversos interesses, direitos e metas para o desenvolvimento da economia e o bem-estar da sociedade, o que foi chamado pelo coordenador do estudo de “compromisso maximizador”. Além de ambicioso, o que por si só já era um problema dadas desigualdades de uma sociedade complexa e heterogênea como a brasileira, o processo político de elaboração do texto foi fragmentário. Segundo o trabalho, ao estabelecer direitos, proteger interesses e distribuir poderes, a Constituição foi produto de um processo de conciliação entre as forças políticas que moldaram uma transição do autoritarismo militar para a democracia representativa. Todavia, ela não foi fruto de um pacto simétrico de mútuos interesses — pelo contrário, foi uma estratégia de estabilização de uma ordem assimétrica.
Detalhista bem como programática, simultaneamente, e com problemas de antinomia, por ser resultante desse pacto assimétrico, a Constituição não se limitou a definir as regras do jogo político e da institucionalidade jurídica. Ela também ampliou os direitos fundamentais e as prerrogativas do Ministério público. Transferiu para o sistema político e para o Judiciário a responsabilidade da concretização, ao longo do tempo, de suas metas e dos direitos em que elas se fundamentam. Um dos avanços do texto constitucional foi a criação do Sistema Único de Saúde, por meio de uma estrutura democrático-participativa e da autonomia dos entes federativos. Outro avanço está no âmbito das questões urbanas, que pela primeira vez foram abordadas por um texto constitucional. A Carta foi, ainda, inovadora na área da seguridade social, compreendendo o conjunto de ações estatais e da sociedade voltadas à implementação da previdência e da assistência social. Há vários outros exemplos nesse sentido.
Com relação aos seus pecados, a Constituição primou por um erro monumental ao definir o teto de 12% para a taxa de juros. Também constitucionalizou políticas públicas, que até então eram juridicamente tratadas pela legislação ordinária — entre outros motivos, porque elas não são duradouras, uma vez que mudam conforme o contexto socioeconômico e os partidos à frente das diferentes instâncias do Executivo. Impôs, ainda, determinadas políticas cuja implementação e concretização eram incompatíveis com o texto — em outras palavras, a conversão em realidade dessas políticas não poderia ocorrer sem a aprovação de emendas constitucionais, o que é no mínimo ilógico. Por fim, transferiu recursos para Estados e municípios sem transferir também encargos da União e concedeu aos governadores o poder de legislar sobre o ICMS, o que o converteu num imposto com 27 alíquotas.
Em suma: apesar de no âmbito de seus pontos falhos a Constituição conter medidas que não asseguravam condições de estabilidade e permanência no tratamento dispensado a determinadas matérias, bem ou mal ela teria revelado resiliência em seus primeiros 25 anos de vigência. E, se por um lado a coexistência do abstrato e genérico (sob a forma de normas programáticas) com o específico e o vinculante (sob a forma de regras) acarretou problemas de governabilidade, por outro o instituto da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) era o instrumento jurídico concebido para propiciar a adequação do texto da Carta à evolução da complexidade e da economia. Ao todo, desde a entrada em vigor da Constituição em outubro de 1988, já foram aprovadas 116 emendas constitucionais. Em termos quantitativos é um número excessivo. Por isso, a dúvida é saber se, em termos qualitativos, tantas PECs não podem acabar introduzindo no corpo da Constituição normas que contrariam seu espírito, desfigurando-a e, por consequência, desacreditando-a.
Em princípio todo texto constitucional deve estar aberto a uma revisão ou sujeito a receber emendas, seja porque a realidade para a qual ele foi concebido é suscetível a transformações estruturais, seja porque sem revisões a vontade política de uma geração se impõe sobre as gerações seguintes de modo descabido e ilegítimo. Evidentemente, se permanecer intocado ao longo do tempo, o texto constitucional é ultrapassado pelos fatos, tendendo assim à ineficácia. Contudo, se for alterado demais, e na mesma velocidade em que esses fatos vão ocorrendo, o texto constitucional tende a ser relativizado como marco normativo referencial.
Assim, uma revisão feita por meio de emendas é condição para que uma Constituição possa perdurar, cumprindo seu papel de definir as estruturas do regime político, compreendendo os direitos individuais, as liberdades públicas, as regras do jogo eleitoral e os marcos normativos em matéria de finanças públicas. Em outras palavras, ao permitir a combinação entre estabilidade e flexibilidade, a possibilidade de emendar um texto constitucional é condição necessária, ainda que não suficiente, para sua vocação de estabilização das instituições. É justamente por isso que as exigências e os procedimentos para a aprovação de uma PEC são muito mais complexos do que as regras vigentes para mudanças da legislação infraconstitucional, protegendo a Constituição de alterações fundadas por razões meramente conjunturais. Graças a essas exigências e procedimentos, estabelecendo quem pode apresentar uma PEC e definindo as regras sobre tramitação, deliberação e votação, é que um texto constitucional se preserva ao mesmo tempo em que se adapta a uma nova realidade, preservando sua força normativa.
Pelas normas em vigor, previstas no artigo 60 da Constituição, as PECs são discutidas e votadas na Câmara e no Senado em dois turnos. Para serem aprovadas, necessitam de três quintos dos respectivos integrantes das duas casas legislativas. Todavia, como a Constituição não definiu o prazo entre a primeira e a segunda votação, o lapso temporal ficou a cargo do regimento interno da Câmara e do Senado, que o tratam de modo diverso. No caso da Câmara, a previsão regimental é de um interstício de cinco sessões entre o primeiro e o segundo turno. No caso do Senado, há a obrigatoriedade de um intervalo pelo menos cinco dias úteis entre as duas votações.
Na prática, porém, quando seus interesses eleitoreiros e políticos estão em jogo, nem sempre senadores e deputados seguem o próprio regimento. O Senado, por exemplo, já realizou os dois turnos num único dia e com menos de uma hora de diferença entre eles. Na Câmara, o regimento também muitas vezes é desprezado, com as cinco sessões exigidas sendo realizadas em dois ou até mesmo em um único dia. Como esses expedientes desmoralizam as regras de tramitação das PECs, nas vezes em que foi acionado o Supremo Tribunal Federal saiu pela tangente. A corte já alegou que discussões sobre o desrespeito ao regimento interno das casas legislativas são questões interna corporis. Mais surpreendente, quando o Senado promoveu aas duas votações numa única noite, o Supremo se omitiu afirmando que, como a Constituição não previu o intervalo entre os dois turnos de votação de uma PEC, julgar se a casa seguiu ou descumpriu seu regimento não seria um assunto constitucional.
Esse argumento — afrontar o próprio regimento não significa descumprir a Constituição — talvez faça corar quem respeita a lógica. Entre os efeitos desse sofisma, o mais grave é o risco da banalização do desrespeito da Câmara e do Senado aos seus próprios regimentos. Até o início do atual governo, as artimanhas dos presidentes das duas casas legislativas eram mais exceção do que regra. A situação se inverteu no governo Bolsonaro, especialmente depois que se aliou ao Centrão. O exemplo mais ilustrativo foi a aprovação da PEC 1/22, que, abrindo caminho para o populismo fiscal, concedeu benefícios sociais no valor de R$ 41,2 bilhões a menos de três meses das eleições, o que é legalmente proibido. Articulada pelo Palácio do Planalto e pelo Centrão, ela foi concebida com o objetivo de reverter o desempenho do presidente nas pesquisas de opinião pública e blindá-lo de possíveis sanções previstas pela Lei Eleitoral; os responsáveis pela PEC usaram como pretexto a determinação de um estado de exceção.
Essas artimanhas dão a medida de como um governo inepto e um Legislativo conduzido por parlamentares inconsequentes desprezam a ordem constitucional. Na realidade, como estão voltadas a interesses imediatistas, a profusão de PECs aprovadas a toque de caixa desfiguram a Constituição. Não é por acaso que só na última década o número PECs cresceu 190%. Também não é por acaso que tramitam atualmente na Câmara e no Senado 1.334 PECs passíveis de aprovação — um número quase quatro vezes maior do que os 250 artigos da Carta. Por fim, não é por acaso que texto constitucional já foi emendado 131 vezes, desde sua entrada em vigor, tornou o Congresso brasileiro o que mais altera sua carta constitucional entre 11 democracias[2]. Só nos últimos três anos e oito meses, ou seja, durante o governo Bolsonaro, foram aprovadas 26 emendas.
Em termos substantivos, muitas dessas emendas quase nada têm a ver com o sentido etimológico da palavra. Emendar vem do latim emendere, o que significa retificar ou aprimorar. Portanto, as PECs formuladas mais por razões conjunturais e eleitorais do que por razões estruturais não são propriamente emendas. Na prática, não passam de uma sucessão de novos artigos de um texto constitucional que vai sendo reescrito no dia a dia pelos ocupantes dos dois Poderes. Como lembram Rogério Arantes e Cláudio Couto, ao analisar as PECs aprovadas nos primeiros oito anos de vigência da Constituição, apenas 31,2% delas diziam respeito às condições básicas de funcionamento das instituições. Os 68,8% restantes tratavam de políticas públicas, que vão mudando de governo para governo, e dos policy advocates[3]. Eles também apontam que, no resto do mundo, o emendamento está mais relacionado à atualização de regras do jogo e com a instituições de novos direitos do que com mudanças decorrentes de problemas relacionados à agenda dos governos. Exemplos desse tipo de PEC na atual legislatura do Congresso brasileiro foram a criação do piso salarial para enfermeiros, a desoneração de igrejas e aprovação de ajuda financeira para caminhoneiros e taxistas.
Assim, na medida em que a Constituição é passível de alterações a qualquer momento, o que permite a hipermutabilidade de suas normas, na prática ela deixa de cumprir seu papel de definir as estruturas do regime democrático, as regras do jogo político, as liberdades fundamentais e o funcionamento das instituições. Com isso, fica aberto o caminho para uma insegurança jurídica generalizada, para o colapso das finanças públicas e para a instabilidade econômica. O que, por consequência, faz com que o futuro do País seja imprevisível — além de tornar incerto até mesmo o passado, como dizia um antigo ministro da Fazenda.
Em que medida a Constituição responde hoje às aspirações da sociedade brasileira? Quais os desdobramentos das decisões de magistrados que sofismam e de governantes e parlamentares que manipulam a tramitação das PECs, desrespeitando acintosamente a Constituição que juraram cumprir? A verdade é que, se há quase dez anos era possível falar-se em resiliência constitucional, o que se tem agora é a deterioração do processo legislativo em decorrência do oportunismo de maiorias parlamentares fisiológicas eleitas por meio de práticas clientelistas.
A violação reiterada dos princípios da democracia leva à degradação própria Constituição, com a perda progressiva de sua autoridade normativa e de sua capacidade de estabilizar expectativas. Se na forma ela ainda sobrevive, por dentro está sendo corroída pela sucessão de emendas oportunistas. Por isso, a Constituição corre o risco de não valer mais como regra, em razão do desvirtuamento do processo legislativo por governantes e parlamentares que, para se reelegerem, dependem da prática sistemática de um populismo distributivo e da concessão e negociação de benefícios regulatórios.
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Notas:
[1] Ver Oscar Vilhena Viera et allii. Resiliência Constitucional: compromisso maximizador, consensualismo político e desenvolvimento gradual. In: Pesquisa Direito GV. São Paulo, 2013.
[2] Cf. jornal O Estado de S. Paulo, edições de 16 de dezembro de 2021 e de 15 de agosto de 2022.
[3] Essa é a maior proporção de todas as Constituições que o país já teve. A constitucionalização das políticas públicas tende a atrair para a Constituição o jogo político cotidiano e a política governamental, uma vez que seus dispositivos tendem a se sobrepor às questões relativas à arquitetura das instituições, afirmam.
Ver Cláudio Gonçalves Couto e Rogério Bastos Arantes. Constituição, governo e democracia no Brasil. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: volume 21, número 61, p. 41-62. Dos dois autores, ver também Mudando se vai ao longe: 30 anos de trans formação constitucional incessante. In: Jota, 20/10/2018.
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