por Rodrigo Silva
João Doria acrescentou um novo capítulo aos livros de história ao vencer a disputa da prefeitura mais importante da América Latina no primeiro turno, fato inédito nas disputas eleitorais paulistanas.
Seu sucesso, no entanto, é previsível. Doria é um homem bem-sucedido no país com a maior quantidade de empreendedores por metro quadrado no planeta. É também um outsider da política, num momento em que os eleitos sofrem com a maior taxa de rejeição já registrada desde a redemocratização. Não bastasse, se apresenta como um gestor num ano em que o populismo fiscal – que acaba de derrubar uma presidente da República – é encarado com desconfiança pela população. Junte a isso tudo a possibilidade de abrir mão do salário de prefeito numa cidade em que os políticos são vistos como meros agentes parasitários interessados em enriquecimento na vida pública e, bingo, uma vitória no primeiro turno não parece nada improvável.
Nem tudo são flores, é verdade. Disputando o cargo com três ex-prefeitos ligados ao PT, além de um deputado federal campeão de votos, Doria enfrentou desde o primeiro momento outro grande e curioso adversário, capaz de sabotá-lo e de entregar a disputa da cidade ao acaso – o velho PSDB. Nada incoerente: o empresário é uma combinação curiosa de sucesso eleitoral que desagrada petistas e tucanos. E pelos motivos certos. Além de combater duramente o PT, Doria expõe a face mais fragilizada do tucanato paulista. Encalacrado pelo medo de que o petismo fosse capaz de mobilizar sua turba, os velhos tucanos passaram os últimos anos acovardados, mesmo quando tinham ao seu lado multidões protestando contra um governo federal já moribundo, definhando em rejeição.
Nesse cenário, poucos retrataram tão bem essa omissão quanto o principal expoente do partido, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que, mais preocupado em desempenhar uma posição de isenção institucional como ex-presidente do que em combater os escândalos do governo em nome dos eleitores de seu partido, passou por servil ao petismo em virtude da insistência na defesa da honra do Planalto sempre que ela era posta em xeque pela opinião pública e acalmando as bases tucanas ao menor risco delas atuarem como oposição de verdade.
Omisso, o velho tucanismo chegou até aqui sem conseguir se apresentar como opção minimamente coerente ao petismo, admitindo que suas disputas, muito além de ideológicas, eram meramente eleitoreiras, pelo poder. Ao fim da história, o PSDB não passava de uma versão chique do PT, construído dos mesmos porões, sob medida para a classe média paulistana.
Não sem razão, Doria enfrentou dura oposição dentro de seu próprio partido – uma oposição como poucas vezes até mesmo seus adversários encararam (poucos dias antes do pleito, por exemplo, cerca de sessenta militantes tucanos chegaram a lançar um manifesto contra ele). Oficializado candidato à prefeitura graças ao apoio solitário de Geraldo Alckmin, Doria virou da noite para o dia a grande estrela de uma convenção esvaziada, boicotada pelas ausências de caciques como Fernando Henrique Cardoso, José Serra, José Aníbal e Alberto Goldman.
Goldman, aliás, há poucos dias definiu Doria como “uma desgraça para o PSDB”. Também pudera. O ex-governador é parte de um velho tucanismo ainda viúvo da queda do muro de Berlim – e é esse PSDB que sai derrotado nas urnas com a vitória de Doria, de braços dados com o PT.
Dos caciques que lhe negaram apoio, o próprio Goldman, filho de imigrantes poloneses marxistas, foi militante do Partido Comunista Brasileiro na juventude. Serra foi um dos fundadores do movimento Ação Popular. José Aníbal iniciou sua vida política na Organização Revolucionária Marxista Política Operária, ao lado de Dilma, e foi um dos fundadores do PT. O próprio FHC militou na extinta revista “Fundamentos“, do PCB. Todos insistem em dizer que nunca deixaram de ser “de esquerda”.
Doria é um peixe fora dessa água da esquerda tucana. Nascido no coração do mercado publicitário, longe dos discursos revolucionários dos anos sessenta, num lugar em que o lucro vale mais que fotografias ao lado de crianças desdentadas, o empresário promete entregar à iniciativa privada tudo que pode – do Pacaembu a Interlagos. Apresentando-se como uma espécie de Bloomberg à brasileira, o que é uma modernização do atual quadro de um partido que se envergonha por seus flertes com a privatização e o conservadorismo fiscal nos anos noventa – responsável, diga-se de passagem, por suas maiores vitórias eleitorais – o empresário encampa não apenas o antipetismo sem pudor (chama Lula de “sem vergonha”, “mentiroso” e “covarde”, e diz que irá lhe visitar na penitenciária de Curitiba), como indiretamente abraça também certo antitucanismo.
Sua vitória afasta, é verdade, o PT da prefeitura da décima cidade mais rica do mundo. Mas não se resume a isso – também condena uma ala majoritária de caciques do PSDB avessos à ideia que o partido abandone as mesmas bandeiras que impulsionam as políticas econômicas petistas. É a ascensão do lado B de um partido que já teve como figuras influentes economistas como Gustavo Franco, Elena Landau, Pedro Malan, Edmar Bacha, André Lara Resende e Persio Arida, jogados para o escanteio da história pelo establishment tucano para dar lugar a um sem fim de burocratas que não têm mais nada a acrescentar ao país.
É a derrota do velho PSDB.
Rodrigo Silva é editor do site Spotniks.