Institucionalidade democrática, lealdade ao povo e as nações de segunda classe

Quanto mais pedem “respostas” ao povo, como ocorreu com o comandante da Aeronáutica, mais incapazes se revelam de entender que, no Estado de Direito, a lealdade do presidente e dos militares não é devida aos cidadãos de modo direto mas, sim, à democracia. Um ensaio do Prof. José Eduardo Faria.

por José Eduardo Faria

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Os alvos de suas diatribes mudaram, o vocabulário foi reduzido para duas ou três centenas de palavras e a linguagem se tornou ainda mais chula, mas, de 2019 aos dias de hoje, o presidente Jair Bolsonaro manteve um ponto em comum em todos seus discursos: o modo como se refere ao povo e a maneira como o utiliza para descrever sua concepção de democracia.

A primeira vez em que o presidente explicitou sua compreensão do que é o povo numa democracia foi em agosto de 2019, num discurso que pronunciou em Itapira. “Eu respeito as instituições, mas devo lealdade apenas a vocês, povo brasileiro”, disse ele. Meses depois, em abril de 2020, Bolsonaro retomou o tema num discurso pronunciado em frente ao Palácio do Planalto, em, Brasília. “Eu sou a Constituição”, afirmou, após explicar que ele seria o intérprete dela para assegurar “o bem estar do povo”. E seguiu na mesma linha na segunda quinzena de abril deste ano, também em Brasília fez o mesmo em abril deste ano, também em Brasília.  “A temperatura está subindo. O Brasil está no limite. O pessoal [sic] fala que eu devo tomar providência. Estou aguardando o povo dar uma sinalização, porque a fome, a miséria e o desemprego estão aí”, berrou.

Na ofensiva que fizeram às instituições após a fala do presidente da CPI da Covid, senador Omar Aziz (PSD-AM), no sentido de que haveria um “lado podre das Forças Armadas envolvido em falcatrua dentro do governo”, os generais, almirantes e brigadeiros abrigados em seu governo retomaram as ideias do capitão reformado que os chefia. A nota de protesto expedida pelo Ministério da Defesa, compartilhada com o presidente e os comandantes das Forças Armadas, classificou como “grave, infundada e irresponsável” as afirmações do senador. Ela alegou que as Forças Armadas, apresentadas como “fator de estabilidade e equilíbrio”, foram atingidas “de forma vil e leviana”. E concluiu afirmando que elas “defendem a liberdade do povo brasileiro”. Dois dias depois, em discurso pronunciado na Academia da Força Aérea Brasileira, em Pirassununga, o ministro da Defesa, general Braga Neto deu bis. “Para assim assegurar […] a liberdade do povo brasileiro […], devemos servir e buscar o bem comum. Brasil acima de tudo.” No mesmo dia, o comandante da Aeronáutica, Brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, repetiu a ameaça da nota de protesto contra o presidente da CPI. A pretexto de fazer um “alerta às instituições”, criticou a CPI e, por tabela, o Poder Legislativo. “Aquilo lá é investigação? O povo tem de responder”, disse ele, quase que repetindo as mesmas palavras pronunciadas por Bolsonaro em Itapira, há dois anos.

A linha de continuidade entre essas afirmações não deixa margem a dúvidas. Quanto mais falam em povo, menos seus autores compreendem que na democracia, a relação entre o Estado e seus cidadãos não é direta. Pelo contrário, ela é mediada pelas instituições legislativas e judiciais — as mesmas que foram alvo das críticas do presidente e dos “alertas” feitos por seu entorno militar. Quanto mais pedem “respostas” ao povo, como ocorreu com o comandante da Aeronáutica, mais incapazes se revelam de entender que, no Estado de Direito, a lealdade do presidente e dos militares não é devida aos cidadãos de modo direto mas, sim, à democracia — e, por consequência, às instituições e suas regras. Quanto mais pedem “sinalizações” a esse mesmo povo, mais se esquecem de que, no regime democrático, tal sinalização é dada não em “cercadinhos” ou auditórios de praças e cadetes, mas por meio de uma eleição livre. Ou seja, por meio de um pleito que Bolsonaro, cometendo flagrantemente um crime de responsabilidade, ameaça suspender, em 2022, caso o voto impresso não seja restabelecido. E como essa será uma eleição disputada por candidatos devidamente registrados e homologados pelo Tribunal Superior Eleitoral, não foi também por acaso que seu presidente, ministro Luís Roberto Barroso acabou sendo insultado recentemente insultado pelo atual inquilino do Planalto.

Todas as falas acima lembradas, portanto, carecem tanto de fundamento jurídico quanto de legitimidade política, uma vez que entreabrem um desprezo às instituições, uma afronta ao império da lei e um desejo de pôr fim à segurança do direito. Essa carência não apenas decorre de despreparo intelectual e de ignorância, mas, igualmente, de pendor autocrático e de uma estratégia política destinada a lhe permitir continuar no poder mesmo perdendo a eleições de 2022. Quando entregou 40% do ministério a militares e colocou membros das Forças Armadas em mais de seis mil postos no governo em cargos de confiança, Bolsonaro tinha em mente a criação de um fator de dissuasão em caso de alguma uma tentativa de impeachment ou destituição. Ele sabe que esse pessoal, mesmo estando na reserva, por ter sido formado numa organização verticalizada e baseada na hierarquia e na obediência, é reverente ao comandante em chefe. Também tem consciência de que, quando militares passam a ocupar cargos de civis, o poder político deles aumenta, apesar do flagrante desvio de função. Como lembrou Octavio Amorim Neto, da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas, a partir do momento em que os militares vêm seu “poder maximizado, a tarefa da democracia, que é o controle civil dos militares, torna-se muito mais difícil”, uma vez que a “militarização distorce o processo político”[*].

Por isso, quando passou a afrontar as instituições, ora exigindo que ministros dos tribunais superiores sejam objeto de uma CPI, ora acusando a CPI da Covid de agredir as Forças Armadas de “forma vil e leviana”, Bolsonaro sentiu-se suficiente seguro para executar sua estratégia: deflagrar tensões institucionais com apoio desse pessoal, para aproveitar eventuais protestos, desordens e badernas com o objetivo de se apresentar como o líder da única corporação capaz de atuar como “fator de estabilidade e equilíbrio” em momentos de crise. Ou seja, a única corporação capaz de restabelecer a ordem, mas a um preço ignominioso — a supressão da ordem constitucional e, em decorrência, das liberdades públicas e das garantias fundamentais.

Não é de se estranhar, portanto, que mais dia menos dia um governo com um número tão alto de militares na máquina governamental, ficasse tentado em usar a Lei de Segurança Nacional da ditadura militar para impetrar processos criminais contra jornalistas, sob a alegação de que maculam a imagem dos governantes. Impossível esquecer, igualmente, que o nome que o presidente e seu entorno militar querem indicar para o Supremo Tribunal Federal é o obscuro e servil advogado que assina essas ações absurdas e eivadas de inconstitucionalidade. Impossível esquecer, ainda, que nos últimos meses o presidente afirmou que a magistratura deve “conhecer o tamanho de sua cadeira” e seus áulicos aumentaram as queixas contra a Justiça, por um lado reclamando que ela não os deixa governar e, por outro, afirmando que somente conseguirão gerir o país sem ela.

Ao afirmar que “a democracia está ameaçada por alguns da toga, que perderam a noção de até onde vão seus direitos”, ao dizer que militares são “seres políticos e que o futuro do Brasil depende da vontade deles” e insistir que “só é “leal ao povo”, Bolsonaro está assim desprezando as mediações institucionais e buscando pretextos e narrativas para corroer a capacidade configuradora do regime democrático. Apesar de se apresentar algumas vezes como democrata, não tem preparo para entender que as transformações estruturais da sociedade podem ser feitas de modo mais eficiente e legítimo por meio de diálogos, negociações e compromissos do que pela imposição, pela força bruta. Por (de)formação, não aceita que, na democracia, o exercício do poder pressupõe uma contínua construção coletiva por meio da ação e da palavra na vida pública. Voluntarioso, disfuncional e indisciplinado, o que resultou no seu afastamento do que hoje chama de “meu Exército”, não atina que democracia é método e procedimento de negociação, é gestão de conflitos e neutralização de tensões institucionais, é demarcação de direitos e obrigações. Populista e demagogo, ele vê a democracia somente por um viés plebiscitário, como se ela se resumisse a consultas populares. Iletrado e idólatra de torturadores, despreza as minorias e faz pouco caso da pluralidade que caracteriza a sociedade atual, com todas suas diversidades, em matéria de política, cultura e gênero.

Tendo queimado todo seu capital político com uma gestão desastrosa, criando obstáculos para um programa de enfrentamento da pandemia, o que o está levando a ser acionado por crime de genocídio em tribunais internacionais, dificultando a oferta de um ensino público com qualidade e equidade, o que condena as novas gerações à emancipação social, e aparelhando órgãos de controle institucional, como o Ministério Público e o Carf, o fracasso do presidente minou suas possibilidades de reeleição. Para permanecer no poder, só restam o embuste, por um lado, e a cooptação de mais militares da reserva e da ativa que aceitem trabalhar em seu governo, por outro, sem hesitar em fazer “advertências às instituições” quando o Legislativo e o Judiciário tentarem obrigá-lo a curvar à ordem constitucional. Pelas notas de advertências já emitidas, pelas ameaças já feitas de que “a corda vai arrebentar” caso a oposição tente “governar por meio do STF e pelos juramentos de serem fiéis de serem “leais ao povo” que já fizeram, esses militares parecem pensar que generais, almirantes e brigadeiros são cidadãos de primeira classe, enquanto os civis não passariam de cidadãos de segunda classe. Esse pessoal se esquece de que, no mundo atual, países cujos governantes pensam desse modo tendem a se converter em nações de segunda classe.

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(Reprodução)

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Nota:

[*] Cf. entrevista concedida ao jornal Valor, em 15 de janeiro de 2021, p. A 16.

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