A Crise: “Talvez o espaço para as antigas reformas já tenha acabado”, diz Pedro Fernando Nery

"Ao expor a nossa imensa desigualdade, do acesso à saúde às condições de moradia, a pandemia convida ao debate sobre tributação da renda. Na reforma tributária que estava em discussão na Câmara não se tratava diretamente de tributação sobre a renda ou patrimônio, e o governo também não parecia ter isso como prioridade."

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Há pautas que se impõem. É o caso do terremoto político do já histórico dia 24 de abril de 2020.
Demissão de Sérgio Moro, que atribui a possibilidade de uma série de graves crimes a Jair Bolsonaro, presidente da República, em rede nacional. Pronunciamento do Presidente, rebatendo, entre digressões e tergiversações, o ex-ministro da Justiça. Evidências apresentadas por Moro em horário nobre, novamente em rede nacional.

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Para analisar esse cenário em profundidade, preparamos uma série de entrevistas ao longo desta semana.

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Hoje, trazemos o olhar de Pedro Fernando Nery, consultor legislativo do Senado Federal e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público.

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Sérgio Moro não é mais ministro da Justiça. Os dias de Paulo Guedes como ministro no governo de Jair Bolsonaro também estão contados? O que a nova crise no governo significa para as reformas?

A crise pode implicar em dificuldades de governabilidade, que naturalmente prejudica qualquer agenda de reformas. Na última semana se avolumaram pedidos de impedimento, o Ministro Celso autorizou o inquérito contra o Presidente, que por sua vez jogou gasolina ao dar seguidas declarações polêmicas sobre o coronavírus.

Essa agenda antiga de reformas já chegou fraca na crise da covid-19. O governo não conseguiu sinalizar qual era sua prioridade, enviou três PECs complexas no fim de 2019 e sinalizava para apresentar as reformas administrativa e tributária, sempre “na semana que vem”. Não havia uma mensagem clara, e o Executivo mal conseguia enfrentar crises autoconstruídas como as das filas do Bolsa Família. Em ano de eleição municipal, não era promissor.

Então é uma agenda que já estava frágil e fica ainda mais difícil se houver uma crise de governabilidade, já que a pauta pode ser impopular ao contrariar interesses estabelecidos – como os servidores.

Talvez o espaço para essas antigas reformas já tenha acabado.

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(Reprodução)

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Por que é tão difícil fazer reformas no Brasil? Por que, paradoxalmente, havia tantos candidatos reformistas em 2018 (Alckmin, Marina, Meirelles, Amoêdo), e houve tanto apoio do mercado justamente a um candidato historicamente iliberal, populista e inimigo declarado das reformas?

É verdade que o Presidente não tinha essa convicção, mas é inegável que ele aceitou revê-las e delegou muito em 2019. Como resultado, foi aprovada uma reforma da Previdência expressiva, mais significativa que as propostas que ele se opunha enquanto deputado.

Contudo, me parece que o novo momento casa melhor com as convicções que o Presidente tinha antes. Quando digo que pode ter acabado o espaço dessa agenda de reformas pré-crise, é porque nem a convergência entre muitos economistas que havia antes parece existir. Há muita incerteza, porque o diagnóstico da economia é dependente da evolução da pandemia.

Então, apesar do Presidente sinalizar essa semana apoio irrestrito à agenda anterior do Ministro Guedes, a discussão sobre a revisão do teto, por exemplo, veio para ficar. A visão de que a epidemia não vai permitir o afrouxamento súbito do isolamento, e consequentemente vai impedir a recuperação econômica em “V” deve continuar ganhando força. Por esta visão, a incerteza quanto à recuperação não permitiria que o investimento fosse liderado pelo setor privado, até porque ele sairia muito machucado do período mais crítico do isolamento. Com juros e inflação mais baixos, haverá pedidos para que o teto seja revisto e a dívida aumente.

E esta é uma agenda mais fácil de tocar em um cenário de governabilidade difícil.

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As privatizações prometidas não vieram. Tampouco algumas das principais reformas. Eis que vieram uma pandemia e uma crise institucional inegável, grave, com a demissão de Moro e suas denúncias contra o presidente. Como fica a pauta econômica no meio do terremoto?

Além da discussão sobre o teto de gastos, acho que devemos caminhar para um debate sobre novas reformas. Novas no sentido de não estarem no centro do debate antes, embora os problemas não sejam exatamente novos. A crise expôs desafios já conhecidos, como a situação de desproteção de boa parte dos trabalhadores, que lotam as filas do auxílio emergencial.

Então ainda faz sentido discutir uma reforma tributária que mantenha uma das tributações mais pesadas do mundo sobre o emprego com carteira assinada? E deixar na gaveta do STF as modalidades mais fáceis de contratação da reforma trabalhista de 2017, sabotadas por militantes na Justiça do Trabalho?

Penso ainda que ao expor a nossa imensa desigualdade, do acesso à saúde às condições de moradia, a pandemia convida ao debate sobre tributação da renda. Na reforma tributária que estava em discussão na Câmara não se tratava diretamente de tributação sobre a renda ou patrimônio, e o governo também não parecia ter isso como prioridade.

Vejo que o próprio setor privado se mobilizou com medidas como o “Zap do Bem” em que os mais ricos doam para os mais pobres . Faz sentido que esses mais ricos do País tenham 95% de sua renda isenta de IR, enquanto 40% das crianças vivem abaixo da linha de pobreza? Precisamos de um “Sistema Tributário do Bem”. Então acho que a tributação dos mais ricos faz parte dessas novas reformas que temos que pautar, além da questão do mercado de trabalho.

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Para além disso, especialistas apontam ainda à possibilidade de uma série de crimes, comuns e de responsabilidade, que teriam sido cometidos por Bolsonaro; o próprio ex-ministro Sérgio Moro ofereceu testemunho e evidência de alguns deles em rede nacional. Se um processo de impeachment passar da especulação à realidade, qual seria o impacto a uma economia já em crise? E, de outro lado, quais seriam os impactos da permanência de um governo tão caótico?

Essa é uma questão central, porque essa reflexão remete àquele período recente de crises econômica e política que se retroalimentam. Possuindo dificuldades de governabilidade, é difícil fazer reformas impopulares. Temas como a revisão do teto de gastos ganhariam força. Eu arrisco outro. As primeiras pesquisas de popularidade mostram que o Presidente tem perdido seus apoiadores tradicionais, o que faz sentido: idosos com medo da doença, ou pessoas mais escolarizadas perplexas com suas declarações. Mas há um grupo de menor renda em que ele pode ganhar popularidade, por conta do auxílio emergencial.

O auxílio é muito expressivo: ele vai distribuir em 3 meses o que o Bolsa Família distribui em 4 anos. Em casos extremos, famílias que ganhavam R$ 41 no Bolsa vão ganhar R$ 1.200 no auxílio. Ele vai mandar muito dinheiro para o Nordeste, a região em que o Presidente tinha menos apoio. Diante de eventual crise política e de uma nova base de apoiadores surgindo, parece provável que o auxílio seja prorrogado ou mesmo que um novo Bolsa Família seja lançado para o pós-pandemia.

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Em teoria, é possível postular premissas de um liberalismo econômico com contornos políticos antiliberais. Isso é possível na prática, sobretudo num governo que governa no meio do caos?

Não acho que o governo seja tão sofisticado. Me parece apenas que a coalizão que venceu a eleição conseguiu reunir grupos diferentes descontentes com o período anterior por razões diferentes. Então tem a turma do liberalismo econômico, o pessoal ligado mais ao conservadorismo nos costumes, as famílias ligadas à segurança pública. Acho que não há uma ideologia coerente abarcando tudo. Tanto que na pandemia temos um aparente paradoxo: é a parcela mais liberal dessa direita que se mostra mais favorável às restrições de circulação impostas pelo Estado. Nunca vimos o Ministério da Economia se opondo à quarentena, mas ao contrário, desenhando medidas para que as pessoas possam ficar em casa.

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Pedro Fernando Nery (Reprodução: EBC)

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