por Gabriel Heller
As eleições no Rio de Janeiro (cidade e estado) sempre têm um papel a desempenhar na conjuntura nacional. Por ter sido nossa capital federal durante a maior parte do século passado e por ser sede do principal grupo de mídia, principal cartão postal e a segunda maior cidade do país, o Rio de Janeiro é o que chega do Brasil para boa parte dos brasileiros espalhados pelo seu território. Assim sendo, mostra-se válido tentar explicar o que significa o resultado do primeiro turno das eleições na cidade do Rio de Janeiro, tanto em termos locais quanto em termos nacionais.
A primeira – e mais óbvia – conclusão que se pode tirar desse primeiro turno é que ele teve um grande derrotado: Eduardo Paes. O atual Prefeito, bem a seu feitio, confiou exageradamente em seu próprio potencial ao escolher como candidato um correligionário com insuficiente apelo eleitoral para um cargo executivo, marcado por um polêmico caso de violência doméstica que foi desenterrado a partir de sua escolha para a sucessão municipal. O sucesso dos Jogos Olímpicos não se transformou em votos, e a população do Rio de Janeiro claramente não esqueceu de todos os transtornos por que passou para que os Jogos corressem sem maiores problemas. A tática constante do Prefeito bonachão de desdenhar das críticas e contemporizar as mazelas de seus concidadãos certamente deu sua contribuição para que a campanha de Pedro Paulo não decolasse.
Ao que tudo indica, Paes acreditou que poderia seguir os passos de Lula, como ele contumaz negador da realidade: rejeitou os fatos, minimizou suas próprias falhas, atacou aqueles que as demonstraram e confiou sobremaneira naquilo que disse ter feito no exercício do mandato. Desprovido de autocrítica, Paes não notou que jamais teve a popularidade do ex-Presidente e que suas expressivas votações poderiam ser mais bem explicadas por fatores como rejeição de seus rivais e apoios políticos do que por suas próprias qualidades.
Também parece ter passado batido por Paes que, por todos os lados, ele tem potencial de causar rejeição. Pode ser associado como um oportunista incoerente, por ser um tucano que perseguiu Lula na CPI dos Correios, migrou para o PMBD e se aliou ao PT assim que pôde. Também pode ser lembrado como um defensor da Presidente deposta que levou o país à bancarrota, como um aliado do rejeitado governador Sergio Cabral ou como um correligionário do controverso Temer – sem falar na via crucis que proporcionou ao carioca em nome de um questionável legado olímpico. Paes apostou e perdeu – e isso pode ter impacto sobre suas pretensões para 2018.
Nada obstante, a derrota pessoal de Paes e coletiva do PMDB fluminense é, por ora, tema de menor importância. Convém empreender um esforço de análise para se entender o que significa um segundo turno entre um candidato da nova pretensa esquerda moderada (Marcelo Freixo, do PSOL) e outro cuja base se encontra precipuamente no eleitorado evangélico (Marcelo Crivella, do PRB).
Embora de feições pouco ortodoxas, o que se vê nesse resultado é uma efetiva polarização: a esquerda secular e progressista enfrentará um candidato alavancado por eleitores conservadores e religiosos. Ambos têm um eleitorado cativo considerável, bastante identificável e ideologicamente afinado com o candidato. O desafio dos dois passa a ser, portanto, sair de sua zona de conforto e buscar os votos dos cidadãos estranhos a seus redutos.
A rejeição a Marcelo Crivella tende a não exercer mais influência no segundo turno do que já exerceu no primeiro, uma vez que boa parte dela é oriunda de eleitores fieis de Freixo e fundada justamente no fato de ser o candidato vinculado a igrejas evangélicas – Crivella é bispo licenciado na Igreja Universal do Reino de Deus. Não à toa o candidato do PRB era apontado como vencedor em todos os cenários de segundo turno apresentados nas pesquisas de intenção de voto.
Freixo, por outro lado, apesar de ser o candidato da esquerda, tem mais apelo junto à classe média progressista do Rio de Janeiro do que junto à considerável população de baixa renda da capital fluminense. Parece ser o candidato da elite carioca anti-status quo – ou imbuída de alguma espécie de culpa pela qualidade de vida de que desfruta, não do cidadão que pega três horas de ônibus e é ou acossado na região em que vive por traficantes e milicianos, ou amparado e doutrinado por instituições nominalmente religiosas. Some-se a isso a crescente rejeição que a atual conjuntura proporciona aos partidos e movimentos de esquerda, e as perspectivas não soam alvissareiras para o Psolista.
Faz-se importante lembrar que essa polarização moderna e sui generis ocorreu já nas eleições de 2014: os três candidatos mais votados para Deputado Federal no Estado do Rio de Janeiro foram Jair Bolsonaro, Clarissa Garotinho e Eduardo Cunha, políticos de linha marcadamente conservadora – para usar de um eufemismo; o quarto e o sétimo mais votado foram, respectivamente, Chico Alencar e Jean Wyllys, correligionários de Freixo e representantes da esquerda que tenta ocupar o lugar e os corações abandonados pelo PT nos últimos 14 anos.
Ainda não seria demais recordar que pautas de “costumes” são continuamente trazidas aos debates eleitorais federais: a candidata Dilma Rousseff sofreu forte pressão até declarar ser contra o aborto em 2010, e Marina Silva, rejeitada pelos que a vinculavam ao PT, pelos próprios petistas e por aqueles que a associavam a igrejas evangélicas, foi emparedada pelo influente pastor Silas Malafaia para “sair do muro”, sob ameaça de sofrer inclemente represália na corrida presidencial de 2014.
Como retratos fiéis do Brasil que soem ser, a cidade e o estado do Rio de Janeiro, entre 2004 e 2012, surfaram irresponsavelmente com o país na bonança das commodities (em especial do petróleo) e foram agraciados com recursos vultosos em função das Olimpíadas. Na linha de seus aliados no governo federal, os governos municipal e estadual contaram com um momento econômico ímpar para gastar desenfreadamente sem proporcionar melhorias efetivas e sustentáveis para os cidadãos carentes. Finda a farra fiscal e chegada a crise nas finanças e nos serviços públicos, são esses cidadãos necessitados que são chamados a escolher entre esses polos que o primeiro turno legou e que eles, eleitores, possivelmente não têm ideia do que efetivamente representam.
As possibilidades de atuação de um prefeito são marcadamente limitadas, seja por questões financeiras, seja por limitações de índole constitucional. Contudo, tratando-se de eleições, é bom ter em conta que, justamente pela condição de “retrato do Brasil”, o Rio de Janeiro e sua eleição municipal podem estar oferecendo uma visão realista do que espera o Brasil num futuro próximo.