Entrevista com José Eduardo Faria: “Há uma mudança no conceito de prova, de processo e de delito”

Professor de Direito da USP e FGV analisa as tensões entre duas "arquiteturas jurídicas" em choque no Brasil da Lava Jato

O ex-presidente Lula foi condenado sem provas pelo TRF-4. O Supremo Tribunal Federal protege a classe política. Os procuradores da Lava Jata criaram seu próprio Direito. Essas são afirmações muito comuns, ouvidas nos mais diversos espectros da política partidária e da vida nacional. Elas mostram como as tensões da política e da justiça estão entrelaçadas no Brasil atual, apresentando aos que querem entender o país questões muito complexas. Em entrevista ao Estado da Arte, o professor José Eduardo Faria tentou esclarecer as atuais tensões jurídicas e políticas do país analisando os novos paradigmas globais do direito penal econômico, sua assimilação na vida jurídica brasileira, e também o modo como processos emblemáticos como o Mensalão e a Lava Jato impõem novos entendimentos e procedimentos nas relações entre as instituições políticas e as instituições da Justiça. 

Igualmente bem sucedido em suas carreiras como jornalista e como jurista, Faria iniciou sua vida profissional no Jornal da Tarde em 1967, tendo trabalhado também no Estado da São Paulo, onde atualmente é editorialista. Na mesma época, ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde seguiu carreira acadêmica, tornando-se em 1998 professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito. Professor visitante na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas desde 2004, se dedica particularmente à pesquisa de temas como a relação entre direito e economia; ensino jurídico no Brasil; poder, legitimidade, discurso político e crise de governabilidade, e é autor de vários livros, dentre eles O direito na economia globalizada (1997), e Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como instrumento de transformação social (1984). Para Faria, a atualização do direito econômico penal brasileiro, especialmente no que diz respeito à lavagem de dinheiro, à corrupção e ao crime organizado,  tem contribuído para “uma mudança no conceito de prova, uma mudança no conceito de processo e uma mudança no conceito do próprio delito.” Confira abaixo a íntegra da entrevista.

O senhor tem afirmado que há uma tensão entre visões distintas do direito em jogo nos processos de combate à corrupção no Brasil atualmente. Que tensão é essa?

José Eduardo Faria – Eu acredito que há aqui uma questão importante para verificarmos a mudança das gerações principalmente no campo do Direito Penal e no campo do Direito Econômico, mudança decorrente de uma atuação cada vez mais sofisticada do crime organizado e das organizações terroristas na Europa. Os países europeus que vinham estudando nos anos 1980 a possibilidade de formar uma União Europeia, saindo da mera zona econômica e constituindo uma comunidade integrada, perceberam que seria necessário dar um passo semelhante na área do Direito Penal, o qual deveria ser globalizado. Esse processo foi pensado a partir da premissa de que ao invés de reprimir o crime organizado nas suas consequências seria melhor asfixiá-lo financeiramente – o mesmo valeu para o terrorismo.

Com esse propósito, em 1989 foi constituído em Paris um grupo chamado GAFI [Grupo de Ação Financeira, Financial Action Task Force em inglês] para operar na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e que formará uma minuta de uma legislação penal econômica para todos os países membros da OCDE. A ideia seria trabalhar com o princípio da globalização econômica, o que exigiria, com o tempo, também a globalização de partes do Direito – não de todo ele, evidentemente.

E como isso repercutiu no Brasil?

José Eduardo Faria – A minuta foi adotada pelos países membros da OCDE e, a partir daí, alguns países que não pertencem à OCDE, como é o caso do Brasil, foram convidados a adotar essa legislação em troca de uma série de vantagens, como acesso a mercados, novas tecnologias, linhas de financiamento com juros favorecidos…

Quando se deu a entrada do Brasil? 

José Eduardo Faria – Essas negociações se deram entre 1998 e 2000, e o país passa a ser membro go GAFI em 2000. Nesse momento, o Brasil começa a trocar sua arquitetura jurídica no que diz respeito ao direito econômico penal. É a partir dessa mudança que se torna possível identificar nas novas gerações de graduandos e pós-graduandos de nossas faculdades de Direito – e com o tempo, esses novos quadros serão juízes, promotores e advogados – a consciência de que quem quisesse se especializar nessa área do Direito teria de estudar fora. E isso por uma razão muito simples: não houve uma renovação do pensamento penal brasileiro nas universidades, que ficaram encasteladas e presas a doutrinas superadas, com um viés que nós podemos chamar de romano-germânico – bastante litúrgico, cheio de entraves burocráticos, cheio de sistemas de prazos e recursos que permitiam aos advogados discutir não grandes questões factuais mas sim teses, pleitear vícios, aguardar que tais pleitos fossem julgados lentamente e, assim, obter a prescrição dos crimes dos seus clientes.

E o que mudou com as gerações mais recentes que buscaram no exterior essa formação na área?   

José Eduardo Faria – Esses alunos vão estudar fundamentalmente em universidades americanas e inglesas (e italianas, em menor escala). O resultado dessa formação foi uma renovação da mentalidade na Justiça brasileira, especialmente na primeira instância da Justiça Federal e no Ministério Público de um modo geral. Foi essa renovação que, a meu ver, ocasionou os conflitos geracionais, em particular nessa esfera do direito penal a que eu venho me referindo.

A partir de que momento podemos enxergar esse conflito? Com a Lava Jato?

José Eduardo Faria – Antes, com o julgamento do Mensalão. Nesse julgamento, os personagens envolvidos contrataram os grandes criminalistas brasileiros, inclusive com a articulação do falecido ex-Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Esse pessoal sofreu uma derrota, especialmente nos votos do relator, Joaquim Barbosa, que já tinha uma visão mais americana, mais voltada a esse direito penal que vai direto ao foco, que trabalha com a identificação de atos que fogem a determinados padrões. Em geral, essa nova visão do direito penal é, de fato, sustentada por pessoas e equipes que entendem de contabilidade, que usam bem a tecnologia, que têm formação interdisciplinar, que sabem identificar procedimentos de ocultação de propriedades e de patrimônio. É uma turma capaz de descobrir os rastros deixados por documentos em vastas cadeias utilizadas para ocultar patrimônio ou dinheiro sujo.

O que se procurou mostrar é que, independente da inexistência de um título de propriedade ou do chamado “ato de ofício”, o que se tem é o desmonte de uma cadeia de documentos que identificam o crime e que justificam a condenação.

Isso parece ter se traduzido também no trabalho integrado e internacional de organismos como polícias, procuradores e órgãos supranacionais.

José Eduardo Faria – Sim, de certo modo esse processo gerou, por exemplo, a ENCCLA (Estratégia Nacional para o Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro), criada em 2003. Mas o que quero mostrar é que o que está acontecendo hoje é consequência de algo que começou a ser percebido já a partir do processo do Mensalão e cujas origens remontam à década de 1980. É essa a história do conflito geracional e das visões do Direito que nós estamos vendo hoje, e são poucas as faculdades de Direito hoje com professores preocupados em mostrar aos alunos esse confronto entre duas arquiteturas jurídicas – uma romano-germância, tradicional; outra de corte anglo-saxão, atrelada aos mecanismos de controle de uma economia globalizada.

É esse conflito de visões do Direito que sustenta a argumentação daqueles que dizem, no caso da recente condenação do ex-presidente Lula por corrupção e lavagem de dinheiro, que “não há provas”?

José Eduardo Faria – Quando alguém diz que não há provas, quer isto dizer que não haveria provas do ponto de vista de uma leitura germano-românica do direito penal econômico. O que se procurou mostrar, tanto no caso do juiz Sérgio Moro quanto no caso dos desembargadores da 8a turma do TRF-4, é que, independente da inexistência de um título de propriedade ou do chamado “ato de ofício”, o que se tem é o desmonte de uma cadeia de documentos que identificam o crime e que justificam a condenação. Ou seja, é uma mudança no conceito de prova, uma mudança no conceito de processo e uma mudança no conceito do próprio delito. No Brasil, isso é novo. Mas não, frise-se, a arquitetura jurídica que essa novidade expressa: a mudança no paradigma do direito penal econômico já tem aproximadamente 30 anos. O que é novo, repito, é a ascensão desse modelo no Brasil.

Há um ponto de convergência de todas as forças políticas envolvidas nos escândalos de corrupção no ataque ao seu inimigo comum, a Justiça.

Que existam essas visões divergentes e esse conflito de gerações que o senhor identifica não é algo que possa justificar a alegação daqueles que se sentem prejudicados em seu direito de defesa? O próprio ex-presidente Lula alegou cerceamento desse direito por variadas razões… 

José Eduardo Faria – Acredito que não. Eu sou um sociólogo do Direito, estou acompanhando tudo isso a partir da dinâmica desse processo e não vejo razões para isso. Há um dado nesta pergunta que merece ser visto com mais atenção com respeito à defesa. Tome-se o caso da Lava Jato. Muitos dos advogados de empreiteiras envolvidas no processo foram meus alunos, alguns foram meus orientandos, ex-alunos que mantiveram contato comigo – como seu ex-professor, seu ex-orientador de mestrado ou doutorado. Por outro lado, a minha geração é a dos velhos advogados. Uma coisa que tenho percebido é que houve por parte das grandes empresas, em um primeiro momento, a preferência pelos advogados da velha tradição. Posteriormente, quando essas empresas se deram conta de que estratégia de defesa era ruim – pois girava em torno do garantismo –, perceberam que, pela nova legislação e pelo novo entendimento do direito penal (com destaque para a delação premiada e para os acordos de leniência), o custo financeiro das condenações seria muito alto. Muitas das grandes empreiteiras envolvidas na Lava Jato trocaram seus advogados. Há um momento em que vários advogados na faixa de 40, 45 anos de idade passam a atuar nos acordos de delação premiada das empreiteiras. Na avaliação delas, o impacto financeiro foi menor quando elas assumiram as culpas e assinaram os acordos de delação premiada do que se tivessem insistido na estratégia do garantismo, com altos gastos de defesa aos quais se somariam prováveis pesadas condenações.

A delação premiada e os acordos de leniência são parte dessa renovação da compreensão do direito penal brasileiro?

José Eduardo Faria – Também, e do ponto de vista do direito penal econômico, são desdobramentos de casos como os [do escândalo financeiro] da Enrom, que levou a um aperto no combate a crimes do sistema financeiro, e, posteriormente, do que ocorreu com os bancos na crise de 2007 e 2008. Pela legislação americana, uma empresa daquele país cujas franquias ou subsidiárias em qualquer parte do mundo se envolvam em casos ilegais pode ter a matriz condenada nos Estados Unidos. Assim, empresas com matriz nos Estados Unidos, ou que queiram operar por lá, passaram a se orientar pela legislação americana e a adotar normas de compliance nesse sentido.

O estatuto da delação premiada, sobre o qual muito se tem debatido no Brasil, sofreu um grande baque com o episódio envolvendo os irmãos Batista e o caso mal-sucedido de delação protagonizado, entre outros, pelo ex-Procurador Geral da República, Rodrigo Janot. Qual foi o tamanho do estrago sofrido até agora?

José Eduardo Faria – Há aí um problema de erro e acerto. A vida do Direito não é lógica, é experiência. E não sou eu que digo isso: essa é a tradição do realismo americano, liderado, entre outros, por [Oliver] Wendell Holmes. Você pode ter uma legislação muito boa nas mãos de quem não sabe aplicar; ou uma legislação nova nas mãos de quem ainda não tem a habilidade necessária para lidar com ela. Mas isso não invalida a legislação. Claro, abre espaço para que ela seja atacada, como tem sido, o que pode levar, no futuro, à sua revogação, ou à aprovação de uma legislação que tipifique o chamado “crime de interpretação” do juiz. Isso pode tirar do Ministério Público a base que ele tem para agir no combate à corrupção.

Nesse caso, não se trata mais de uma tensão entre duas “arquiteturas jurídicas”, como o senhor denominou, mas sim de um conflito pesado da política propriamente, não? 

José Eduardo Faria – Aí é a política, é o jogo corporativo. Há uma evidente união dos partidos quanto a isso. Isso se mostrou claramente nas recentes declarações da ministra Carmem Lúcia, na abertura do ano do Supremo Tribunal Federal, em discurso no qual defende a Justiça de ataques, que podem ser tanto aqueles deferidos por pessoas vinculadas ao ex-presidente Lula na semana de sua condenação pelo TRF-4, como os de alguém como o Ministro do governo Temer Carlos Marun (PMDB – MS), criando, por inabilidade, mais uma crise para o governo. Há um ponto de convergência de todas as forças políticas envolvidas nos escândalos de corrupção no ataque ao seu inimigo comum, o que leva o judiciário a tentar se manter coeso, especialmente quando, mais recentemente, passou a ser atacado em virtude da remuneração acima do teto. Isso é o que a sociologia americana chama de “guerras palacianas”, as guerras de corporações.

É perceptível que quando os processos saem dos Tribunais Regionais Federais e chegam ao Superior Tribunal de Justiça ou ao Supremo Tribunal Federal, a vulnerabilidade a uma pressão política é extremamente grande.

Já que falamos em delação premiada, o mesmo parece ter ocorrido com a chamada condução coercitiva, considerada por muitos um abuso, mas comum no Direito de países como Estados Unidos, Inglaterra, França…

José Eduardo Faria – De novo, erro e acerto, erro e acerto. E bom senso. Assim como houve a condução coercitiva do ex-presidente Lula, frequentemente apontada como um abuso, nós já tivemos também a prisão de um ex-prefeito de São Paulo constrangido de pijamas [Celso Pitta, durante a operação Satiagraha], ou, agora mesmo, a transferência do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, com algemas nas mãos e nos pés. Aí é falta de bom senso – e, claro, um pouco da lógica das guerras palacianas de que eu falava. Veja o caso do novo diretor da Polícia Federal, Fernando Segóvia e suas declarações, como foi o caso recentemente do programa da Mirian Leitão na Globo News. Segóvia foi indicado pelo presidente Michel Temer, e a justificativa apresentada para a saída de Leandro Daiello foi a de que ele estava cansado, já havia postergado sua aposentadoria e vinha sofrendo pressões da família para encerrar suas atividades. De bastidores, sabe-se que havia fortes movimentos para removê-lo da direção da Polícia Federal porque ele não cedia a pressões políticas, e Segóvia era um delegado com carreira no Maranhão e indicado pelo ex-presidente José Sarney. Agora considere o seguinte: sempre houve um tipo de rivalidade corporativa entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal em matéria de prestígio, de controle dos inquéritos. Do ponto de vista da Força Tarefa da Lava Jato em Curitiba, houve um trabalho muito sincronizado e sem essa rivalidade, o que tornou possível o avanço e a celeridade dos processos na primeira instância no Paraná. Com a entrada de Segóvia, isso muda: com suas declarações provocativas sobre a mala de dinheiro, ele vive endereçando farpas à Procuradoria e ao MP. Qual é a lógica disso? Claramente é estimular tensões corporativas que abram brechas para os advogados de defesa atuarem pela impugnação das ações do Ministério Público ou da própria Polícia Federal. Olhando do ponto de vista da sociologia do Direito, acompanhando essa dinâmica, o comportamento dele é tal que abre o leque de possibilidades de argumentos de defesa para os réus da Lava Jato. E a ser correta essa análise, esse é o tipo de comportamento que precisa ser visto com mais cuidado e cautela pela sociedade.

A sociedade brasileira tem razão em esperar que surja desse conflito de visões do Direito uma nova visão de país, menos disposta aos arranjos que garantem a impunidade a políticos e poderosos em geral?

José Eduardo Faria – Essa é uma questão muito ampla e complexa. Vou tentar responder de forma precisa. Tradicionalmente – e essa discussão vem dos anos 1980 –, há uma interpretação do Direito que favorece uma certa confusão, sugerindo que a dignidade da Justiça estaria nos seus ritos, no seu formalismo, na sua linguagem pomposa, nos argumentos prolixos. Isso sempre fomentou correntes críticas do Direito engajadas na tarefa de desnudar esses mecanismos. Se nós olharmos para a forma como os desembargadores da 8a Turma do TRF-4 embasaram seus votos – não estou entrando no conteúdo, aqui, mas na forma –, percebe-se que eles procuraram jogar a discussão no chão, com uma linguagem clara e um propósito absolutamente pedagógico. Quebraram, com isso, aquela ideia do “juridiquês” como o latim das missas.

Quer dizer, em um contexto em que se tem TV Senado, sociólogos e filósofos do Direito analisando esses temas abertamente, novos operadores do Direito fugindo do formalismo, tudo isso somado a condenações expressivas como as de grandes empreiteiras, as de dois ex-presidentes da Câmara dos Deputados, a do ex-presidente Lula, forma-se na sociedade, pouco a pouco, um sentimento de igualdade perante a lei.

É um sentimento difuso, ainda sem grande penetração nas camadas populares, mas é um processo novo e importante.

Já no Supremo Tribunal Federal…

José Eduardo Faria – É perceptível que quando os processos saem dos Tribunais Regionais Federais e chegam ao Superior Tribunal de Justiça ou ao Supremo Tribunal Federal, a vulnerabilidade a uma pressão política é extremamente grande. Como sociólogo e filósofo do Direito eu não advogo, então estive poucas vezes nos tribunais superiores, e sempre como professor. Certa vez, no STJ, um ministro me disse: “Isso aqui é muito bonito, custou caro, foi feito pelo Niemeyer, mas não se esqueça, tem dono: um quarto dos juízes aqui tem dono, e ele se chama Antônio Carlos Magalhães; um quarto dos juízes aqui tem dono, e ele se chama Marco Maciel; um quarto dos juízes aqui tem dono, e ele se chama José Sarney; e o outro quarto é um ‘x-tudo’.” Quer dizer, ele chamava atenção justamente para essas injunções políticas. E essas injunções políticas podem ser ainda mais extremas no caso do Supremo. Basta ter em mente que, quando chegarem os recursos do ex-presidente Lula no Supremo daqui a alguns meses, o presidente da Casa será o ex-advogado do Partido dos Trabalhadores…

Quais seriam os antídotos para esse problema?

José Eduardo Faria – Eu já vi muita discussão sobre os critérios de indicação dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Confesso que temo profundamente que haja uma mudança no sentido de permitir algum tipo de interferência da OAB e do Ministério Público nas indicações para ministros do Supremo.

Por quê?

José Eduardo Faria – Porque pode ocorrer o que se deu com o CNJ [Conselho Nacional de Justiça]. Quando o CNJ começou a ter um representante do Senado, um representante da Câmara, um representante da sociedade civil e um representante da OAB, o resultado foi a imediata partidarização. Quando o ex-presidente Lula entrou com um pedido de habeas corpus no STJ, o relator foi o vice-presidente da corte, Humberto Martins, cujo filho era correspondente do escritório de defesa do ex-presidente Lula em Brasília. Quando nós olhamos a trajetória do Humberto Martins, vemos que é um advogado de Alagoas que foi, pelo Quinto Constitucional, membro do Tribunal de Justiça e, como membro dos tribunais, acabou indicado pelo Senado para a vaga no Supremo. Percebe-se desde a origem que sempre teve o apadrinhamento de uma figura política, no caso, pelo que li a respeito, do Senador Renan Calheiros (PMDB – AL).

No caso específico do Supremo, eu acredito que o critério atual é adequado. O que precisamos evitar é o abastardamento. Quer dizer, interferências de órgãos como a OAB, o Ministério Público, juízes federais, estaduais, trabalhistas, etc., cujo resultado será a extrema partidarização e um engessamento corporativo. E eu acredito que o Supremo deve ter uma visão de mundo mais aberta, mais cosmopolita, menos corporativa.

Eu tenho acompanhado uma produção acadêmica excelente de pesquisas que têm mostrado a mudança de perfil do Supremo ao longo do tempo, e uma das coisas interessantes que tem me chamado a atenção é o comportamento de alguns ministros que, indicados no tempo da ditadura militar (1964-1985), demonstraram tremenda independência e profunda coragem cívica, por exemplo, concedendo habeas corpus, contrariando os presidentes do regime que os indicaram. Não se encontra necessariamente essa coragem cívica nos períodos da democracia.

E isso é um reflexo dessa partidarização?

José Eduardo Faria – Não apenas. Há um razoável consenso entre nós do meio jurídico que a atual configuração do Supremo é fraca. São magistrados sem formação doutrinária, ou sem pós-graduação, ou com cursos mais fracos, e, acima de tudo, são magistrados que não estão à altura do cargo. Tanto mais se comparados a alguns ministros do Supremo do passado que tiveram grande dignidade no cargo. Vamos dar dois nomes? Adauto Lúcio Cardoso e Aliomar Baleeiro, este último presidente do STF (1971-1973). Ambos tinham sólida formação jurídica, professores de Direito, eram conservadores da antiga União Democrática Nacional (UDN). Adauto Lúcio Cardoso, por exemplo, que já tinha votado em favor de habeas corpus para o líder estudantil Vladimir Palmeira e para o ex-chefe do Gabinete Civil de João Goulart, Darcy Ribeiro, em 1971. Foi o único voto pela inconstitucionalidade do decreto de Médici que instituía a censura prévia. Depois disso, como se diz, rasgou a toga e foi embora. Aliomar Baleeiro foi, igualmente, um crítico muito desperto do regime. Voltando à questão do mecanismo de indicações do STF, o mecanismo propriamente não é ruim – agora, não se pode aviltá-lo, colocando os interesses partidários acima da Justiça.

Isso não seria algo que tem menos relação com a normatização dos mecanismos de nomeação do que com a qualidade de nossa vida pública? Por exemplo, nos Estados Unidos é natural que um presidente Democrata ou Republicano indique para a Suprema Corte alguém alinhado com a visão de mundo que seu Partido e seu governo representam, mas jamais um advogado do partido, que jamais conseguiu ingressar na carreira pública…

José Eduardo Faria – Sim, advogado do partido, que foi reprovado duas vezes em concursos para a magistratura – você se refere ao Ministro Dias Toffolli. Ou, no caso do atual governo de Michel Temer, a indicação de Alexandre de Moraes, que tem no currículo uma reprovação para seu ingresso como professor da Faculdade de Direito da USP – no caso, uma reprovação minha.

Mas para ficar em sua comparação americana, quando eu comecei a dar aulas de Direito, ainda nos anos 1970, eu mostrava aos alunos como era possível compreender como votariam os juízes da Suprema Corte com base em seus escritos, em suas sabatinas, isto é, com base na coerência doutrinal de suas posições. No Brasil, os votos dos juízes do Supremo não chegam a formar essa coerência, pois não apenas os ministros muitas vezes votam de maneira contraditória com seu próprio histórico de entendimento de uma mesma matéria, como, para agravar ainda mais a situação, mesmo quando formam maioria, suas justificativas são frequentemente diferentes – quando não divergentes – entre si, o que impede a formulação de um entendimento claro sobre aquela matéria. Não se formam maiorias orgânicas: vence o “sim” ou “não” por mera contagem de votos. Veja o caso do ministro Gilmar Mendes, que após voto favorável à prisão após condenação em instância colegiada, deu a entender que poderia mudar o seu voto e, mais recentemente, afirmou que não era exatamente isso. Ora, isso gera insegurança jurídica, enfraquecendo a posição do Supremo.

Há um razoável consenso entre nós do meio jurídico que a atual configuração do Supremo é fraca. São magistrados sem formação doutrinária, ou sem pós-graduação, ou com cursos mais fracos, e, acima de tudo, são magistrados que não estão à altura do cargo.

Para encerrar. O senhor falou muito sobre as tensões entre essa nova geração do  Direito, formada ou influenciada pela tradição jurídica anglo-saxã e mais globalizada do ponto de vista do direito penal econômico, e a velha tradição romano-germânica. Se um julgamento como este do ex-presidente Lula se desse em um ambiente constitucional como o americano ou o inglês, em vez de um terreno em disputa, quais seriam as diferenças?

José Eduardo Faria – Em primeiro lugar, a defesa jamais poderia ter se comportado do jeito que se comportou. Em segundo lugar, ela teria se voltado fundamentalmente para o foco do problema, e não às questões periféricas de natureza meramente processual, como insistiram em fazer. Terceiro: quando se trata de direito penal econômico, a interação do legislador e do executivo com o funcionamento da economia é um dado claro. No Brasil, ainda há certa dificuldade para se entender essas questões, mas como procurei mostrar, isso está mudando.

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