Riscos, incertezas e democracia

Um ensaio de José Eduardo Faria sobre a democracia em tempos de riscos e incertezas. Se, hoje, governar é administrar a impotência, promovendo uma gestão coletiva das incertezas, “o que dizer com relação a países em que a democracia ainda não é sólida e o governo é inepto, inconsequente e irresponsável?”

por José Eduardo Faria

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Há mais de cem anos, o economista americano Frank Knight fez uma distinção entre risco e incerteza que é válida até hoje. O conceito de risco se restringe a situações em que possíveis desfechos futuros são mensuráveis e, por consequência, previsíveis, diz ele. Já a incerteza se refere a situações em que não se conhecem as probabilidades nem os desfechos futuros são mensuráveis. Por isso, ela envolve acontecimentos cujos efeitos não são conversíveis em riscos calculáveis.[1]

Assim, se com relação aos riscos de algum modo é possível preparar-se para as surpresas deles advindas, com as incertezas isso é impossível. Que capacidade têm então os governos de gerir situações de incerteza e de preparar a sociedade paras as surpresas que a esperam? Como todas as incertezas, a pandemia trouxe vários problemas que nos surpreenderam e para os quais ainda não temos respostas plausíveis. Neste texto, destaco três problemas.

O primeiro está na interface entre poder político e conhecimento científico. Em face do incerto, do desconhecido, do não mensurável e do incontrolável, essa tensão entre o processo de tomada de decisões políticas e um saber científico disponível ainda insuficiente está levando as instituições governamentais a sofrerem mudanças estruturais. Elas estão passando de um período em que estavam acostumadas a tomar decisões, a emitir ordens e a comandar com base em saberes e rotinas bem estabelecidas para um período em que agora devem se dedicar a aprender, ao mesmo tempo em que decidem, de forma experimental e reversível, uma vez que os sistemas e instrumentos de previsão, prevenção, antecipação e precaução têm se revelado limitados.

Em tempos de mercados conectados e inovações técnico-científicas emergentes cujas consequências ainda são imprevistas, ou não são de todo controláveis, as instituições governamentais têm enfrentado crescente dificuldade para identificar pequenas mudanças que ocorrem em um sistema social ou econômico e que vão, com o tempo, convertendo-se em grandes transformações, com efeitos cascata e riscos encadeados.  Já estressadas pela queda abrupta do nível de atividade econômica e pelo aumento do desemprego e da pobreza, as instituições parecem ter cada vez menos respostas para problemas complexos.

Diante de tantas incertezas trazidas pela pandemia, como as experiências passadas não ajudam muito na orientação de decisões atuais, o desafio é investir em conhecimento futuro e inteligência compartilhada, afirmam filósofos e cientistas políticos. Contudo, esse caminho tem uma faceta paradoxal: se os problemas socioeconômicos vitais hoje exigem uma alta dose de conhecimento científico para serem enfrentados, uma virtude carente entre os políticos, a política só passa ser possível por meio de um recurso contínuo ao saber especializado.[2] Há quem afirme a relação entre política e ciência não deveria ser encarada nos termos de submissão de uma pela outra, mas, sim, como um processo argumentativo. Contudo, se os problemas políticos podem ser traduzidos na linguagem da ciência, não há uma tradução imediata dos juízos científicos em decisões políticas.

Além disso, a tensão entre saber científico e poder político abre caminho para uma nova situação, em que as autoridades públicas carecem de conhecimento técnico-científico, enquanto as autoridades privadas, que têm esse conhecimento, carecem de legitimidade política. Dito de outro modo, quem pode e tem legitimidade, não sabe. E, quem sabe, não tem poder nem legitimidade. Nesse contexto, emergem questões envolvendo finanças, comércio e proteção ambiental, que são demasiadamente importantes para serem entregues a organizações privadas e demasiadamente sofisticadas para serem geridas por máquinas governamentais tradicionais.

Já o segundo problema está no fato de que muitas medidas tomadas pelos Estados nacionais sob a justificativa de combater a pandemia e preservar a saúde pública estão trazendo várias dificuldades à democracia e aos direitos humanos. Na medida em que ampliam o poder de militares e a vigilância sobre cidadãos, por exemplo, levam a uma tendência de banalização da urgência do presente e de desinstitucionalização do social, sob a forma de cerceamento da liberdade de expressão e de restrições de circulação crescentes e de prazo indefinido.

Como na narrativa do filme O Ovo da serpente, de Bergman, o perigo é que medidas jurídicas adotadas em caráter excepcional e justificadas em nome de estado de necessidade ou de estado de emergência acabem se convertendo na situação normal da democracia.[3] O risco, em outras palavras, é que o excepcional se sobreponha ao normal — ou seja, que o constitucionalismo democrático, concebido para “tempos normais”, seja perenizado por um constitucionalismo de exceção marcado pela suspensão de direitos, pela aplicação seletiva de direitos e pela restrição do acesso aos tribunais para a defesa de direitos previstos pela ordem legal.

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O ovo da Serpente (Reprodução)

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Por fim, o terceiro problema diz respeito ao alcance da pandemia e a seu impacto no fortalecimento de um novo padrão de governança global. Por ter um caráter transterritorial, a pandemia acelerou a relativização de conceitos e princípios que já vinham sendo impactados pela mundialização da economia, levando o Estado nacional a passar de uma posição central e dominante para uma posição de compartilhamento de parcerias em conjunto com diferentes atores públicos e privados.

É esse, por exemplo, o caso do princípio da soberania, que hoje tem um caráter paradoxal, por se encontrar a um só tempo dentro e fora da ordem política nacional. Nesse sentido, a passagem do paradigma estatal da governabilidade para o conceito de governança interliga-se com uma orientação na qual o direito já não é concebido como elemento de um modelo em pirâmide da regulação política, mas tem por base uma concepção flexível, negociada, relativista e pragmática de ordem jurídica.[4] Assim, à medida que a interdependência entre Estados nacionais e organismos multilaterais, organizações financeiras internacionais e agências de classificação de risco vai aumentando, do mesmo modo como as fronteiras vão se tornando mais difusas e ganhando identidades múltiplas e porosas, a produção jurídica tende a se deslocar para instâncias não legislativas.

Igualmente, os mecanismos deliberativos da democracia vão sendo substituídos por sistemas de peritagem. A titularidade dos parlamentos também se desloca progressivamente para sistemas intergovernamentais e para comunidades epistêmicas, integradas por especialistas, consultores, centros de pesquisas e think tanks. Comum à concepção moderna de Estado de Direito, o reducionismo do direito ao direito positivo e, deste, ao direito constitucional cede vez a um pluralismo jurídico constituído pelos processos de transterritorialização dos mercados, de europeização e de mudança social, sob a forma de uma nova lex mercatoria, direitos transnacionais, códigos de ética corporativa e mecanismos alternativos de resolução dos conflitos  Por fim, a exaustão funcional das categorias e procedimentos tracionais de direito exige novas formatações jurídicas com base em domínios transversais e transdisciplinares do conhecimento jurídico.

Desse modo, se governar no período de formação dos Estados nacionais envolvia o problema do poder e a imposição de uma ordem, governar agora, neste período de pandemia e de interações complexas, é administrar a impotência, é promover uma gestão coletiva das incertezas.[5] Em termos concretos, isso significa aprender a conviver com bifurcações, rupturas e riscos. Também exige instituições governamentais capazes de reconhecer quer o potencial quer as limitações do conhecimento. E ainda implica sistemas híbridos de governança, que incluem uma combinatória entre autorregulação, por um lado, e supervisão pública, por outro.

Na realidade, a pandemia mostrou o preço amargo da crescente uniformização das políticas econômicas nacionais adotadas nas duas últimas décadas decorrentes da globalização dos mercados. Por estar voltada basicamente a resultados de curto prazo, ao máximo de lucro possível no menor tempo, corroeu os mecanismos de planejamento de médio e longo prazo, fundados em processos de mobilização de capitais e de distribuição ótima de recursos e meios a partir de objetivos dados, cuja fixação decorre de vontade política orientada por um projeto.

Na Europa, por exemplo, os países mais atingidos pela pandemia foram  os que tinham, após a crise financeira de 2008, seguido o receituário de forte austeridade fiscal imposto pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Mundial e pelo Banco Central Europeu, que incluiu, entre outras medidas, redução de políticas econômicas anticíclicas e transferência de serviços essenciais para o mercado, convertendo-os em negócios para a iniciativa privada. Por isso, a pandemia pegou esses países em um período de fragilização do sistema público de saúde pública e das redes de proteção dos mais penalizados pelas consequências daquela crise, que ficaram sem condições de arcar com planos de assistência médica.

Combalidas as políticas públicas nacionais, a começar pelas econômicas, também a governança internacional se mostrou frágil, como revela a falta de acordos abrangentes para a produção e disponibilização de vacinas como um bem público global em condições de ser distribuído equitativamente entre os vários países e populações. Pelo contrário, as relações de força, as assimetrias econômicas e tecnológicas e as pressões geopolíticas parecem ter configurado um cenário mais de anarquia e oportunismo que de solidariedade institucionalizada por um direito global e pelas organizações internacionais.

Se os três problemas aqui apontados já são difíceis de serem enfrentados em democracias consolidadas, nas quais cidadãos impactados por uma decisão governamental devem poder dela participar, o que dizer então com relação a países em que a democracia ainda não é sólida e o governo é inepto, inconsequente e irresponsável?

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(Foto: Dida Sampaio/Estadão)

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Notas:

[1] Cf. Frank Night, em Risco, incerteza e lucro, Rio de Janeiro, Editora Expressão e Cultura, 1972. A obra original é de 1921.

[2] Para este e para o próximo parágrafo, ver Daniel Innerarity, Pandemocracia, Barcelona, Galaxia-Gutemberg, 2020.

[3] Cf. José Eduardo Faria, Vacina, ciência e democracia, in Estado da Arte, jornal O Estado de S. Paulo, edição de 28 de outubro de 2020. < https://estadodaarte.estadao.com.br/jef-vacina-ciencia-democracia/>.

[4] Cf. Chris Thornhill, The sociology of law and the global transformation of democracy, Cambridge, Cambridge University Press, 2018A. Casimiro Ferreira, Sociologia das constituições: desafio crítico ao constitucionalismo de exceção, Porto, Vida Econômica, 2019.

[5] Ver Daniel Innerarity, op. cit. e Thornhill, op. cit.

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