por José Eduardo Faria
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Com a paralisia das atividades econômicas, em decorrência do programa de isolamento social, os tribunais passaram a receber alto número de ações fundamentadas no princípio jurídico da força maior. Elas pedem suspensão de pagamento de aluguéis e tributos, afrouxamento de prazos para amortização de empréstimos e liberação de bens de empresas em recuperação judicial que viram seu faturamento cair a zero. Relacionado a forças naturais, o princípio jurídico da força maior permite a conversão das ideias de inevitabilidade, imprevisibilidade e impossibilidade em justificativa para o não cumprimento de obrigações contratuais.
No mundo forense, os membros do Conselho Nacional de Justiça recomendaram aos juízes que, quando receberem casos em que uma das partes invoca esse princípio, optem pelo bom senso e incentivem a mediação e a negociação, onde não há vencedores nem vencidos. Já as autoridades econômicas, além de chamar atenção para os riscos da judicialização, pediram aos juízes que garantam o respeito aos contratos. O presidente do Banco Central afirmou que, quando a economia sofre choques e os contratos deixam de ser cumpridos, a incerteza jurídica aumenta e sua recuperação fica mais difícil. Por seu lado, concessionárias de serviços essenciais advertiram para o risco de decisões desencontradas das diferentes instâncias judiciais, decorrente da explosão de interpretações a um só tempo restritivas e extensivas do princípio de força maior. Mas, com base no mesmo princípio, elas também estão pedindo renegociação de contratos, com o objetivo de recuperar prejuízos causados pela pandemia. Além do aumento de tarifas, para compensar a redução de demanda e aumento da inadimplência, reivindicam ampliação do prazo de concessão, flexibilização de investimentos e cortes no pagamento de outorgas.
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Evidentemente, se a interpretação do princípio de força maior não seguir um certo balizamento e as diferentes instâncias judiciais autorizarem o descumprimento dos contratos de modo generalizado, os tribunais poderão provocar um efeito dominó na economia. O que, por consequência, comprometerá a solvência dos fornecedores e concessionários, acarretando distorções em todas as cadeias produtivas e, no imite, desarticulando tanto o setor privado quanto o sistema de concessão de serviços essenciais, como saneamento, transporte urbano, aeroportos, rodovias, etc. E, no plano jurídico, pode levar a um desequilíbrio inédito no universo das obrigações contratuais, com desdobramentos imprevisíveis. Por isso, como os contratos têm matrizes de custos e riscos distintas, há quem recomende aos juízes analisar cada caso, levando em conta as especificidades de cada demanda judicial.
À primeira vista, a sugestão é sensata. Não resolve, contudo, o problema que está por trás da insegurança jurídica: a ampla discricionariedade que os juízes dispõem para interpretar princípios jurídicos polissêmicos, como bem comum, função social da propriedade privada, função social dos contratos e força maior. Princípios como esses têm o objetivo de propiciar a resolução dos chamados “casos difíceis”, aqueles que não são facilmente enquadráveis nas normas em vigor. No direito, princípios têm uma função integradora, diretiva e interpretativa, fornecendo diretrizes programáticas, orientando o preenchimento de lacunas e assegurando coerência doutrinária e sistêmica à ordem jurídica. Desse modo, permitem aos juízes equilibrar valores, regras, finalidades, obrigações e permissões. A necessidade desse equilíbrio decorre da dificuldade de se conjugar em termos lógico-formais uma ordem social e econômica concreta, cada vez mais complexa, na qual os sujeitos de direito se encontram imersos em múltiplas redes de relações, com as categorias normativas abstratas e atemporais do direito positivo.
Assim, ao julgar os “casos difíceis”, os juízes não podem decidi-los somente aplicando a lei de forma mecânica – ente outros motivos, porque os princípios são concebidos de modo deliberadamente vago para poder atuar como diretrizes programáticas. E, também, porque sempre há divergências sobre sua interpretação e seu alcance. Essas divergências são inexoráveis, pois não há interpretação literal – como lembram os professores de teoria do direito, toda interpretação de um texto legal é, de algum modo, uma forma de recriação desse texto. Além disso, o processo de pacificação em matéria de hermenêutica jurídica, do qual resultam súmulas e jurisprudências, já é naturalmente lento em tempos normais. O que dizer, então, com relação a tempos como o atual?
Em tempos normais, o desenrolar dos acontecimentos de certo modo é suficiente para permitir que a Justiça vá, aos poucos, calibrando as expectativas jurídicas, garantindo com isso a certeza do direito. Nessas fases, os textos legais – a começar pela Constituição – constituem um marco que tenta combinar estabilidade com flexibilidade. Já em fases de crise, a interpretação das regras e princípios jurídicos é sobrecarregada por incertezas e contingências. De que modo interpretar acontecimentos e conflitos que provocam perturbações, bifurcações e rupturas na ordem social, na ordem econômica e na ordem legal? Como podem os juízes, cuja formação técnica foi concebida para atuar em tempos normais, lidar com o instável e o indeterminado? O que é certo e o que é errado? O que é um pleito justo e o que é um pleito feito com má-fé, mediante a manipulação do princípio de força maior, por exemplo?
Pela concepção de ordem jurídica em vigor no país, além disso, o tempo da segurança jurídica também é um tempo longo, que não pode ser afetado em sua essência por fatores meramente conjunturais. Já os períodos de exceção, como o que estamos vivendo, levam ao conflito entre o tempo do direito (em que as normas processuais e o processo legislativo convencional são condições de segurança jurídica) e o tempo da economia (em que medidas emergenciais só podem ser dotadas mediante o desrespeito a essas mesmas normas e a esse processo, em nome da “exceção”). Em outras palavras, exigências de curto prazo, em matéria de programas econômicos e sanitários, implicam alterações jurídicas que, por serem feitas sem respeitar os tempos legislativo e judicial, colocam em xeque os postulados do próprio Estado de Direito.
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O resultado é um cenário não apenas incerto, mas, também, paradoxal. Por um lado, há necessidade de que o tempo do direito acompanhe as mudanças sociais. Por outro, contudo, é preciso assegurar estabilidade da ordem jurídica ao longo da história – o que é impossível no tempo curto das indecisões frente ao imediato. O imediatismo contraria os princípios da estabilidade e da confiança inerentes às limitações impostas pelo Estado de Direito aos processos de revisão tanto do direito público quando do direito privado.
No momento atual, o Supremo Tribunal Federal não tem condições de firmar a curto prazo uma jurisprudência sobre como interpretar o princípio jurídico da força maior e como definir seu alcance. E, uma vez que a interpretação desse princípio já é por si complexa e pode variar de juiz para juiz, de vara para vara, de comarca para comarca, de instância para instância, cidadãos e agentes econômicos estão, em pleno Estado de Direito, diante de um desafio insólito: o de partilhar riscos e perdas sem um mínimo de estabilidade regulatória que lhes dê suporte. Se Oliver Wendell Homes Jr., um dos precursores do realismo jurídico, era persuasivo quando afirmava no século 19 que a vida do direito não é logica, mas experimento, que tipo de resposta esperar do sistema de Justiça nestes dias de tragédia humanitária, perplexidade, indignação, angústia e medo?
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