por Rodrigo de Lemos
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Aconteceu. Gabriel Boric, presidente esquerdista do Chile, condenou o ataque da Rússia à Ucrânia. O ex-presidente da França, o socialista François Hollande, também. Seguiram nessa linha o Partido Socialista e o Bloco de Esquerda em Portugal, o Partido Trabalhista britânico, o França Insubmissa (de Mélenchon), o Partido Socialista Obrero Español, o radical Die Linke e os social-democratas alemães. O filósofo neomarxista esloveno Slavoj Žižek comparou a ação de Putin a um estupro. O historiador Timothy Snyder, um dos mais eloquentes intelectuais críticos de Trump, defendeu o direito de uma Ucrânia soberana de associar-se com quem deseje no plano internacional. Também o fez o escritor e político ecologista Daniel Cohn-Bendit, herói midiático do maio de 68 francês.
No Brasil, foram abertamente críticos à agressão russa alguns nomes ligados à esquerda, como os de Luciana Genro, do ativista dos direitos humanos Marcos Rolim, do governador do Maranhão, Flávio Dino, do candidato à Presidência Ciro Gomes e do jornalista Leonardo Sakamoto. O PSOL lançou uma nota condenando a invasão, em consonância com seu apoio histórico à Euromaidan em 2014 (sem deixar de pedir, ao mesmo tempo, o recuo e mesmo a supressão da OTAN).
Outros nomes à esquerda, maiores ou menores, poderiam-se certamente adicionar a essa lista. Chama a atenção, porém, que uma faixa de partidos e de figuras políticas ou intelectuais à esquerda, das Américas à Europa, longe do seu tradicional irredentismo contra os impérios e a favor dos povos oprimidos, adotou, nessa ocasião, uma posição complacente com Putin ou uniu-se de forma explícita às extremas-direitas internacionais inspiradas ou financiadas diretamente pela cleptocracia ultra-reacionária comandada do Kremlin. Frequentemente, igualaram a invasão territorial de uma nação soberana à sua suposta “anexação” pela OTAN ou pela União Europeia, como se essa fosse involuntária ou impopular entre os próprios ucranianos.
A situação é singular. E certamente terá seu peso na História.
Alguns lembraram, com mais ou menos razão, a vergonhosa aliança entre partidos comunistas e Hitler nos 30. Ora, a situação histórica da colaboração entre a extrema-direita e uma certa esquerda nos anos 2020 é diferente da que ocorreu há quase cem anos. Na verdade, a aproximação atual se dá num contexto de Fim da História inexistente à época. Esse ultrapassa a própria esquerda. As emergências de democraturas fascizantes como a de Putin são seus sintomas evidentes.
Uma visita a Marx e à sua postura ante o colonialismo britânico na Índia permite tirar a medida da crise intelectual que nos acomete e que é sentida em especial por certas esquerdas contemporâneas erráticas e ao mesmo tempo dogmáticas, às voltas com o Fim da História.
A leitura de “A dominação britânica na Índia” (junho de 1853) ou “Os resultados futuros da dominação britânica na Índia” (julho de 1853), duas das grandes análises de Marx sobre os problemas nacional e colonial, pode apresentar uma chave para compreendermos os impasses do contemporâneo, por contraste. “Resultados futuros“: a questão central reside nesse adjetivo. Marx distinguia a ação predatória da Companhia Britânica das Índias Orientais pelo que ela era: espoliação, redução de artesãos e de agricultores do Indostão à miséria, desestruturação econômica e social. Esses eram os resultados presentes. Ainda assim, o centro do interesse de Marx era a visão de um eventual futuro. A sua era uma perspectiva otimista que nada tinha a ver com a simples expulsão do conquistador ocidental e com um retorno ao antigo mundo insular, fragmentado, impassível e estagnado do antigo Indostão, região que ele tinha por “desprovida de História”.
A entrada do Indostão na História surgia do próprio jugo colonial por uma cultura “superior”, como a britânica (longe de qualquer racismo da parte de Marx: superior do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas; Marx não cessa de louvar as qualidades humanas e intelectuais dos indianos).
O capitalismo criava essas condições. A introdução das tecnologias a vapor e do comércio livre ingleses desarranjava o modo de vida imóvel, patriarcal e indiferente ao mundo exterior da empresa têxtil doméstica, autocentrada e estereotipada, verdadeiro pilar do que Marx chama de “despotismo oriental”. As estradas de ferro e o telégrafo completavam o trabalho da força bélica empregada pelos ingleses contra os nativos para forjar a unidade política do território. Por eles, integrava-se a miríade de aldeias atomizadas que compunham o tecido político e social indiano, diluindo os particularismos e as idiossincrasias locais (que, em eterno combate intestino, facilitaram a conquista europeia). Formavam-se daí entidades políticas mais universais, menos encerradas em si mesmas e mais conectadas internacionalmente. As novas tecnologias de transporte, introduzidas pelos britânicos com vistas apenas a seus próprios fins na exploração do algodão, também poderiam facilitar a irrigação, combatendo as fomes que assolavam o sub-continente, e serviriam mesmo de motores à industrialização — processo que, por sua vez, contribuiria à dissolução das castas. A educação ocidental e a liberdade de imprensa lançavam as sementes de uma nova classe dirigente local, apta ao governo e munida da ciência europeia. Marx vislumbrava o momento em que “aquele país outrora fabuloso será anexado à sociedade ocidental”.
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Essas observações de Marx fazem eco à célebre análise do Manifesto do Partido Comunista, datado de apenas cinco anos antes, que distinguia na burguesia e no capital um poderoso nivelador. Esse dissolvia os laços familiares em relações monetárias, reduzia a mística das antigas profissões veneráveis em salariato, despedaçava as tradicionais submissões feudais em favor do puro interesse, transformava em quimeras os fervores do sagrado, os entusiasmos cavalheirescos, o sentimentalismo pequeno-burguês, as ficções da dignidade pessoal e das liberdades em prol do cru enriquecimento pessoal e da mera liberdade de comércio. “Tudo o que é sólido desmancha no ar” — na Europa pós-feudal ou na Índia sob os britânicos.
O otimismo com essa obra de desmanche total das nossas mais caras ficções pelo capitalismo tinha um garante fundamental: de novo, o futuro. O período burguês da História continha em si as virtualidades de um novo mundo. Permitia a universalidade das trocas, baseada na dependência mútua entre os homens; permitia também o domínio científico da natureza. Com isso, nivelava particularismos e lançava as bases para uma consciência de humanidade partilhada. Essas condições de um novo mundo, contudo, permaneceriam em germe enquanto um grande revolução social não legasse “o controle comum” sobre esse enorme mercado mundial e sobre essas formidáveis forças produtivas “ao povos mais avançados”. Dito de outro modo, no caso da Índia: os benefícios da introdução do capitalismo só seriam colhidos pelo conjunto dos indianos quando o proletariado sobrepujasse as classes dominantes na Inglaterra ou quando os próprios indianos se fortalecessem o suficiente para expulsar o invasor e apropriar-se do seu legado.
Bem entendido, os textos de Marx sobre a questão indiana não o transformam em ideólogo do imperialismo britânico. Revelam, isso sim, traços de uma herança intelectual iluminista — por ele superada, decerto — que, rejeitando por princípio o colonialismo, impedem-no de fazer equivaler o domínio ocidental sobre a Índia ao de outros impérios (árabes, túrquicos, mogol), em termos de uma perspectiva de emancipação coletiva.
Por profundas alterações, que vão desde o mundo do trabalho até o xadrez geopolítico, o desaparecimento das condições objetivas dessa emancipação coletiva — ao menos no modelo imaginado por certas teorias políticas dos séculos XIX e XX — marcou, em nossa época, o Fim da História. Quem diz Fim da História não diz fim dos acontecimentos, mas fim da possibilidade de que os acontecimentos realizem as possibilidades de liberdade e de igualdade que a consciência humana não tem dificuldade em conceber.
É com essa situação coletiva que todas as correntes políticas contemporâneas têm de se haver.
Algumas são elas mesmas ideologias que se alimentam do Fim da História. É o caso das extremas-direitas e de outras famílias políticas reacionárias, muitas delas apoiadas ou financiadas por Putin. Diante da ausência de promessa emancipatória, buscam rupturas políticas a partir de concepções restritas, pretéritas ou mesmo negadoras da liberdade e da igualdade (numa escala que vai do nacionalismo ao nacional-socialismo). Desejam recuar quanto à liberdade liberal globalizada em favor da comunidade, da religião ou da família tradicional. A própria guerra de Putin não deixa de apresentar um caráter regressivo, como se fosse uma anexação de território por uma potência do século XVII.
Outras têm que compor com esse Fim. São os progressismos de várias matizes. Alguns buscam um aprofundamento da liberdade liberal em uma liberdade liberalizante e igualitária, pela inclusão, nas sociedades democráticas, e em condições de crescente igualdade, de contingentes cada vez mais amplos de populações marginalizadas (como as minorias sexuais, étnicas e religiosas). Alguns, a partir de uma leitura renovada de Marx, ainda buscam no mundo do trabalho contemporâneo, precarizado em sociedades pós-industriais, um novo recomeço da História, por meio de novos sujeitos históricos gerados pelas contradições do capitalismo pós-industrial, com vistas a uma transformação revolucionária.
É também frente a esse Fim da História que se detém, perplexa, certa esquerda radical paleomarxista, ao menos nos seus ícones e nos seus símbolos. E que, frente à crise ucraniana, decide apoiar a guerra de Putin como uma guerra anti-imperialista. A situação tem do que surpreender os leitores das análises de Marx sobre a Índia: ainda que se negue a perspectiva liberal e que se insista numa interpretação imperialista da expansão da União Europeia no Leste Europeu, é de toda forma evidente que ela representa nessas regiões o aprofundamento do processo nivelador e universalista da Modernidade ocidental, por meio das políticas e das legislações progressistas em matéria de direitos humanos (e devidamente odiadas por Putin) que se opõem a formas tradicionais de opressão religiosa, sexual e étnica ainda prevalentes em sociedades como a ucraniana. Não menos, pelo estímulo ao comércio livre que reforça aquele senso de co-dependência humana enaltecido por Marx e necessário à consciência universalizante. Mesmo os desgastes econômicos gerados pela globalização liberal nas economias menos desenvolvidas poderiam ser, no limite, examinados desapiedadamente enquanto um desvelamento das contradições do sistema capitalista necessário à sua superação, como o próprio Marx o faz ao fim de seu texto de junho de 1853 sobre o colonialismo britânico na Índia. Seria uma análise sem dúvida moralmente delicada — mas menos chocante do que o apoio de alguns políticos e intelectuais autodeclarados marxistas a um regime arcaizante, herdeiro dos velhos despotismos orientais detestados por Marx, com sua mistura de autocracia, militarismo, xenofobia, costumes reacionários e tradicionalismo religioso. A influência de um teórico de extrema-direita tradicionalista como Alexandre Dugin junto a Putin já deveria assinalar o inusitado da situação. É como se Marx terminasse sua análise de 1853 saudoso dos tempos do Imperador Mogol em desfavor da Rainha Vitória.
Em tempos de Fim da História, o que assombra essa seção dogmática da esquerda paleomarxista é a consciência de que a construção do futuro comunista a partir das cinzas da sociedade capitalista não é uma possibilidade objetiva, ao menos por ora. Daí um desapreço — quando não desprezo, ou mesmo ódio — pelas democracias liberais ainda mais pronunciado do que aquele que as ironias de Marx deixavam perceber em seu tempo: de fato, as “democracias burguesas” não contêm em si e em germe nenhuma negação proletária que as supere. Tendo batido de frente com a porta fechada da História, essa família de paleomarxistas desfaz-se dos vestígios iluministas que Marx carrega e conserva apenas a crítica anti-colonial. Na falta de vislumbrarem uma síntese, comprazem-se na pura negação. Por isso, qualquer ideologia, por reacionária que se pretenda, cumpre esse papel negador; daí que já tenhamos visto representantes dessa paleoesquerda próximos a Ahmadinejad e à teocracia iraniana, ao terrorismo sunita, ao regime de ultra-exploração chinês ou, agora, à cleptocracia russa.
Essa posição de algumas paleoesquerdas é especialmente embaraçosa no Brasil de 2022. Trata-se de um ano eleitoral, em uma situação política urgente. A esquerda é favorita para derrotar uma Presidência cujo projeto se aparenta em mais de um ponto à ideologia putinista. Lula, à frente nas pesquisas, condenou genericamente “a guerra” e exaltou genericamente “a paz”. Prudência?: caso eleito, sua política externa deve redirecionar-se aos BRICS, e nada certifica que Putin, até lá, estará fora do poder. Ao mesmo tempo, o apoio explícito e militante de paleoesquerdas a Putin impõe à esquerda favorita o risco de ver a repetição de um “efeito Venezuela”, como o de em 2018, com óbvio proveito para a retórica de seus adversários e, quem sabe, algum prejuízo à sua performance eleitoral. É assim que o imprevisível do mundo encontra o imprevisível do Brasil. São tempos interessantes.
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