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Há pautas que se impõem. É o caso do terremoto político do já histórico dia 24 de abril de 2020.
Demissão de Sérgio Moro, que atribui a possibilidade de uma série de graves crimes a Jair Bolsonaro, presidente da República, em rede nacional. Pronunciamento do Presidente, rebatendo, entre digressões e tergiversações, o ex-ministro da Justiça. Evidências apresentadas por Moro em horário nobre, novamente em rede nacional.
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Para analisar esse cenário em profundidade, preparamos uma série de entrevistas ao longo desta semana.
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Hoje, trazemos o olhar de Magno Karl, cientista político, diretor de políticas públicas do LIVRES, Doutor em Ciência Política pela Willy Brandt School of Public Policy.
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Diante de todas as novas evidências de atropelo do império da lei e tentativas de um aparelhamento institucional por parte do presidente da República — já para além de seu discurso e prática antipluralista, reacionária e personalista, em campanha e nos 15-16 meses de governo —, é possível ainda dizer que “as instituições estão funcionando”, e que a democracia brasileira não está em risco em meio à aventura autoritária, populista, de Jair Bolsonaro?
As instituições brasileiras estão passando por um teste de estresse, e têm tido seus limites testados diariamente. É certo que depois do desgaste nos últimos anos dos governos petistas e na gestão de Michel Temer, nós não tratamos aqui de um caso único e recente. A década que agora se encerra foi bastante tumultuada, mas o quadro é de inegável agravamento. Nós temos em Jair Bolsonaro um chefe do Poder Executivo que não apenas desconhece suas funções institucionais, mas que vê como afronta a descrição do artigo 2º da Constituição de 1988, quando versa sobre poderes independentes e harmônicos entre si.
O Presidente da República me parece paranoico e incapaz de colaborar com quem não esteja em seu círculo mais íntimo, com quem não possa controlar diretamente. Não há harmonia nem arranjo institucional possível quando o modo básico de operação de um dos poderes da União é o ataque aos outros poderes.
O Presidente da República parece ter descoberto apenas recentemente que o exercício do poder sob o império da lei é limitado. À atuação dos outros poderes da República, Bolsonaro reage com agressividade e arrogância, como se freios e contrapesos fossem criações de 2019, caprichos das lideranças do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, e não conquistas centenárias da democracia liberal. A democracia brasileira e as liberdades que ela nos garante são conquistas que devem ser tratadas diariamente, com cuidado. Quando a chefia de um dos poderes da república é ocupada por alguém sem apreço por elas, nosso alerta precisa ser redobrado.
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Uma série de institutos liberais, seus dirigentes e ex-dirigentes — além de quadros por eles formados ao longo de muitos anos —, todos embarcaram em peso no governo de Jair Bolsonaro, alguns já na campanha. Como o liberalismo brasileiro lidará com essa mancha daqui pra frente?
Desde a redemocratização, todos os governos, das mais diversas orientações ideológicas, contaram com a presença de liberais em quadros técnicos e em posições de gerência e gestão. Vejo neste fato a positiva intenção de colaborar com o país, seja nos projetos de abertura comercial, na elaboração do Plano Real, na formulação do Bolsa Família ou no aperfeiçoamento do funcionamento da máquina pública. Os liberais de perfil técnico merecem ser reconhecidos e aplaudidos pela disposição para se colocar na linha de frente, muitas vezes em governos de presidentes em quem não votaram e suportando custos relevantes em suas vidas pessoais, visando melhorar a organização do Estado brasileiro. Nossa oposição às muitas ideias iliberais de Bolsonaro não devem se converter em torcida para que o Brasil fracasse. Ao mesmo tempo, vejo também sinais da conhecida dificuldade de organização liberal para ação política. Trinta anos depois da abertura, os liberais permanecem como apêndices de governos cujas orientações ideológicas estiveram distantes do liberalismo. Militando por uma perspectiva ainda minoritária no debate público, liberais em governos correm o risco de serem parceiros esquecidos nos sucessos e glórias, mas sócios destacados nos fracassos.
No entanto é preciso destacar o suporte técnico e o apoio político: o trabalho pelo aperfeiçoamento das ações do Estado não pode ser comparado à campanha por um candidato que jamais foi amigo da liberdade, nem exibiu traços de simpatia pelas ideias liberais antes de conhecer o economista Paulo Guedes. Como deputado, Bolsonaro atuou como representante sindical de militares e agentes da segurança pública, manteve retratos de ditadores em seu gabinete e se posicionou em favor do silenciamento de vozes minoritárias na sociedade. Perguntado sobre a privatização da Vale do Rio Doce, o atual presidente declarou que FHC deveria ser fuzilado.
Em que pese sua retórica contra a classe política e bandidos, suas convicções morais eram também eram flexíveis. Bolsonaro discursou e votou contra a proibição do nepotismo, além de ter sido, em 1999, a única voz a se levantar contra a cassação do deputado Talvane Albuquerque, suplente acusado de mandar matar Ceci Cunha, deputada à época e mãe do senador Rodrigo Cunha (PSDB-AL).
O presidente jamais negou ser admirador de políticas autoritárias e populistas, e sua atuação como parlamentar por quase três décadas não permite que aqueles que o apoiaram politicamente usem a ignorância como justificativa. Mesmo assim, devemos manter as portas abertas para quem acreditou que a promessa da liberdade econômica poderia compensar o populismo e o autoritarismo.
Sou otimista quanto ao futuro das ideias liberais no Brasil e acredito que estamos vendo apenas seu renascimento. Entretanto, não podemos nos dispersar, nem sermos seduzidos pelo canto dos meio-liberais que tentam cooptar nosso trabalho e discurso. A sobrevivência do liberalismo como voz relevante no debate público brasileiro dependerá tanto daqueles que acumularam experiência em governos não-liberais, quanto daqueles que escolheram se manter firmes e enfrentar um custo político imenso, abrindo mão dos bônus eleitorais que a associação com o populismo bolsonarista trazia em 2018.
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À luz do pronunciamento um tanto quanto confuso do Presidente no já histórico 24 de abril e tudo que ele simboliza: o quanto de todo esse estilo caótico — por você bem chamado de estilo “freestyle” — do presidente é estratégia e o quanto é simplesmente bagunça mesmo?
No início da crise da COVID-19, antes que a doença de fato chegasse ao Brasil, cheguei a acreditar que o presidente tinha como estratégia a minimização dos potenciais danos da pandemia à sociedade e à economia brasileira. Talvez não quisesse causar pânico na população ou inibir o investimento de empresários, esperançoso de que a força do coronavírus pudesse ser moderada em seu caminho até aqui. Apesar de excessivamente destrambelhada, teríamos uma estratégia bem-intencionada por parte de Jair Bolsonaro.
No entanto, depois de 5 mil vítimas fatais, as falas do presidente não nos facultam mais qualquer interpretação benevolente. O que nos sobram são duas possibilidades: estratégia maléfica ou confusão mental. Isto é, o fomento deliberado do caos social ou a ignorância amplificada por ideias ruins.
No primeiro caso, o presidente estaria propagando ideias confusas para minar a autoridade dos prefeitos e governadores, diminuir a adesão ao isolamento horizontal e se blindar contra as consequências políticas da crise econômica que já nos atinge e deve continuar atingindo nos próximos anos. As declarações que minimizavam a gravidade da doença e conclamavam o povo a voltar à vida normal são partes dessa estratégia. E pouco importa a Bolsonaro se suas falas minam a autoridade do Ministro da Saúde e dos técnicos do próprio governo. Seu interesse é apenas seu fortalecimento político pessoal junto à sua base. Para o paranoico presidente, seu governo de fato é composto por ele e pelos seus filhos.
A segunda possibilidade é considerarmos que a bolha de isolamento, que envolve qualquer ocupante de posições de autoridade, tenha comprometido decisivamente as capacidades de julgamento de Jair Bolsonaro. Não há estratégia política que justifique a reação “e daí?” diante da confirmação de que há pelo menos cinco mil brasileiros mortos pela COVID-19. Também não há o que justifique um líder citar seu suposto histórico de atleta num pronunciamento durante período de extrema insegurança sanitária e econômica, nem explicação para comentários sobre o desligamento do aquecedor da piscina do Palácio do Planalto, em meio à maior crise do governo, quando um popular ministro da Justiça acaba de pedir demissão com acusações contra o presidente.
Mas nós não precisamos determinar se o presidente age por estratégia ou ignorância para saber que Jair Bolsonaro não reúne condições para ser presidente do Brasil. Bolsonaro é uma figura menor, sem tamanho para ter a faixa verde e amarela sobre os seus ombros, e indigno de representar os mais de 200 milhões de brasileiros em qualquer ambiente. O presidente diminui nossa estatura perante os outros países do mundo e nossa autoestima enquanto nação. No lugar de atenuar o sofrimento daqueles que perdem seus entes queridos, enquanto o país conta corpos que sequer consegue velar, Bolsonaro desrespeita o luto e aumenta a aflição de quem chora. Desejo sinceramente que ele passe o quanto antes à galeria de ex-presidentes para que possamos seguir adiante, num cenário com mais esperança para os sobreviventes da pandemia que Bolsonaro minimizou.
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Ainda no calor dos acontecimentos, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso deu a declaração que deu. Disse ser “a hora de falar”: “O presidente está cavando sua fossa. Que renuncie antes de ser renunciado. Poupe-nos . . . de [um] impeachment.” A manifestação de Fernando Henrique foi ecoada em fortíssimo editorial d’O Estado de S. Paulo. E agora? Impeachment? Renúncia? Permanência em meio ao caos? What’s next?
A situação política do presidente Jair Bolsonaro é muito difícil. Sua relação com o Parlamento jamais foi boa e suas vitórias no Congresso Nacional devem ser creditadas à benevolência e a disposição do Legislativo de reconhecer e aprovar algumas pautas importantes do que à capacidade de articulação política do governo. A bancada do governo é praticamente inexistente, Bolsonaro tenta sobreviver oferecendo cargos aos partidos do Centrão, e o inimigo nº1 de sua militância é o Presidente da Câmara Rodrigo Maia.
O mesmo pode ser dito sobre a relação do presidente com os ministros do Supremo Tribunal Federal. Desde as declarações de Eduardo Bolsonaro sobre um cabo e um soldado, passando pelo apoio presidencial a diversas manifestações contrárias à corte e pela constante atribuição de preferências partidárias a certos ministros, que a interlocução entre executivo e judiciário sofre. A suspensão da nomeação de Alexandre Ramagem ao cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal, determinada ontem pelo ministro Alexandre de Moraes, é mais um indicativo de que as relações entre o Executivo e o Judiciário devem se deteriorar ainda mais. E, para um país que precisa de estabilidade e investimentos, o clima de insegurança jurídica no Brasil é abismal.
Apesar disso, ainda não temos clima no Congresso Nacional ou na sociedade para impeachment. O Congresso demorou a se convencer da viabilidade do impedimento de Dilma Rousseff — os políticos agiram carregados pelo volume de pessoas nas ruas — e, se a situação caminhar mesmo para esse desfecho, parece que o mesmo acontecerá com Bolsonaro. O mais provável hoje é caminharmos para a radicalização do discurso político na sociedade, sob o comando de um governo fraco, que perde aliados a cada dia, e que sobrevive apoiado em parlamentares fisiológicos e grupos de pressão setoriais, trocando sustentação por emendas, cargos ou outros tipos de favorecimento.
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Por fim, o fantasma da chamada “polarização”. Existe um caminho possível para um centro democrático no Brasil? Ou, antes de se falar em um caminho, é preciso ainda que que se articule a própria ideia de um centro democrático sólido que ainda não existe?
Eu acredito que exista um caminho para o chamado centro democrático na política brasileira. Mas apesar das grandes lendas sobre movimentos que simplesmente “aconteceram”, pela força das ideias cujo momento chegou, o fato é que forças políticas não se aglutinam espontaneamente. As forças de esquerda e direita se fortalecem sobre as costas de seus militantes, enquanto o centro está certo de que vencerá o debate quando os dois lados caírem em si. Mas isso não acontecerá.
Se a sociedade brasileira anseia mesmo por um tempo pós-polarização, e se há agentes políticos que desejam ser parte dela, é preciso que haja organização e, principalmente, exposição de pautas. Nós não precisamos de ideias de centro, elas estão presentes há décadas no debate público nacional. Nós precisamos de políticos e intelectuais públicos que se organizem de forma objetiva, se orgulhem dos seus princípios e se disponham a defendê-los junto à sociedade.
A agenda de responsabilidade nos gastos públicos e distribuição de renda focalizada nos mais pobres, o que de melhor conseguimos produzir nos últimos 30 anos de políticas públicas em ambiente democrático, morreu órfã, sem uma força política relevante disposta a defendê-la, mesmo depois de ser bem-sucedida com FHC e Lula.
É possível que a ideia de aliar melhoras na gestão da máquina pública para fortalecer a capacidade do Estado de prover serviços essenciais aos cidadãos não renda muitos votos no Brasil em 2020, mas nossa democracia precisa de uma força política disposta a defendê-la. E por que não conseguimos apontar para um único partido que seja naturalmente identificado com essas bandeiras? Esse é o grande mistério desse capítulo da vida política brasileira, e talvez possa estar aí a explicação para a polarização destrutiva dos últimos anos e a chave para que possamos finalmente derrotá-la.
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