É possível a governança mundial democrática? Uma resposta a Dominique Rousseau

Uma governança global democrática apoiada em instituições supranacionais é não apenas inexequível, como também constitui um programa político cujo efeito prático será apenas reforçar teorias conspiratórias. Uma resposta de Benoni Belli a Dominique Rousseau.

por Benoni Belli

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O artigo de opinião do professor Dominique Rousseau publicado no Estado da Arte, em 12/04, defende “a urgência de uma governança mundial democrática”, como o seu título indica. Diante de assuntos que seriam globais – como o coronavírus, os fluxos migratórios, a mudança do clima, entre outros – seria ilusório imaginar, a seu ver, que cada povo, Estado ou continente possa enfrentá-los “do seu jeito” ou por conta própria. Caberia, portanto, abandonar o princípio da soberania, que teria se tornado perigoso no atual estágio da globalização, e substituí-lo pelo princípio da solidariedade para, desse modo, refundar a ordem política mundial.

Dominique Rousseau parte do pressuposto de que todos os povos formam “uma comunidade humana mundial multicultural”. O passo lógico, no entender dele, seria adotar a solidariedade como princípio de organização política. Isso permitira aos povos administrar seus bens comuns, por meio de instituições mundiais dotadas de supranacionalidade. O autor postula a existência do povo como um Ser Histórico Mundial, que não apaga as diferenças, mas reflete a consciência de que todos compartilham uma comunidade de destinos, como evidenciariam as múltiplas crises sociais, ambientais e sanitárias.

O raciocínio é ambicioso na sua prescrição: “Se a saúde agora é sentida como um bem comum global e não como um conceito meramente abstrato, torna-se possível desconectá-lo das instituições estatais nacionais e confiá-lo a uma instituição global. O mesmo ocorre com a questão do clima, da biodiversidade, dos fluxos migratórios, da sonegação de impostos, etc.” O princípio de solidariedade, ao tomar o lugar da soberania, deveria propiciar a participação dos cidadãos na construção dessa nova governança democrática mundial, a ser exercida por meio de instituições globais.

O artigo, contudo, é frustrante ao não enfrentar alguns dilemas sérios jogados para debaixo do tapete. O autor recorda o exemplo da formação da Comunidade do Aço e do Carvão na Europa como embrião de uma supranacionalidade, que seria motivada pela solidariedade. Esse tipo de arranjo, que depois desembocou no processo de integração europeu, respondeu antes à necessidade de coordenação para evitar que a competição desenfreada pudesse gerar um jogo de soma zero. Dominique Rousseau esquece que a solidariedade, ainda que possa ter tido papel, foi coadjuvante diante o interesse pragmático de evitar tensões e propiciar ambiente econômico saudável em um continente traumatizado pela guerra.

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Encontro dos Aliados em que se fixou o nome “Nações Unidas”, em 1942 (Arquivo ONU)

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A principal fragilidade do argumento reside não na identificação de diversos problemas que possuem caráter verdadeiramente global, como é o caso da atual pandemia. De fato, há inúmeros desafios que tocam toda a humanidade, desconhecem fronteiras nacionais e não serão efetivamente enfrentados sem algum grau de cooperação e coordenação entre os diversos países. Essa cooperação, ao contrário do que imagina Rousseau, não depende exclusivamente da solidariedade, por mais importante que ela seja, mas sobretudo da evidência de que soluções puramente nacionais tendem a ser inócuas ou apenas parciais, exigindo esforço conjunto dos diversos países.

Isso significa que o princípio de soberania deve ser abandonado, como parecer querer Dominique Rousseau? Ou que devemos transferir prerrogativas nacionais para instituições globais? Ao contrário do pode parecer à primeira vista, o salto que faz o autor, do reconhecimento de problemas globais à defesa da transferência do poder decisório para instituições globais, não tem nada de lógico, natural ou necessário. Na verdade, trata-se de um salto no escuro, além de constituir fórmula perfeita para uma reação nacionalista que apenas minaria o necessário reforço da cooperação internacional. Por isso, a resposta às duas perguntas deve ser não.

O autor cria uma falsa oposição entre soberania e solidariedade. Na verdade, soberania hoje não é mais tida como uma prerrogativa descolada do povo, apta a justificar uma razão de Estado que se basta a si própria, livre de quaisquer amarras e desprovida de controles. Tanto é assim que, nos âmbitos interno e internacional, exige-se que a soberania reflita os interesses e valores de um povo, que deve ser capaz de autodeterminar-se, conforme estabelece a Carta das Nações Unidas. Além disso, o exercício da soberania precisa levar em conta, como pressuposto de sua legitimidade, o respeito à Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo elenco de direitos civis e políticos e econômicos, sociais e culturais embutem o princípio de solidariedade.

A transferência das prerrogativas nacionais para instituições globais, por mais que o autor insista no caráter democrático da governança que daí adviria, não oferece garantia alguma de participação do povo nas decisões. Há um debate sério hoje na Europa sobre como aproximar as instituições europeias do povo, ou seja, como superar o que é visto como déficit democrático no processo de integração. Dominique Rousseau ignora esse debate e não oferece mais do que fórmulas prontas, sem enfrentar as dificuldades reais de se criar instituições supranacionais que mantenham o vínculo com o povo e seus interesses.

Não é à toa que o ideal de democracia direta de um outro Rousseau, não Dominique, mas Jean-Jacques, previa o exercício da soberania popular por um número limitado de cidadãos. O exercício da soberania popular por um grande número de pessoas em territórios vastos tornaria a mecânica muito mais complicada. A democracia representativa, de certa forma, busca minimizar o problema, conferindo aos representantes um mandato popular, mas não resolve completamente a questão. Daí a profusão de estudos da teoria política sobre as agruras do vínculo muitas vezes tênue entre governantes e governados.

Se no espaço de um Estado de contornos delimitados essa dificuldade não é desprezível, a constituição de organismos supranacionais tende a potencializar a questão do distanciamento entre representantes e representados. Um esforço que já é complexo em um espaço regional relativamente homogêneo, pode torna-se infinitamente mais difícil no âmbito global. O risco, portanto, seria o de alienar o poder de decisão para instâncias afastadas e autônomas, que não necessariamente refletiriam uma espécie de “vontade geral global”, mas que tenderiam a criar suas normas e perseguir seus próprios objetivos.

Uma governança global democrática apoiada em instituições supranacionais é não apenas inexequível, como também constitui um programa político cujo efeito prático será apenas reforçar as teorias conspiratórias daqueles que veem qualquer esforço mediado pelas instituições multilaterais como o embrião de uma ditadura de burocracias e elites cosmopolitas descoladas do povo. As teses de Dominique Rousseau acabam jogando água no moinho nesse tipo de visão, já que tende a confirmar sua narrativa de um espectro de governo mundial rondando a humanidade, o grande inimigo dos valores nacionais.

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Steve Bannon e Marine Le Pen (Philippe Huguen/AFP)

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Aliás, o exemplo do coronavírus evocado pelo autor se presta a distintas interpretações. É verdade que se trata de uma emergência global e que cientistas do mundo inteiro têm buscado colaborar em suas pesquisas, tanto para desenvolver uma vacina quanto para encontrar tratamento eficaz. No entanto, as respostas, até o momento, foram de reforço de medidas nacionais, inclusive no âmbito europeu, onde as diferenças, peculiaridades e urgências nacionais prevaleceram sobre a solidariedade e as políticas comuns em matéria de saúde.

Isso não significa dizer que não é preciso reforçar a solidariedade e criar mecanismos internacionais eficazes para lidar com problemas globais. Para isso, porém, não é necessário abrir mão da soberania nacional e do Estado-nação como espaço privilegiado do exercício democrático. Não é preciso reinventar a roda, mas reconhecer que os problemas globais requerem respostas locais e nacionais que, para serem eficazes, devem contar necessariamente com a cooperação internacional, a ser pilotada por meio de organismos multilaterais, de escopo regional ou global.

É preciso que se diga que organismos multilaterais não podem e não devem substituir governos nacionais e nem abolir a soberania dos respectivos Estados membros, mas servir de locus para a produção de consensos e para a negociação de soluções coordenadas. Em certos casos, a universalidade de determinados valores serve de gramática comum para as deliberações multilaterais. Esse é o caso dos dispositivos já mencionados da Declaração Universal, cujo desrespeito retira a legitimidade da interlocução. Mas é plenamente possível respeitar a gramática comum sem abolir as particularidades nacionais.

Assim como a democracia é o pior sistema político salvo todos os demais, para usar a frase de Churchill tantas vezes repetida, pode-se dizer que os organismos multilaterais, integrados pelos Estados, constituem o pior mecanismo para enfrentar os dilemas e desafios comuns da humanidade, salvo todos os demais. A alternativa para a falta de solidariedade ou para o nacionalismo chauvinista não é uma suposta governança global formada por instituições supranacionais para lidar com diversos assuntos, mas o fortalecimento do bom e velho multilateralismo, cujo objetivo não é a utopia de um mundo perfeito e harmônico, mas a introdução de algum grau de racionalidade em um mundo de outro modo completamente anômico.

Com efeito, cabe rememorar aquela conhecida frase do ex-Secretário-Geral das Nações Unidas, Dag Hammarskjöld, segundo a qual a organização não foi criada para levar-nos ao paraíso, mas para salvar a humanidade do inferno. Apesar das boas intenções de Dominique Rousseau, sua fé exagerada na consciência da humanidade comum o levou a imaginar um paraíso utópico solidário e democrático, num mundo sem soberania e povoado por instituições supranacionais. Esse poderia ser um sonho inócuo, mas sua mera descrição acaba contribuindo para a polarização artificial entre soberania e solidariedade, o que não contribui de modo algum para o objetivo de criar ambiente propício à busca urgente de soluções conjuntas e coordenadas aos problemas globais.

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Dag Hammarskjöld (Arquivo ONU)

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Ao imaginar um paraíso inalcançável e sob muitos aspectos de contornos para lá de questionáveis, o autor deixa de contribuir para o que realmente importa, que é evitar que a humanidade adentre o inferno da competição desenfreada, das ações nacionais descoordenadas, e do nacionalismo extremado que se alimenta da fabricação em escala industrial de bodes expiatórios. Se tivesse defendido o multilateralismo e a compatibilidade entre soberania nacional e solidariedade internacional, talvez o resultado fosse distinto. Como diria Fernando Pessoa: Adoramos a perfeição, porque a não podemos ter; repugná-la-íamos se a tivéssemos.

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Benoni Belli é diplomata de carreira e Senior Fellow do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI).

(Este artigo foi escrito a título pessoal, não refletindo posições oficiais do Ministério das Relações Exteriores.)

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