por Marcio Luiz Miotto
Michel Temer, ao determinar intervenção federal militar no Rio de Janeiro, justificou-a declarando que o crime “é uma metástase que se espalha pelo país e ameaça a tranquilidade do nosso povo. Por isso, acabamos de decretar neste momento a intervenção federal.” A imagem correu o mundo. Assistindo à declaração, um carioca ao lado me disse que a medida era muito inteligente. Para ele (e certamente não é o único a pensar assim), ela beneficiaria a candidatura de quem valoriza uma intervenção militar no país inteiro, bem como o armamento do “cidadão de bem” e outras medidas mais “drásticas” para “curar” a “inversão de valores” (sic) de nossa sociedade.
Talvez não pareça – e esse é o problema a ser colocado aqui –, mas é incrível o número de fatores contidos nessas duas declarações. E o quão pouco nos é dado para julgarmos sobre elas.
Comecemos pela metáfora utilizada para o crime no RJ: é uma “metástase”. A metáfora é bastante clara, popular e – isso é novamente o que mais importa – de compreensão automática, “sem precisar pensar”: a sociedade funciona como um “corpo vivo”, o crime é um “câncer” e no Rio de Janeiro ocorrem “metástases”. É preciso então uma intervenção federal militar para fazer a devida quimioterapia, afastar o mal, expurgar a doença.
O uso da analogia científica (no caso, biológica) não deixa de ser curioso, pois o que se oferece como límpido e fácil muitas vezes não é bem assim. A história das ciências nos dá muitos exemplos sobre isso. Lembremos apenas de uma figura-limite que marcou o século XX fazendo uso das mesmas imagens biológicas, para dizer que aspectos como a bebida, a prostituição, o comunismo, as práticas sexuais “anormais” e outros costumes são espécies de “epidemias” ou “germes” sociais, ou “apenas a consequência da doença do instinto social, moral e racial.” Para ela, seria preciso acabar radicalmente com tais “degenerescências”, e “é deplorável que se consinta que indivíduos que sofrem de moléstias incuráveis continuem a contaminar as pessoas sadias”. Afinal – essas palavras são de Adolf Hitler em Mein Kampf – a sociedade é um “organismo político” e, se suas “doenças” não fossem tratadas como a Peste Negra – com cortes profundos na própria carne social –, elas então se propagariam como a tuberculose – chegando aos poucos e depois tomando conta. Vimos bem o resultado terrível do uso dessas metáforas biológicas de Hitler, especialmente na guerra e nos campos de extermínio.
Mas o que importa chamar a atenção aqui, novamente, é a limpidez e a facilidade das imagens: neste caso – dentre outros –, tornou-se facilmente comunicável ao gosto popular a imagem da sociedade como um “organismo”, no qual as pessoas são espécies de tecidos ou células e o “crime” age sob a velha metáfora da doença (peste, tuberculose, câncer…), como uma espécie de “mal” vindo de fora ou inadequado ao que ocorre por “dentro.”
Dentre outros, o filósofo Georges Canguilhem, com vasta obra sobre a Biologia, em sua época chamou mais de uma vez a atenção ao perigo disso. Metáforas como as da “sociedade como organismo” podem apresentar fácil assimilação, embora não sirvam propriamente para descrever um estado de coisas “social”, pois o funcionamento de um organismo não é igual ao de uma sociedade. O organismo segue normas fechadas e regras adaptativas pertencentes à espécie, algo difícil de reduzir às sociedades abertas e à variabilidade da liberdade humana, capaz de interagir e agregar decisões sobre inúmeros tipos possíveis de sociedade.
Mas o uso da analogia biológica não é casual. Ele muitas vezes serve para ajudar a passar, sem exame, certos subterfúgios para que uma intervenção política seja imposta ou aceita. Ora, se tantos utilizaram metáforas biológicas – e vindos dos mais diversos lados do espectro político –, isso não quer dizer que pensem a mesma coisa ou busquem os mesmos objetivos (vide por exemplo um ex-executivo do Facebook dizendo há pouco que essa rede “parte o tecido social”). Mas, em relação ao que ouvimos de Temer, vale ainda a advertência de Canguilhem: a história não deixou de nos apresentar casos nos quais o uso de imagens difundidas emprestadas da ciência e da biologia, mesmo sem aplicação lógica, serviu como subterfúgio para a prática política, com o efeito de deixar passar, sob a credibilidade da ciência, algo bem pouco científico ou dado ao que o cientista mais preza: a falta de análise pública.
Isso dito, não parece tão difícil de mostrar que a situação do Rio de Janeiro, e a do próprio Brasil, não se resume a uma simples “metástase.” Nem o crime, nem o exército, nem a sociedade fluminense e nem o governo que a diagnostica fazem o cômodo papel da doença, do corpo e do médico, pois são em muitos sentidos cúmplices de uma mesma situação (e essa situação não tem uma chave de leitura semelhante à da biologia, como se as sociedades pudessem ter a mesma cura que os corpos). O crime, os militares, o RJ e a política são atores de um mesmo jogo, certamente mais complexo do que um organismo e existente num local específico – o Rio de Janeiro –, mas cujas jogadas são reforçadas por ambos os atores há muitos anos e sobre o qual a espetacularização militar de agora não passa de mais um episódio, embora com consequências ainda mais sérias.
A metáfora do RJ como uma “sociedade com câncer” se presta bem para não pensarmos sobre suas nuances. Tais imagens fáceis e de apelo popular deixam de oferecer ao julgamento público fatos mais importantes e que deveriam estar no fio da discussão geral, tais como:
1) os governos federal e do RJ possuem baixíssimos índices de aprovação e estão sob suspeita em vários níveis, incluindo as investigações da Lava Jato (sem contar que Temer assumiu o governo com o impeachment de Dilma Rousseff e presumivelmente faria um papel de transição, em vez de ser protagonista das graves medidas testemunhadas);
2) segundo o Instituto de Segurança Pública do RJ, houve queda da violência no carnaval (ver também aqui e aqui), caso comparada com os últimos tempos. A diretora do Instituto declarou: “dadas as devidas proporções . . . não foi um carnaval fora dos padrões.” E o próprio general Braga Netto, interventor no RJ, declarou com bastante calma, antes de ser interrompido pelos políticos que o mobilizaram: houve “muita mídia”. Além disso, desde dezembro os índices de letalidade e roubo de rua e de carga mostraram queda. O que não significa que a situação do Rio esteja melhor, mas sim que algo no próprio seio do governo não tem sido feito há um bom tempo (e por quê?).
3) a Intervenção Militar é contemporânea das negociações para a reforma da Previdência, e Temer já declara abertamente que vai suspendê-la durante as votações. Mas não é só: durante a suspensão, cogitou emitir um novo decreto de Garantia da Lei e Ordem, no qual as Forças Armadas teriam prerrogativas ampliadas, inclusive para conter manifestações populares contrárias à Reforma (!). E o que dizer quanto ao fato de que a intervenção foi justificada como uma ação-limite, para conter a “incontrolável” situação da ordem pública?
4) tudo isso se fez sob a ausência do prefeito do Rio, Marcelo Crivella, que numa controversa viagem à Europa não pareceu compartilhar de tamanho clima de alarme (inclusive se reservando ao morno comentário de quem pode dizer, a milhares de quilômetros, que “já tinha pedido” a intervenção a Temer). E em meio a tanta “preocupação”, surpreende ver (apenas para dar alguns exemplos) que em novembro instituições como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada já recomendavam ações de planejamento, embora ainda em janeiro não houvesse, por exemplo, plano de segurança para o carnaval, e depois Pezão foi capaz de soltar a também morna declaração de que “não estávamos preparados”. Sob tanto alarde, como admitir que diante de tal histórico de advertências, índices e constatações nada foi feito? Ou ainda, frente a iminência do descontrole público, o que faziam então o prefeito na Europa e os demais dirigentes sem planejar o carnaval?
5) finalmente, num governo sob fortes e múltiplas acusações de corrupção, uma intervenção federal militar com tal amplitude é um precedente muito sério para o que está por vir. A Prof.ª Jacqueline Muniz (UFF) chamou a atenção em diversos níveis aos problemas da intervenção, que gerará mais “espetáculo” do que ações eficazes (pois elas necessitariam do que não está nos holofotes, especialmente ações contínuas e de inteligência). E conforme também já chamaram a atenção os professores Rafael Alcadipani e Marco Antonio Teixeira (da FGV) “esse é um jogo de alto risco para a democracia e que deve alimentar os sonhos de grupos minoritários que já defendem publicamente o intervencionismo militar em outras áreas, inclusive na política.”
Aqui retornamos ao nosso ponto. O de que para nós, brasileiros, embora tenhamos certo acesso a tanta informação, algo ocorre de forma que não nos está sendo dado utilizar mais do que imagens simples, imediatas e de lugar comum, tais como a da “sociedade doente” que “inverteu valores” e agora precisa de “cura”.
Tantas outras “discussões” recentes o mostram. Da dualidade entre “coxinhas vs. mortadelas”, passando pelo “duelo” entre Lula e Moro ou entre Lula e Bolsonaro, finalizando com a narrativa de herói de apresentadores de TV que se tornam candidatos, todos esses recursos de fácil identificação e apelo falam por si próprios: esmagam questões complexas com binarismos, soluções fáceis e figuras de salvador.
Ou ainda, eis outros temas: quem desaprovaria o fato de que a sociedade em geral “está violenta” e é preciso “dar um jeito” na criminalidade? Isso logo se torna gatilho para trazer consigo outros temas de fácil solução e entendimento: “bandido bom é bandido morto” e “se o cidadão de bem não estiver armado, torna-se vítima”. Logo, se armarmos o “cidadão de bem”, é claro que “os bandidos terão medo”, dispensando os “direitos humanos” que – dizem – “preservam o direito de bandidos”, enquanto morrem muitos policiais.
Como se vê, as imagens têm a profundidade de uma poça d’água, desconsideram contextos e situações complexas, mas permitem ver bem o reflexo de suas intenções imediatas. Outro bom exemplo recente é o “argumento”, atribuído a Bolsonaro, de que para terminar com o tráfico na Rocinha, bastaria jogar de um helicóptero panfletos ordenando que os “bandidos” se rendam, ou então a favela seria “metralhada.” Falou-se que essa informação jornalística é falsa. Mas nada se disse sobre a questão de fundo: tudo se passa como se “bandidos” simplesmente brotassem do chão e a “bandidagem” fosse uma qualidade que permitisse facilmente dividir a humanidade entre “bandidos” e “não-bandidos.” Como se os indivíduos não cometessem crimes, pois afinal eles “são bandidos.” Sendo assim, o desfecho não seria natural? “Bandido bom é bandido morto.”
Vale lembrar de quando o mesmo candidato foi outra vez perguntado sobre o que faria com a Segurança Pública – alardeada como “sua” área –, no que respondeu que vai “desfazer o que foi feito”, ampliar o acesso dos “cidadãos de bem” às armas (com fuzis no campo) e acabar com “essa coisa” (sic) de um policial ainda precisar prestar contas quando mata um “bandido.” Tudo muito simples e rápido, de fácil compreensão (especialmente se dito aos gritos), embora não toque em nada efetivamente duradouro ou eficaz. A imputação moral de “essência má” do “bandido” vence o direito moderno que julga o ato criminoso, e assim o discurso da vingança se sobreleva ao da justiça (valendo ainda lembrar que a modernidade também diferencia a polícia da horda, hoje também conhecida como milícia).
Disso tudo, não é inútil retornar ao assunto das ciências para verificar um pouco mais sobre como “circula” nossa discussão pública. Temos sido propensos a acreditar na opinião dos “especialistas” e, ao mesmo tempo, reduzir os nossos próprios julgamentos sobre o Brasil a questões tão superficiais. De um lado vê-se certa confiança (por vezes irrefletida) no discurso técnico divulgado pela imprensa, especialmente em economia e certas tecnologias materiais. Mas no que diz respeito à política e às ações humanas, a predominância de chavões e palavras de ordem, enfim, a recusa de pensar é impressionante. Novamente: questões com múltiplos fatores podem se resumir a palavras de ordem e receitas práticas, valendo lembrar da repugnância contra o “textão” ou da estranha recusa de certos segmentos sociais às ciências humanas porque supostamente seriam “de esquerda”.
É como se para nós, brasileiros, não fosse mais possível girar a perspectiva, abstrair e enxergar os eventos sob outros pontos de vista, menos imediatistas e mais complexos (incluso o ponto de vista do outro). Já que aqui o exemplo principal desse texto envolveu a história das ciências, empreguemos outro: tudo novamente se passa como naquela outra anedota, segundo a qual o raciocínio científico começa quando se deixa de lado o simples ponto de vista privado, a boataria ou o dogma para fazer uma revolução no modo de pensar e ver o mundo. Muitos já mostraram como a ciência moderna nasceu contra os simples dados intuitivos e da experiência cotidiana. Afinal, o que enxergamos com os olhos nos mostra que os corpos pesados caem e os leves sobem, ou que os planetas se movem em círculos e as coisas terrestres em linha reta. Mas o “ensinamento” da ciência moderna (Copérnico, Galileu, Descartes, Newton…) exige algo mais do que os sentidos, pois conceitos científicos como “inércia” e “gravidade” requerem abstrações, generalizações cuidadosas e operações teóricas, deslocando a compreensão sobre o mundo e o lugar do observador. Além disso, o experimento científico requer análise e julgamento, repetíveis por outras pessoas. Para resumir, mesmo que essa anedota seja inexata (pois muitos mostraram que a relação entre a ciência moderna e o período medieval é muito mais rica e complexa), ao menos ela serve para mostrar como o Ocidente tentou cultivar nos últimos séculos um outro valor crucial: o de que a busca da verdade sobre os “fatos” exige mudança de perspectiva, exame atento e julgamento público.
Alguns poderiam ser tentados a pensar sobre as “limitações” do brasileiro. Sobre isso, pode parecer certo que a educação vai mal e que isso influencia em nossa sociedade. Por exemplo, Marcelo Viana (premiado diretor do Instituto de Matemática Pura Aplicada) declarou recentemente que a precariedade dos conhecimentos de matemática do brasileiro chegam a um nível que “interfere no exercício da cidadania”. Mas Viana não parece chamar a atenção apenas a scores ou desenvolvimentos individuais de matemática, como se o brasileiro tivesse uma limitação “inerente”. Ele se refere não ao indivíduo, mas à esfera pública: é a falta de oferta de instrumentos públicos em geral — escola, museu, cultura, etc. — que resulta em efeitos como os que, em um segundo momento, apontamos com a mão, como a dificuldade de calcularmos operações simples (como dar o troco). Igualmente, quem acha que tudo se resumiria à diferença entre pobres e ricos, ou entre ensino público e privado, precisaria se ater aos sucessivos resultados do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), desde os anos 2000, que demonstram que a educação particular incorre nos mesmos problemas (não restritos à matemática e às ciências, mas também à leitura).
Disso, as reduções ao “nível de instrução” ou ao “nível sócio-econômico” não dão conta do problema. Vale lembrar também da filósofa Hannah Arendt, que alertava ao fato de que consensos pouco refletidos e mesmo a abertura para o totalitarismo não eram questão apenas de má formação escolar ou moral. Grandes burocratas (“gestores”, no linguajar atual) ou pessoas com perfeito discernimento entre o bem e o mal seriam capazes de alterar o julgamento de forma a abrir as portas de uma sociedade ao totalitarismo, restando a cada vez a pergunta sobre como isso se torna possível.
Voltando ao contexto brasileiro, aparentemente pouco se faz para girar a perspectiva e abrir o debate. Mesmo sob tanta informação, julgamentos tais como o de que o Brasil vive uma “doença” e precisa agora de uma “cura” – figurada numa intervenção federal militar –, ou de que há “bandidos” de um lado e “homens de bem” de outro, mesmo que não levem em conta os termos efetivos e complexos do debate, multiplicam-se em certo consenso difuso e geram consequências bem concretas.
Vale repetir que essa disposição automática ao pouco julgamento e às fórmulas irrefletidas, do modo como se aplicam hoje, parecem abrir um controverso precedente. Os professores Alcadipani e Teixeira já alertaram, acima, que a Intervenção Federal Militar fornece maior espaço para o que dizem os grupos que defendem o autoritarismo e as intervenções generalizadas. Ora, esses grupos cultivam os mesmos artifícios linguísticos das análises rasas, chavões e palavras e ordem mencionados acima. Além disso, as redes sociais estão repletas do que se convencionou chamar de discurso da “pós-verdade”, e não à toa a Folha de São Paulo alegou há pouco que parou de publicar no Facebook devido à perigosa proliferação de “bolhas de opiniões e convicções e a propagação das fake news”. Pode-se discordar ou não da análise, mas Augusto Santos Silva acabou de reiterar questões correlatas, tais como a “alimentação recíproca entre populismos e fake news” e o fato de que “o populismo e a desinformação constituem, hoje, ameaças muito sérias às nossas democracias.”
Portanto, não parece estar em jogo “apenas” uma intervenção federal militar, reunida com algumas metáforas soltas e o visionarismo de uns poucos. Começamos a ver com um pouco mais de seriedade que a força de uma intervenção federal militar, que surpreende um país sem maior discussão pública, talvez não se separe do tom pelo qual a discussão pública se faz ou não. Também as formas da discussão, em suas figuras e usos, mostram os caminhos da praça pública. Elas são fortes índices que permitem entrever os rumos da democracia.
Marcio Luiz Miotto é professor do Departamento de Psicologia do Instituto de Humanidades e Saúde da Universidade Federal Fluminense. O autor agradece a Ricardo Cabral.