por José Eduardo Faria
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Dois anos após ter editado uma Medida Provisória (MP 926/20) que autorizava a concentração das competências dos prefeitos e dos governadores na figura do chefe do Executivo federal para tentar frear as medidas de isolamento social e de vacinação que os municípios e os Estados começavam a adotar, e sido impedido pelo Supremo Tribunal Federal, o presidente da República voltou à carga.
Se após aquela derrota judicial ele primou pela hipocrisia, alegando que a corte negou-lhe competência para enfrentar a pandemia, quando seu verdadeiro objetivo era aproveitar uma situação emergencial para reduzir a autonomia das administrações estaduais e municipais, desta vez obteve no Congresso a aprovação de uma lei federal que, ao considerar combustíveis, transporte público, telecomunicações e energia elétrica bens essenciais, limita a cobrança do ICMS a um teto de 18%. Como, segundo a Constituição, esse imposto é de competência dos Estados, governadores de 11 unidades da Federação e do Distrito Federal questionaram no Supremo Tribunal Federal a constitucionalidade dessa lei. “Eles estão unidos contra a população, contra o contribuinte, contra o trabalhador”, reagiu o presidente.
Dois meses antes da aprovação dessa lei, o inquilino do Palácio do Planalto já havia pedido ao mesmo Supremo, e também sem sucesso, a suspensão das leis estaduais que definem a alíquota do ICMS sobre combustíveis, sob a justificativa de baixar o preço do diesel e da gasolina. E, recentemente, viu desembarcar em Brasília cerca de mil prefeitos cuja pauta era pressionar o Congresso e o governo a reverter as leis que, desde dezembro de 2021, comprometem o equilíbrio financeiro das prefeituras. Segundo a Confederação Nacional dos Municípios, algumas dessas leis teriam aumentado os gastos municipais em R$ 176,8 bilhões por ano, dos quais R$ 41,8 bilhões com efeito imediatos. Além disso, as demais leis teriam reduzido a arrecadação dos municípios em R$ 51,6 bilhões, dos quais R$ 31,2 bilhões com efeito imediato.
Entre os especialistas em finanças públicas, essas leis foram interpretadas como uma tentativa do presidente para enfraquecer entes subnacionais no curto e no médio prazo. Isso reduz a margem de ação dos prefeitos para formular e implementar políticas públicas. Também inviabiliza a prestação de serviços essenciais com padrões mínimos de qualidade, restringe investimentos em infraestrutura urbana. E ainda dificulta o estímulo a serviços voltados à formação de cadeias locais de valor. Entre os especialistas em direito constitucional e administrativo, considera-se que essa ofensiva teria por objetivo concretizar uma das ambições do presidente da República: a fragilização da estrutura federalista do Estado brasileiro prevista apela Constituição.
Conhecido por seu oceânico despreparo, por seu desprezo à democracia e por sua incapacidade de compreender e acatar as funções limitadoras da Constituição, o chefe do Executivo sempre confundiu competências administrativas com a prerrogativa de legislar em nome do que chama de “democracia” e da “liberdade”. Imaginando-se dispor, legítima e legalmente, do poder de ser o fiel intérprete da ordem jurídica, em abril de 2020, durante uma manifestação em favor de uma intervenção militar e do fechamento do Congresso e do Judiciário, esse senhor chegou a fazer uma afirmação que dá a medida sua inconsequência e irresponsabilidade — “eu sou a Constituição”[1].
Não são a ignorância, a pretensão e a estupidez do autor da frase que chamam atenção. O que preocupa é outra coisa — principalmente se levarmos em consideração o que dizia Max Weber (1864-1920) sobre o Estado, em célebre conferência pronunciada em 1919[2]. “Sociologicamente, o Estado não se deixa definir a não ser pelo específico meio que lhe é peculiar, tal como é peculiar a todo outro agrupamento político, ou seja, o uso da coação física […]. A violência não é, evidentemente, o único instrumento de que se vale o Estado, mas é seu instrumento específico. Em nossos dias, a relação entre Estado e violência é particularmente íntima”. Por isso, o Estado contemporâneo, enquanto “comunidade humana dentro dos limites de determinado território, reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física”. E uma das condições dessa legitimidade é a legalidade, “em razão da crença na validez de um estatuto legal e de uma competência fundada em regras racionalmente estabelecidas”, concluía.
Com base nessa argumentação, considerada um clássico da sociologia, é possível afirmar que, quando o presidente da República afronta a ordem constitucional, despreza a separação dos Poderes tanto no plano horizontal quanto no plano vertical, investe contra o Judiciário e passa a definir seus opositores como inimigos, a exemplo do que vem fazendo com prefeitos e governadores, o Estado democrático tende a se corroer. Dito de outro modo, o chefe do Executivo deixa de lado o fato de que a tripartição dos Poderes é fundamental para o regime democrático, pois só ela assegura que o inimigo seja colocado apenas como adversário. Só a tripartição dos Poderes assegura que a diferença entre governo e oposição permaneça no nível da contrariedade. Quando isso não ocorre, a democracia, suas estruturas administrativas e suas instituições políticas entram em crise.
A ideia da definição de opositores como inimigos, o que converte o jogo político na desqualificação e na intimidação dos adversários, é do constitucionalista alemão Carl Schmitt (1888-1985), um controverso crítico da democracia liberal. Inimigo não é o oponente pessoal, mas um grupo — “um conjunto de homens que se contrapõe a um conjunto semelhante”, afirmava. Uma comunidade nacional organiza-se com base no interesse comum frente aos inimigos — prosseguia. Nesse sentido, o controle da diferenciação entre quem é amigo e quem é inimigo é um dos traços marcantes da soberania, conceito que o autor relaciona a situações políticas limítrofes ou excepcionais. Por dispor de um poder ilimitado e não estar sujeito a determinações jurídicas, soberano é quem decide sobre controvérsias em torno do direito e sobre o estado de exceção. É, assim, quem distingue normalidade de exceção. E é justamente em situações de exceção que ele se revela, impondo as medidas necessárias, inclusive a suspensão da ordem constitucional, concluía Schmitt.
Tomando o pensamento de desse conhecido e polêmico jurista como referência ao analisar o cenário político brasileiro no período pós-redemocratização, o arguto filosofo José Arthur Giannotti (1930-2021) afirmava que “o contradizer político abre a clareira da luta e desenha os inimigos como aliados e adversários”[3]. Prosseguia dizendo que “o regime democrático instala a comum-idade em que outras diferenças sociais podem se digladiar”. E concluía lembrando que “somente a partir desse comum o grupo derrotado continua a pertencer à unidade do Estado e da Nação, na medida em que a contradição radical de interesses e de identidades vem a ser encapsulada na convivência da contrariedade. Somente assim a unidade espiritual do Estado não se desfaz na guerra civil”.
Das afirmações de Giannotti se pode depreender que o pano de fundo democrático é a responsabilidade de assegurar o bem-estar da população, o que torna o Estado e seus entes federativos, entre outras funções, provedor de serviços públicos essenciais, como saúde pública e educação. É justamente aí que se se pode identificar os desastrosos efeitos da ofensiva do chefe do Executivo contra prefeitos e governadores, com o objetivo de substituir o federalismo por um governo centralizador cujo chefe, desprezando o princípio da tripartição dos poderes, arvora-se como a personificação da Constituição que jurou cumprir quando foi empossado.
O desastre político, administrativo e institucional que esse sujeito tosco e seu ignaro entorno militar podem causar tem múltiplas facetas. Algumas — como o negacionismo científico em meio a uma pandemia e a entrega do setor de educação a pastores que confundem a multiplicação dos pães com a multiplicação de sua riqueza material — contrariam acintosamente a Constituição. Outras infringem crimes e irregularidades tipificados pela legislação penal e administrativa e envolvem a desconstrução do pouco que o país havia conquistado nas décadas posteriores à redemocratização. Conjugada com demonstrações de inépcia, narrativas rasteiras de deslegitimação dos institutos jurídicos do Estado de Direito e o sistemático uso do infralegalismo para reduzir o alcance de normas constitucionais, a lista de decisões juridicamente discutíveis do chefe do Executivo é enorme.
No caso específico da ofensiva contra os governadores e os prefeitos, se tiver sucesso no intento de substituir o federalismo por um autoritarismo centralizador, o presidente tenderá a engessar a estrutura administrativa de um país complexo e heterogêneo. Há vários anos, as prefeituras das principais regiões metropolitanas do país vêm reclamando mais autonomia para repensar suas formas de administração e buscar novas estratégias para lidar com problemas como a expansão das moradias irregulares, a formulação de uma nova regulação urbanística, transporte informal, educação e saúde decorrentes da conurbação das cidades que as integram. São áreas com mais de um milhão de habitantes, o que corresponde a cerca de 40% da população. Depois de terem formulado políticas sociais inclusivas e progressistas, conectando os conceitos de cidade e cidadania, muitas prefeituras vêm pleiteando maior flexibilidade jurídica para democratizar formas de acesso ao solo conforme o perfil demográfico e as especificidades socioeconômicas de suas respectivas regiões.
Contudo, apesar de o modelo federativo brasileiro reconhecer a pluralidade de ordens normativas, legitimando a existência de diferentes esferas em diferentes níveis para o exercício dos poderes definidos na Constituição[4] e apesar de agências internacionais de cooperação e organismos multilaterais estarem dispostos a abrir linhas de crédito para financiar essas experiências, o centralismo autoritário do governo federal pouco contribuiu para que elas pudessem ser viabilizadas. O que não é de espantar, uma vez que seu principal dirigente disputou a eleição presidencial afirmando, no dia 18 de agosto de 2018, que se fosse eleito retiraria o Brasil da ONU, sob a justificativa de que ela não passa de “uma reunião de comunistas”. Talvez seja também por esse motivo que ele e seu risível entorno familiar e seu iletrado entorno militar sejam contrários à autonomia dos entes federativos. Entre outras razões, porque há tempo vários municípios vêm aceitando compromissos e obrigações definidos em políticas públicas formuladas em âmbito internacional — políticas essas contrárias ao viés provinciano e rústiuco hoje prevalecente no Palácio do Planalto. Por isso, investir contra a autonomia dos Estados e dos municípios e considerar como inimigos prefeitos, governadores e agências e membros de agências e organizações internacionais é um modo imbecilizado, irresponsável e inconsequente de ser coerente com seus risíveis interesses ideológicos e com seus rasteiros valores conservadores.
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Notas:
[1] Cf. Folha de S. Paulo, edição de 20 de abril de 2020.
[2] Ver Max Weber, El politico y el cientifico, Madrid, Alianza Editorial, pp. 81-85.
[3] Cf. José Arthur Giannotti, Democracia requer aceitar a contrariedade, in O Estado de S. Paulo, edição de 28 de março de 2014.
[4] Ver, nesse sentido, Estefânia Barboza, Gustavo Buss e Lucas Muniz da Conceição, Constitucionalismo multinível: do global à mega cidade, in Revista Insight Inteligência, Rio de Janeiro, edição de dezembro de 2021, pp. 53-65. Segundo os autores, “consciente dos problemas de sobreposição de competências que poderiam emergir, a Constituição também estabelece divisões de competência e temas que serão afetos à concorrência entre os entes federados. Desse modo, a inspiração central desse modelo reside na necessidade de subdivisão de interesses dos mais gerais e universais, aos mais locais e concretos”.
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