por Marcus Andre Melo
“Sem os partidos”, vaticinou Gilberto Amado, em Eleições e Representação (1931), “a representação proporcional é um aparelho morto, uma usina parada. Será uma construção aérea, um castelo oco erguido no ar”.
Amado foi um dos artífices da representação proporcional no país. Paradoxalmente, sua profecia – de disrepresentação política”, como a denominou – parece finalmente ter-se cumprido no contexto atual brasileiro.
Como parlamentar, Amado defendeu a representação proporcional de lista fechada. Era o inimigo público número um do localismo produzido pelo voto majoritário em distrito multinomial – que vigeu em grande parte de nossa história até então. Esse sistema produzia uma brutal assimetria pró–ocupante do cargo, pela sua lógica majoritária: o vencedor no “círculo” (circunscrição) eleitoral levava todas as cadeiras – na média de 3 a 5 nos estados maiores. As consequências eram bem conhecidas: a acachapante unanimidade das bancadas e assembleias.
O localismo sufocava a formação independente da opinião pública informada. Onde ela era forte, ao fim e ao cabo, ainda conseguia impor-se: Amado citava entusiasticamente o caso de Léon Blum, o líder socialista francês que derrotado em uma circunscrição “foi eleito meses depois em Narbonne onde nunca havia posto os pés, por ordem do partido” (ênfase do autor).
Na realidade o alvo maior de Amado e de outros reformadores era o abuso de poder, o iliberalismo visceral da ordem política, marcada pela hegemonia brutal daquele que ocupava o Estado quer em nível nacional, quer nas administrações regionais. A representação proporcional simbolizava a esperança. Com ela, Amado afirmou que “terão de desaparecer os vários PRs, os grupos oligárquicos locais, para haver somente grandes blocos nacionais”, que se amalgamariam em partidos políticos. Os “vários PRs” eram os partidos republicanos estaduais (autônomos pois inexistia um partido republicano nacional), os quais dominavam com mão de ferro a política estadual e serviam apenas para “disputar o privilégio de apoiar o governo central” na conhecida formulação de Nunes Leal.
O quadro era de disrepresentação porque, como denunciava Amado em discurso de 1925, “a única realidade política susceptível de ser representada é a que se encarna em torno dos estados (…) só se representa o que existe, e o que existe nos estados é o governo dos estados (…) E na união é o governo da união”.
Passados 90 anos desse seu discurso no Parlamento brasileiro, a percepção pública de que há estamento político voltado para seus próprios interesses e que a disputa política envolve fundamentalmente o controle do aparato de estado permanece. A malaise é geral.
Mas muita coisa mudou: a aprovação da representação proporcional (1932) e do princípio constitucional de partido político de caráter nacional (1946) (e consequente vedação ao registro de partidos estaduais) engendrou o multipartidarismo.
No entanto, o multipartidarismo recentemente degenerou em hiperfragmentação partidária disfuncional. A profecia de Amado está mais presente do que nunca: há cada vez mais partidos (29 partidos congressuais) mas esses importam cada vez menos: 74% do eleitorado afirmou não simpatizar com partido político algum, segundo o IBOPE em pesquisa recente.
Como analisou Afonso Arinos, no seu famoso texto de 1949, o multipartidarismo oxigenou rapidamente o sistema político da República Velha estabelecendo um modelo até então inédito: o presidencialismo de coalizão, magistralmente analisado pelo cientista político Sérgio Abranches 50 depois. Mas os ganhos líquidos tornaram-se negativos quando o número efetivo de partidos políticos – NEPP (métrica utilizada pelos analistas da área que leva em conta a dispersão das bancadas) atingiu o maior valor já registrado na história das democracias (quase dobrando entre 2002 (8.4) e 2014 (13,2). (A única exceção ocorreu na primeira eleição democrática da Rússia quando alcançou 15,2 mas na última década a média é 2). O escore brasileiro é quatro vezes maior que o do conjunto das democracias. Em 7 estados a fragmentação já atingiu o valor máximo: todos os deputados federais provêm de partidos distintos. Na Assembleia do Maranhão, o NEPP atingiu o escore inverossímil de 18,1. Três das mais importantes metrópoles brasileiras serão governados por partidos nanicos e supernanicos (PRB, PHS e PMN).
A hiperfragmentação ainda é mais contra-intuitiva considerando que a constituição de 1946 proibiu a criação de partidos estaduais. Na maioria dos países – Argentina, Índia, – há muitos partidos provinciais, regionais e locais. (Na Argentina, o Partido del Pueblo Neuquino teria sua contraparte brasileira em algo como Partido do Povo Mato-grossense que a legislação vedaria). Com 492 partidos com registro formal, o Reino Unido tem 12 partidos com representação parlamentar (19 contando as assembleias legislativas regionais onde a representação proporcional é adotada), mas um NEPP de 2,5.
O sistema partidário no resto do mundo tende a refletir clivagens étnicas, linguísticas, religiosas etc., que inexistem ou são pouco expressivas no nosso país. Elas explicam o NEPP elevado na Índia mas não no Brasil.
O que explicaria então, o caso, brasileiro? Dentre os fatores estruturais está a magnitude dos distritos eleitorais no país (que são os estados no Brasil). A média é 18, o que torna o país também um caso extremo nessa dimensão.
O impacto da magnitude sobre o NEPP é bem estabelecido na literatura e o fator decisivo: quanto mais elevada a magnitude, menor o quociente eleitoral e maior o NEPP. Há pouquíssimos países com quocientes eleitorais tão baixos: uma votação equivalente a 1,4% dos votos tem garantido representação em São Paulo.
A adoção de segundo turno nas eleições majoritárias também cumpre um papel de fragmentar ainda mais o sistema partidário. Até 1994, o descasamento das eleições majoritárias e legislativas também contribuía para a fragmentação. O segundo turno nas eleições majoritárias para governadores também joga água no moinho da fragmentação.
Há outros fatores contextuais que também importam. Os governos do PT patrocinaram ativamente a criação de partidos (PSD, PROS e o abortado PL) com o objetivo de reduzir sua dependência do PMDB. O ativismo judiciário também contribuiu: o STF, em 2006, julgou inconstitucional dispositivo da Lei 9.096, de 1995 (Lei dos partidos políticos) que a instituía a cláusula de barreira.
Finalmente – e absolutamente decisivo –, temos a legislação eleitoral, que além de permissiva em relação a coligações com partidos nanicos em eleições proporcionais, as incentiva em virtude da forma de contabilização de tempo de campanha na televisão e do acesso a fundo partidário. Essa estrutura perversa de incentivos e o papel ativo dos governos do PT são fatos novos; inexistiam na democracia 1946-1964, o que explica o NEPP moderado de 4,8 no período.
A disrepresentação resultante é mais uma vez produto da velha centralidade do controle de recursos públicos no jogo político. O que há de novo é a mudança tectônica no padrão de impunidade que sempre prevaleceu. Mas nem tudo é positivo: se aprovado o fundo partidário de $3 bi significará a perpetuação da captura de rendas públicas em nova roupagem.
Os reformadores de 30 venceram: os “vários PR” desapareceram. Mas surgiram os novos – ancorados não no localismo territorial mas no localismo 2.0: de base confessional, pessoal, corporativa, sindical, ou na parceria pura e simples no assalto ao erário.
O paradoxo da reforma política que se discute no Brasil é que a probabilidade de aprovar terapias institucionais para lidar com a nossa hiperfragmentação é inversamente proporcional à própria fragmentação: as chances de aprovação de reformas têm assim diminuído à medida que a fragmentação aumenta.
O dilema da reforma é que ela é terá que combater a fragmentação sem diminuir a responsabilização individual dos políticos permitida pela lista aberta. A política da reforma dos sistemas eleitorais nas democracias consolidadas tem girado fundamentalmente em torno de tarefa oposta: a de fortalecer a dimensão individual da responsabilização, anulada ou enfraquecida no modelo de partido de massa. A agenda de reformas no país vai aparentemente no sentido contrário: porque do ponto de vista normativo há claramente na cultura política recente sinais de que a responsabilização partidária incipiente também se esgotou.
Marcus Andre Melo é professor titular de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco e foi professor visitante nas universidades Yale e MIT.