por Eduardo Augusto Pohlmann
No seu justamente famoso (embora muito mais citado do que realmente lido) A estrutura das Revoluções Científicas, Thomas Kuhn apontava para o fato de que havia um aspecto geracional nas mudanças de paradigmas na ciência: muitas das revoluções científicas eram levadas a cabo por pessoas jovens, ainda não suficientemente insertas no paradigma de uma tradição anterior. Isso não as levava a defender com unhas e dentes os seus dogmas, bem como não as impedia de quebrá-los uma vez que os fatos simplesmente não se amoldavam mais às teorias antigas. Essa tese, com as devidas adaptações, pode ser utilizada para resumir um aspecto central do tema em torno do qual gravitam muitos dos artigos escritos pelo Prof. José Eduardo Faria, agora reunidos na coletânea Corrupção, Justiça e Moralidade Pública (Editora Perspectiva), ou seja: o que estamos a ver no direito brasileiro contemporâneo é um choque de gerações e as culturas jurídicas a elas relacionadas.
De um lado, o que Faria ora chama de normativismo, garantismo ou formalismo (esses termos estão longe de ser sinônimos, e certamente o prof. Faria assim não os considera – no entanto, levando em conta que os artigos foram escritos em jornais para um público leigo, eles possuem a precisão adequada para o público a que se transmitem), e a cultura jurídica do legalismo e da interpretação literal da lei, ligadas à tradição romano-germânica, extremamente litúrgica, bacharelesca, pomposa e formal; do outro, o interpretativismo, principialismo ou neoconstitucionalismo (aqui faz-se a mesma ressalva anterior), e a cultura jurídica focada em princípios e argumentação baseada em fatos, ligadas à tradição anglo-saxão da Common Law, mais pragmática e realista. De um lado, a geração dos velhos juristas, focados em vícios processuais enquanto se espera pela prescrição; de outro, a geração dos intérpretes da nova geração do Direito, focados em analisar com mais flexibilidade as leis e basear-se em princípios para amoldar o conteúdo normativo à realidade, possuindo muitos dos seus operadores estudo no exterior, onde aprenderam técnicas modernas (como a delação premiada) e incorporaram uma cultura jurídica mais dinâmica – como, segundo Faria, os jovens procuradores da Lava Jato.
Essa disputa geracional, e os temas a ela ligadas, são o fio condutor da instigante coletânea de artigos, ensaios, conferências e entrevistas que estão reunidas no livro recém lançado do professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP. São artigos curtos escritos para jornais e publicações digitais, como o site Jota e este Estado da Arte. E eles trazem consigo exatamente as características do bom jornalismo: clareza, objetividade e concisão. Apesar disso, é inegável que, em alguns capítulos, muito embora a tese central e os argumentos para a defender sejam apresentadas sempre de forma clara e didática, os temas não são tratados com o devido aprofundamento que sua complexidade exige. O leitor fica com a sensação de que o assunto ainda poderia ser objeto de grandes indagações, mas que pela escassez de espaço não puderam ser suficientemente desenvolvidas.
Outro tema que perpassa o livro é o desafio à política e ao direito trazidas pela corrosão das instituições por práticas endêmicas de corrupção. Como o autor afirma diversas vezes, a Lava Jato escancarou que o Legislativo brasileiro, infelizmente muitas vezes, não passa de um gigantesco balcão de negócios, no qual os parlamentares não estão mais envolvidos no expediente mais basilar de qualquer cultura democrática, a busca do bem comum, mas no mais sórdido locupletamento.
A corrupção também traz desafios ao Direito: apesar de sua função principal ser a de resolver litígios, ele precisa, para operar, de uma organização social que seja ela mesma minimamente funcional. Ele depende de um relativo respeito à separação dos poderes, do primado da lei sobre a força, do funcionamento das demais instituições que em larga medida são também responsáveis pela própria produção da matéria-prima do Direito, especialmente o romano-germânico: a lei. Se essas condições não estão suficientemente satisfeitas, o descrédito do sistema político acaba por inevitavelmente contaminar o mundo jurídico – não à toa, nos recentes protestos os políticos são tão alvo de protesto como os mais altos magistrados do país. É nesse cenário de “noite polar, glacial e sombria”, para utilizar a expressão de Max Weber trazida por Faria para ilustrar os dramas da política, que o autor procura lançar, inicialmente, luzes sobre como chegamos nesse Estado, de que forma o Direito e seus operadores estão lidando com o problema e quais são as saídas possíveis desse impasse e crise generalizada.
Na tentativa de estabelecer contornos ao confronto entre Direito e Política alguns temas fundamentais da teoria do direito convergem: interpretação legal, papel do magistrado, a possibilidade ou não da imparcialidade judicial, autoridade e legitimidade da decisão judicial, entre outros. Faria aborda todos eles na primeira parte do livro, “Interpretação das leis, abuso de autoridade e eficácia do direito”. Sem dúvida, no entanto, o foco da análise e sua parte mais instigante está no estudo que o professor faz do ativismo judicial e seu problema correlato: a judicialização da política.
Apesar do tema não ser recente, ele vem ganhando cada vez mais peso à medida em que o Direito avança sobre pautas usualmente consideradas do Poder Legislativo, quando não sobre a própria liberdade dos seus membros, como o demonstram as inúmeras prisões de parlamentares nas operações recentes contra a corrupção. Apesar do apoio popular a esse expediente, é comum que políticos e cientistas políticos acusem o Judiciário, especialmente os setores envolvidos na Lava Jato, de promoverem, através do protagonismo judicial, a criminalização da política, o que estaria na origem da ascensão do populismo messiânico que tomou conta das ruas e redes sociais nas últimas eleições. O que Faria faz é abordar com riqueza o que, de fato, está envolvido nessa complexa questão.
Em primeiro lugar, a judicialização da política possui diversas matrizes, mas sem dúvida uma delas está no problema recém abordado: a corrupção e o descrédito que ela acarreta à política e ao sistema representativo. Para Faria, a política não cumpre mais seu papel, uma vez que a corrupção e ineficiência minaram sua credibilidade. No vácuo dessa descrença surgiu o protagonismo judicial. Protagonismo esse marcado por princípios, muitos de elevada carga moral (moralidade administrativa, igualdade, liberdade, transparência, probidade…). Junte o descrédito da política com um protagonismo judicial que utiliza princípios morais para julgar uma área que tradicionalmente foi infensa a tais considerações (“quem se agarra a princípios não faz política”, disse um famoso ex-presidente da República ao ser condenado), e está formada uma tensão insuperável entre política, as necessidades pragmáticas da realpolitik e as exigências éticas do direito sob o primado dos princípios.
Outras fontes da judicialização da política são muito mais estruturais e, no caso brasileiro, dependem da análise de algumas especificidades no tocante ao nosso processo e órgãos judiciais. Uma delas está ligada à existência de instrumentos jurídicos para tutelar direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, dos quais sem dúvida a ação civil pública é o exemplo por excelência. O tipo de direito que ela tutela favorece a judicialização da política, pois lidar com esses direitos (meio ambiente ecologicamente equilibrado, moralidade administrativa, fornecimento de medicamentos, vagas para crianças e adolescentes em escolas, necessidade de segurança pública…) é lidar com o bem comum e a alocação de recursos e direitos, tema essencial da política. E um dos legitimados para sua propositura, o Ministério Público, ganhou papel de destaque na proteção desse tipo de direito com a Constituição de 1988, quando passou a deixar de ser um braço do Executivo ao mesmo tempo em que ampliou sua esfera de atuação para além da esfera penal. O Ministério Público, no Brasil, assumiu um papel que em outros países, como nos Estados Unidos, são da sociedade civil organizada em associações, o que em boa medida está ligado à questão histórica da formação do povo americano e brasileiro (aqui, o Estado surgiu antes da sociedade civil).
Da mesma forma, a judicialização da política é inextrincável do próprio conteúdo da Constituição e do papel que ela confere ao Poder Judiciário, especialmente ao Supremo Tribunal Federal. O Judiciário, como corretamente aponta Faria, não é mais apenas um árbitro das regras do jogo, mas sim um ator fundamental na concretização de diversos direitos fundamentais, inclusive direitos sociais – na expressão do autor, o STF é um verdadeiro depositário da legitimidade constitucional. A Constituição brasileira é pródiga em instituir diversas normas programáticas, diretrizes e objetivos que devem ser atingidos pelo Estado brasileiro e, nessa tarefa, o Poder Judiciário é peça fundamental para evitar o que a doutrina constitucionalista chama de “síndrome da ineficácia das normas constitucionais”. Para tanto, há diversos instrumentos jurídicos positivados para tanto, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão e o Mandado de Injunção. Essa atuação do Direito sobre questões tradicionalmente afeitas à política, portanto, não se trata apenas de veleidade ou autoritarismo de juristas, mas muitas vezes da mais simples obediência à lei e à Constituição. No entanto, como para atuar nessa área o operador do Direito muitas vezes tem que se valer de normas abertas e conceitos jurídicos indeterminados, é comum tanto que ele abuse dessa discricionariedade (procurando “fazer a história avançar”, para usar a expressão de um Ministro assumidamente iluminista do STF) como também seja alvo, justa ou injustamente, dessa crítica por parte dos demais poderes.
E esse é um dos grandes dilemas da judicialização da política: como aceitar a discricionariedade inevitável no ato de interpretar sem cair no abuso de interpretação e acabar por invadir desmedidamente as atribuições de outros poderes? Como deve o Direito se comportar frente à necessidade tanto de concretizar direitos sociais como de exercitar um mínimo de autocontenção? Não há respostas a priori para tanto, e é da natureza do direito que elas não existam. Como Faria diversas vezes cita ao longo dos artigos, “a vida do direito não é lógica, é experimento”. A frase é do jurista norte-americano Oliver Wendell Holmes Jr., um dos maiores expoentes do realismo jurídico, e reflete bem a posição do autor nesse e em tantos outros assuntos: será a experiência e o tempo que dirão se vale a pena ao Judiciário adotar uma postura mais ativa ou contida na efetivação de direitos sociais.
Na segunda parte do livro, “Instituições, Democracia e Sociologia da Constituição”, o foco é outro: oferecer uma análise sociológica da Constituição e de ideias para resolver nossa crise. Um tema que perpassa essa seção é a ideia de que instituições políticas e jurídicas precisam “colar” na realidade social (o que Faria chama de “acoplamento entre a estrutura política e as estruturas sociais e econômicas”), ou seja, não podem ser simplesmente importadas desconsiderando-se seu contexto ou aplicadas sem verificar se elas se harmonizam com a estrutura e a tradição do país em que serão implantadas. Como afirmava o constitucionalista Oliveira Vianna, várias vezes citado por Faria, “nossos legisladores não conhecem – e mesmo desdenham conhecer – o país e o povo para que legislam”. Fica claro que, para o professor da USP, não há ciência política ou sociologia jurídicas sólidas sem profundo conhecimento da realidade do Brasil.
Esse é o tom do artigo sobre semipresidencialismo, proposta apresentada ainda no governo Temer, em que Faria faz exatamente esse trabalho: mostrar “o descompasso entre ideias e doutrinas europeias importadas pelas classes dirigentes, em matéria de instituições políticas, e as condições econômicas, sociais e culturais do país”. No que segue ele elabora uma série de problematizações sobre a plausibilidade de implantar no país um sistema de governo que pressupõe exatamente o que falta ao Brasil: um “sistema partidário organizado, com agremiações representativas e dotadas de identidade ideológica”.
A mesma ideia está presente no artigo sobre a reforma da Constituição. Faria comenta a tentativa de parlamentares conterem o ativismo do STF e sua intromissão no processo legislativo através de um enxugamento normativo. Um dos problemas analisados é que uma Constituição sem princípios pressupõe uma sociedade razoavelmente homogênea, com práticas sociais sedimentadas. Não é o caso do Brasil, em que a fratura social é visível. Nesse cenário, princípios operam como amálgamas de diversas expectativas, muitas contraditórias até, que por seu grau de fluidez e generalidade comportam interpretações diversas. Essas generalidades e abstrações são concretizadas tanto pelo legislador infraconstitucional quanto pelos operadores do Direito – daí a acusação de que estariam legislando (em certo sentido estão, mas porque é inevitável que ocorra esse fechamento no caso concreto. Por exemplo, a liberdade em abstrato pode ser objeto de defesa por pessoas das mais diversas inclinações políticas, mas as hipóteses de prisão preventiva ou a execução antecipada da pena são objeto de profunda divergência). A supressão dos princípios da Carta Magna, para Faria, acabaria por enfraquecer esse fator aglutinador que eles representam numa sociedade heterogênea.
O Direito perpassa nossas vidas. Da mais simples compra e venda ao ato de pegar um metrô, o fenômeno jurídico abarca praticamente qualquer das nossas condutas. Sua presença se exacerbou nos últimos anos. Com a midiatização dos processos judiciais, televisionamento de julgamentos importantes no STF, a espetacularização de operações policiais, a deflagração de megaoperações para desbaratar complexas organizações criminosas, temas jurídicos cada vez mais passaram a ser discutidos nas nossas conversas cotidianas. Ao mesmo tempo, há uma sensível ausência de reflexão, esclarecimento e crítica acerca desse novo fenômeno. Nossos debates são desinformados e irrefletidos, com pouco ou nenhum ganho para uma opinião pública lúcida – algo fundamental para qualquer democracia. A coletânea de artigos do Prof. José Eduardo Faria reunidas neste Corrupção, Justiça e Moralidade Pública é uma feliz tentativa de suprir essa lacuna.
Eduardo Augusto Pohlmann é Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Mestre em Filosofia pela mesma universidade e Mestre em Direito Público (LL.M) pela London School of Economics and Political Science (LSE).
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