Ives Gandra Filho no Supremo Tribunal Federal?

Ives Gandra Martins Filho, Ministro Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, é, segundo o noticiário e as especulações de alguns jornalistas, um dos cotados a ocuparem a vaga deixada pelo Ministro Teori Zavascki no Supremo Tribunal Federal.

por Horacio Neiva

Ives Gandra Martins Filho, Ministro Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, é, segundo o noticiário e as especulações de alguns jornalistas, um dos cotados a ocuparem a vaga deixada pelo Ministro Teori Zavascki no Supremo Tribunal Federal. Seu nome, no entanto, tem despertado reações acaloradas. E diametralmente opostas.

De um lado, setores mais conservadores veem no cotado alguém que comunga com eles uma certa visão de mundo e de moralidade que deveria ocupar um espaço na nossa mais alta corte. De outro lado, aqueles com visão oposta temem o que Ives Gandra poderia fazer no STF em temas morais controversos, sobre os quais o Ministro já se manifestou de maneira contundente: casamento é entre homem e mulher; a mulher deve submeter-se ao marido, o divórcio vai contra a lei natural.

O jurista Ives Gandra Filho: nome forte para a vaga de Teori Zavascki no STF (Foto: Andre Dusek)

A resposta, aqui, parece ser óbvia: os casos difíceis decididos pelo Supremo, nos quais estão em jogo cláusulas grandiosas da nossa Constituição – como o direito à vida, ou à igualdade – trazem consigo uma carga moral inquestionável. Para definirmos o que é o direito à igualdade, pensariam alguns, precisamos definir moralmente o que a igualdade de fato exige. E, neste ponto, o que o Ministro pensa lá com seus botões parece ser importante.

O problema é que, mesmo para os que aceitam o que Ronald Dworkin chamou de leitura moral da constituição (isto é, a ideia de que deveríamos “interpretar e aplicar aquelas cláusulas abstratas sob o entendimento de que elas invocam princípios morais sobre decência política e justiça”), há – ou deveria haver – uma distinção entre o que é argumentar moralmente para definir o que é o direito e simplesmente impor uma visão moral particular. O direito é formado por um conjunto de decisões, de leis, de princípios e de costumes que moldam o resultado de uma leitura moral. Da afirmação de que “a definição do conteúdo dos direitos constitucionais envolve algum tipo de argumentação moral” não se segue que aos juízes é dado impor suas visões morais particulares.

Mesmo para os partidários de uma leitura moral é preciso aceitar que o conjunto de materiais jurídicos impõe restrições sobre a interpretação jurídica. Um precedente vinculante é um precedente vinculante, e não se pode – sob pretexto de sair por aí fazendo leitura moral – ignorar leis, precedentes e textos. Essa alternativa seria inviável num teste simples de adequação, que qualquer leitor iniciante de Dworkin sabe ser fundamental. Se é certo que para Dworkin uma interpretação do direito tem um caráter normativo, também é certo que ela deve ter um nível mínimo de coerência com o direito, sob pena de deixar de ser uma interpretação e passar a ser um ato puro de criação jurídica. Uma leitura moral do direito ainda é uma leitura do direito, e não de alguma outra coisa.

A “controversa” moralidade do Ministro Ives Gandra Martins Filho, no entanto, é menos importante do que sua controversa filosofia jurídica. Ao que consta, Ives Gandra é partidário de uma versão forte da lei natural que admite que ela é tanto um filtro quanto um complemento para o direito positivo. Nessa perspectiva, uma lei injusta não é, em nenhum sentido relevante, uma lei – e, como tal, não deve, e nem pode, ser aplicada pelos tribunais. Não sei, contudo, se esta é mesmo a posição do Ministro. Segundo alguns, é. Para não ser injusto, todavia, consideremos, apenas hipoteticamente, que o seja (se não for, o que segue não se aplica a ele, ainda que se aplique à posição jusnaturalista forte aqui discutida).

Há vários problemas nesta interpretação da tradição jusnaturalista que chamei de “forte”. O mais grave deles é ignorar justamente a autoridade do próprio direito positivo – um tema que desde Tomás até John Finnis permeia o trabalho dos autores da tradição. Sob certa leitura dela – e a leitura com a qual concordo – a aplicação direta do que o magistrado pensa ser a lei natural, a despeito daquilo que de fato foi positivado, pode, muitas vezes, configurar uma violação do que esta própria lei exige e impõe: a obrigação moral de obedecer o direito.

O papel dos magistrados, para Finnis, por exemplo, não é argumentar moralmente, mas raciocinar de maneira técnica a partir do que o direito positivo exige. E esse “raciocinar de maneira técnica” significa, para ele, restringir ao máximo o “feedback” de considerações morais relevantes. Em outras palavras: o direito está aí justamente para resolver os problemas morais que motivam sua existência. Se o Magistrado pretendesse reabrir a discussão moral que levou à edição daquela lei, sob o pretexto de aplicar, diretamente, o que entende ser a lei natural, ele estaria indo de encontro ao propósito do próprio sistema jurídico. O divórcio pode ir de encontro à lei natural. Mas o Brasil possui uma lei – na verdade, uma norma constitucional – que o autoriza. Poderia um juiz ignorá-la?

Para o jusnaturalismo, o direito não é uma ideia abstrata, um conjunto de disposições legais encontradas no ar ou em tábuas enviadas do céu. Ele é, assim como defendem os positivistas, uma criação humana. A posição especificamente jusnaturalista, no entanto, mantém que essa criação humana, mutável e variável o quanto seja, atende a um propósito moral, e é justamente esse propósito moral que o jusnaturalista procura identificar e explicar. É também desse propósito que ele deriva a obrigação moral de obedecer aquilo que o direito exige.

E, neste ponto, é preciso reconhecer que parte do que o direito exige está contido nos seus precedentes, que mesmo um magistrado jusnaturalista não pode ignorar. Ives Gandra não poderia, portanto, fazer tábula rasa dos materiais jurídicos – dotados de autoridade segundo uma leitura possível da tradição jusnaturalista – para dar vazão às suas próprias convicções morais. Pelo menos não sob o ponto de vista de uma leitura possível da tradição jusnaturalista que ele, supostamente, diz professar.

Isso, claro, se o que estivesse em jogo fosse coerência teórica. Implícita na preocupação de tantos professores e juristas parece estar a crença de que, ao final das contas, tudo no direito não passe de um jogo de poder. O direito pode dizer uma coisa, mas o que importa, de fato, é como os juízes irão decidir. Não importa que direito temos, e sim que magistrados temos para dizer o que é esse direito. Essa crítica – que poderíamos chamar de crítica realista – não pode ser respondida em espaço tão curto. Mas também não pode ser ignorada.

Ives Gandra Filho é um jusnaturalista? Se sim, de que tipo? A leitura moral da Constituição é a forma correta de interpretamos o texto constitucional – ou deveríamos adotar interpretações estritamente textuais para entender o que significa o direito à vida, à liberdade e à igualdade? Um Magistrado do mais alto Tribunal do país, deve ou não deve respeito aos precedentes daquele tribunal – especialmente àqueles dos quais discorda? Essas seriam as perguntas que eu gostaria de fazer ao Ministro Ives Gandra Martins Filho.

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