por Fernando Schüler
Em 2006, o escritor norte-americano e antigo estrategista republicano, Kevin Phillips, lançou um alerta sobre o estado da democracia americana, em seu livro American Theocracy, que rapidamente tornou-se um best-seller. Phillips alertava sobre o declínio do sistema político americano, marcado pela renúncia a valores universalistas, o poder do dinheiro e, em particular, pela ameaça representada pelo obscurantismo religioso no mundo da política. Fenômenos que “deformaram o Partido Republicano e sua coalizão eleitoral, silenciaram vozes democratas e se tornaram uma ameaça crescente ao futuro dos EUA”, dizia o professor, acrescentando: “nenhum poder mundial líder na memória moderna tornou-se prisioneiro do tipo de infalibilidade bíblica que descarta o conhecimento e a ciência. O último paralelo foi no início do século XVII, quando o papado enquadrou Galileu por dizer que o Sol era o centro do sistema solar”.
O tom pessimista e certa propensão ao exagero estão longe de ser uma novidade, na análise política, e eram relativamente comuns na interpretação da democracia americana, década e meia atrás. Estávamos em meio à administração de Georges W. Bush, os Estados Unidos viviam o período pós-11 de setembro, a guerra contra o terror, bem como os conflitos subjacentes à controversa invasão do Iraque.
Os temores de Phillips, ao final, se tornaram um tanto sem sentido. Dois anos após o lançamento de seu livro, os Estados Unidos elegeriam um presidente negro, campeão dos direitos civis, que encerraria a guerra do Iraque, poria fim à guerra contra o terror, apostaria no multilateralismo e recolocaria os Estados Unidos como país líder da democracia, em escala global.
Oito anos depois, a bússola da política norte-americana faria novamente seu giro. Em uma campanha surpreendente, que fez quebrar o recorde histórico de participação popular nas primárias republicanas, um candidato anti-establishment, midiático, avesso ao politicamente correto, com retórica de traço populista, venceria as eleições presidenciais, em 2016.
A eleição de Trump rapidamente se transforma em ponto de inflexão nas visões sobre a democracia contemporânea. Análises prudentes sobre os impasses do sistema democrático, particularmente após à crise econômica de 2008, rapidamente alcançariam um tom dramático. David Runciman abre seu elegante How Democracy Ends dizendo que “qualquer processo que leva a um resultado ridículo como este deve ter falhado gravemente ao longo do caminho”; Yascha Mounk chamou a eleição de a “mais chocante manifestação da crise da democracia”; Steven Levitsky e Daniel Ziblat elencam quatro critérios para definir se uma democracia está em risco. Nenhum candidato majoritário, no último século teria preenchido nenhum desses critérios (exceção feita a Nixon). Trump corresponderia a todos: não teria compromissos com a regra democrática; toleraria violência e ameaçaria direitos civis e a mídia e negaria a legitimidade dos oponentes.
Chama a atenção o último critério. É precisamente o que Levitsky e Ziblat parecem fazer, com alguma sofisticação, em relação a Trump. Ele surge fundamentalmente como um personagem bizarro, espécie de erro de percurso a ameaçar a democracia americana. É residual o fato de que tenha conquistado legitimamente a candidatura republicana e vencido uma eleição sob as regras do jogo. Um tipo banal de argumento circular parece orientar o raciocínio: Trump é um personagem autoritário; o autoritarismo é incompatível com a democracia, logo Trump é um problema na democracia. Perde-se a distância, o saudável compromisso das ciências sociais com o entendimento do outro e algum ceticismo em relação às próprias ideias. Há um certo público a ser atingido, e este público não parece estar muito preocupado com prudência e autocensura, em uma sociedade polarizada, da qual nem mesmo a academia parece escapar.
É interessante observar a dificuldade de parte relevante do mainstream acadêmico com uma abordagem pluralista da democracia. Inclinações políticas bastante evidentes se apresentam como ponto de vista universal a partir do qual a democracia é julgada[1]. Meu argumento é que isto é simplesmente um erro. Como observou o então presidente Barack Obama, em um inspirado discurso no dia seguinte à vitória de Donald Trump, a história da democracia é um processo aberto, em forma de zigue-zague, feito de idas e vindas, no qual ninguém detém a última palavra. Espaço de vitórias e derrotas cotidianas no qual todos, a longo prazo, tendem a ganhar.
Obama se dirigia ao país, mas em especial ao público democrata, por óbvio frustrado com o resultado eleitoral. Sua preocupação, ao argumento, é evitar o juízo de valor. A democracia é feita de idas e vindas, mas ninguém tem a chave capaz de relevar a verdade da política ou da própria democracia. Ele recusa a compreensão da política a partir da lógica amigo-inimigo e portanto recusa a adjetivação fácil e a afirmação de si mesmo como julgador universal. Obama é um democrata, e faria bem à academia refletir sobre seu modo de argumentar.
A abordagem pluralista da democracia supõe considerar os atores que atuam na cena pública como igualmente legítimos, desde que obedeçam as regras do jogo livremente instituídas pelo próprio processo democrático. Ela se mantém a distância segura do juízo de valor. Recusa-se a atribuir um valor distinto aos atores, na cena pública, assim como a suas posições em políticas públicas. O que é ou não razoável passa a ser definido no interior do próprio processo democrático. A obediência à Constituição, sujeita à supervisão última da Suprema Corte, e a obediência aos ritos democráticos. Ninguém está autorizado, desde alguma posição particular no jogo político, de julgar a correção ou a qualidade democrática desta ou daquela proposição.
Mesmo indicadores de qualidade da democracia globalmente reconhecidos parecem falhar neste critério. Em tese, não há problema que uma pesquisa acadêmica apresente uma inclinação política. O problema surge quando ela se o faz de modo não explícito, apresentando-se com pretensões universalistas. Assumir um certo tipo de inclinação política (procedimento relativamente comum no jornalismo e no mundo dos think tanks), é uma forma de agir com honestidade intelectual, e evitar que se induza a erro aqueles que, desavisadamente, irão utilizar os indicadores como referências de análise.
Observe-se o caso do relatório V-dem 2018, produzido a partir do amplo e meritório trabalho de pesquisa do Varieties of Democracy. Ele sugere a existência de um processo crescente de autocratização da democracia:
“No Democracy Report 2018, descobrimos que os níveis globais de democracia ainda estão perto de uma alta de todos os tempos. No entanto, embora aspectos eleitorais da democracia melhoraram em muitos países nos últimos anos, liberdade de expressão, mídia e sociedade civil estão sob ameaça em outras partes do mundo. O relatório identifica tendências preocupantes em vários países importantes, como Brasil, Índia, Polônia, Rússia, Turquia e Estados Unidos.”[2]
O Brasil é apresentado como tendo sofrido o mais acentuado declínio democrático, no dois anos anteriores a 2018[3]. Mesmo com esta atribuição, nenhuma evidência ou argumentação sistemática são apresentadas para explicar como o relatório chegou a esta conclusão. O Brasil viveu, no biênio em questão, um dos mais intensos processos de participação política de sua história recente, que resultou no impeachment da Presidente Dilma Rousseff[4]. O processo seguiu o rito chancelado pelo Supremo Tribunal Federal, tendo sido presidido pelo próprio presidente da corte constitucional brasileira. Em 2016, o país atravessou um processo eleitoral, no âmbito municipal, na mais absoluta normalidade. No Congresso Nacional, aprovou-se um conjunto significativo de reformas[5]. É previsível que pesquisadores e intelectuais tenham visões distintas sobre o mérito da decisão tomada pelo Congresso Brasileiro, no processo de impeachment, e sobre aspectos gerais da política brasileira, neste período. É possível que eles tenham razão, ou que a razão esteja com quem pensa de outro modo. Algo bastante diferente é sugerir que o processo, enquanto tal, expresse com alguma objetividade um declínio na democracia brasileira.
No relatório V-Dem 2019, o Brasil surge novamente como exemplo de declínio democrático. Deste vez, com uma rápida justificação. O argumento sugere que a eleição de Jair Bolsonaro (um “populista de extrema direita”) se seguiu de uma deterioração do clima político e aumento da polarização, e cita o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula (sob “acusações” de corrupção), como tendo levado a manifestações de massa. A partir daí, a conclusão: tais exemplos de deterioração do clima político contribuem para uma erosão significativa (da democracia).
A pergunta óbvia: por que? Por que o impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Lula, condenado em segunda instância pelo justiça brasileira, com diversos pedidos de habeas corpus negado junto ao STJ e ao STF, e os debates que levam à eleição de Jair Bolsonaro, seriam exemplos ou razões para uma erosão democrática? Vai aí, em primeiro lugar, um problema de método (veremos isto rapidamente adiante): pinçar dois ou três exemplos da realidade, dentre muitos exemplos que poderiam ser aventados, e atribuir a estes exemplos um valor negativos, consiste em um método aceitável para a análise teórica da democracia? A estes mesmo exemplos, como observarmos anteriormente, poderia se atribuir um juízo positivo, ligado à força da democracia brasileira para combater a corrupção e punir um crime de responsabilidade. O presente trabalho não entra neste juízo de mérito. Divergências de juízo fazem parte do próprio jogo democrático. O que não parece razoável é julgar a democracia a partir de alguns exemplos e uma opinião política.
Vai aqui um elemento comum à retórica sobre a crise da democracia atual: a atribuição de um elemento antidemocrático a decisões políticas das quais eventualmente se discorda, a partir de certo viés em regra não explicitado. Outro ponto: confunde-se erosão democrática com eventuais contextos de maior participação, ativismo e tensão política. Um processo de impeachment supõe, necessariamente, tensão política. Isto não significa que ele não seja, sob um ponto de vista relevante, uma afirmação democrática e um sinal de vitalidade das instituições, pouco importando se o pesquisador concorda ou não com o mérito do processo. O mesmo se dá em relação à eleição de um político de “extrema direita”. 55% dos eleitores fizeram esta escolha, a partir de um amplo debate público. Valeria o mesmo raciocínio na hipótese contrária, se Fernando Haddad, o contendor no campo da esquerda, tivesse obtido a vitória. Talvez seja razoável dizer que, para uma boa análise da democracia, é preciso primeiro incorporar o sentido da democracia ao próprio procedimento analítico.
A mesma inclinação se observa no relatório V-Dem 2018 quando fundamenta suas razões para o declínio da democracia norte-americana[6]. O relatório aponta que
“o retrocesso é encontrado principalmente no componente liberal da democracia. Medidas de supervisão efetiva e uso do poder do legislativo para investigar o executivo, a fiscalização do partido da oposição, a compliance com o judiciário e o respeito pela constituição declinou (…) Ao mesmo tempo, também registramos algumas mudanças na equidade geral das eleições, liberdade de discussão, e o arco de perspectivas políticas na mídia.”
Isso inclui a capacidade dos partidos de oposição para exercer atividades de supervisão e investigação, bem como a probabilidade de que o Congresso ou outro órgão investigue o executivo e a ele se oponha, caso constatadas atividades inconstitucionais. Aqui, a alegada incapacidade do Congresso de fiscalizar e eventualmente responsabilizar o executivo, é apontada como sinal de fragilidade da democracia. No Brasil, porém, quando o Congresso mostrou precisamente esta capacidade, em 2016, ela não foi, ao que tudo indica, apontada como indicativo de sua força.
O relatório diz que “nos Estados Unidos, são principalmente as restrições legislativas no executivo que se enfraqueceram significativamente, assim como a qualidade da reflexão (reasoning) pública”. Seria interessante perguntar qual o significado e quais indicadores usados para mensurar a “qualidade da reflexão pública”, ou em que sentido os Estados Unidos, sob a égide da Primeira Emenda, carecem de “liberdade de discussão” ou ainda “falta de confiança na mídia”. Desconfiar da mídia não seria, por si mesmo, um direito democrático? De que ponto de vista, exatamente, alguém poderia julgar a qualidade do debate ou a liberdade de discutir os mais diferentes temas em uma grande democracia? Uma solução, quem sabe, seria explicitar os critérios e dados empíricos utilizados na análise. Caso não existam, explicitar que se trata de uma “percepção sobre a qualidade do debate público”. Neste caso, seria apropriado apontar as fontes da percepção: a visão dos autores, uma amostragem feita entre professores de ciências políticas, do público em geral. Algo que possa razoavelmente ser tomado como um indicador, e não meramente um exercício de opinião.
O relatório menciona ações do Presidente Trump que exemplificariam os riscos de autocratização da democracia americana:
- proibições de imigração legalmente questionáveis
- ordens executivas para reter dinheiro federal de cidades-santuário
- expansão do escopo do perdão presidencial
- diplomacia pelas mídias sociais
- potenciais violações da Cláusula do Emolumento
Chama a atenção, na lista apresentada, a inclusão de eventuais decisões de governo e opções de políticas públicas (sujeitas ao crivo institucional do sistema de freios e contrapesos da democracia americana e, por óbvio, ao dissenso da opinião pública) como sinais de debilidade democrática. É legítimo divergir das visões de Trump sobre a imigração ilegal, nos Estados Unidos, sobre a construção do muro, na fronteira com o México, ou temas afins. Eles foram objeto da campanha eleitoral e a sociedade americana manifestou suas posições. Da mesma forma, é legítimo considerar que o Presidente deveria utilizar menos, ou de um jeito diferente (talvez como o fez Barack Obama), sua conta no Twitter. Algo inteiramente distinto é considerar que coisas desse tipo sejam sinais de debilidade democrática.
O experiente analista e escritor Janan Ganesh capturou com precisão este olhar mais amplo sobre o significado da democracia. Sobre algumas das ações do Presidente norte-americano, mencionadas pelo V-Dem 2018, Ganesh observa que
“sem dúvida, o Sr. Trump ainda erra – no tema das tarifas, no seu estilo de homem forte – mas estas são escolhas políticas dentro dos direitos de um presidente. Quando ele se distancia desses direitos, entra em cena um conjunto de juízes, legisladores e investigadores.”[7]
Ganesh expressa de modo simples uma percepção mais complexa da democracia, que escapa a quem toma pelo valor de face, apressadamente, atos de fala, erros, diferenças de estilo no comando ou simplesmente visões distintas sobre políticas públicas, como sinais de debilidade democrática. A força da democracia está longe de se definir pelas intenções, iniciativas ou retórica do chefe de governo (ou das opiniões que alguém tenha a seu respeito), mas envolve a capacidade de resposta de uma rede bastante complexa de instituições. Instituições formais, integrando o sistema de freios e contrapesos, e instituições informais, envolvendo as redes de organizações civis, a imprensa profissional e a opinião pública difusa nas redes sociais. Ela se mostra na força das instituições de fazer frente ao erro ou à ação eventualmente arbitrária por parte dos agentes públicos, e sua capacidade de filtrar e moderar posições políticas.
É precisamente disso que trata uma “potencial violação da cláusula de emolumentos”. Há um processo em curso, na justiça americana, que decidirá se há alguma violação da referida cláusula, visto que delegações estrangeiras se hospedam no Trump International Hotel, DC. Mesmo que se trate de transações comerciais regulares e que Trump tenha decidido doar para o tesouro americano o lucro auferido com a hospedagem de delegações de governos estrangeiros, o processo foi aceito pelo juiz encarregado, e segue sua tramitação normal na justiça americana. O processo mostra que há um judiciário independente, nos Estados Unidos, e que há, por parte das instituições, um ativo zelo pela Constituição. Caso Trump seja considerado culpado, sofrerá as consequências previstas em lei. Em que sentido um caso como este poderia ser tomado como ameaçando a democracia americana?
Um mesmo tipo de imprecisão e subjetividade analítica se observa na leitura do relatório anual da Freedom House, Freedom in the World 2019[8]. Refiro-me aqui especificamente ao tratamento dado ao Brasil, no relatório. O documento indica um declínio na democracia global pelo 13º ano consecutivo. Em 2018, 68 países teriam regredido, no indicador (contra 71, em 2017), incluindo-se aí o Brasil. A justificação para o declínio identificado no caso brasileiro diz
“O Brasil é uma democracia que realiza eleições competitivas e é caracterizada por um vibrante debate público. No entanto, jornalistas independentes e ativistas da sociedade civil correm o risco de assédio e ataque violento, e o governo provou ser incapaz de conter uma taxa crescente de homicídios ou enfrentar a violência desproporcional contra a exclusão econômica de minorias. A corrupção é endêmica nos níveis mais altos, contribuindo para a desilusão com os partidos políticos tradicionais”.[9]
O Monitor da Violência 2018[10], relatório anual sobre a violência, no Brasil, fruto de uma parceria entre o Núcleo de Estudos sobre a Violência, da Universidade de São Paulo, Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o G1, portal de notícias da Rede Globo, registra um recuo de 13% do número de mortes violentas no país, entre 2017 e 2018. Foram 51.589 mortes, em 2018, contra 59.128 no ano anterior. Trata-se da maior queda registrada na série história de crimes violentos, desde 2007. Como seria possível que uma “taxa crescente de homicídios” fosse utilizada como indicador de declínio da democracia, em 2018?
Este poderia ser apenas um caso. Mas não é. Segundo o relatório anual da ONG Repórteres sem Fronteiras[11], foram registradas 80 jornalistas mortos e 408 detidos ou reféns, em nível global. Nenhum registro no Brasil. A organização The Press Emblem Campaign identificou 4 mortes de jornalistas, no país, em 2018, no contexto de 36 assassinatos registrados nos últimos 5 anos. O que se verifica é um quadro crônico de “risco de assédio e ataque violento” a jornalistas, no Brasil, e não um sinal de declínio da democracia, no país, em 2018. Vai aqui um problema metodológico: o uso de elementos crônicos da realidade de um país para justificar processos de curto prazo. No caso, de ascensão ou declínio democrático.
Sobre a corrupção endêmica, o país passou, ao menos desde 2005, por sucessivos escândalos de corrupção sistêmica, nos conhecidos casos do Mensalão, Petrolão e nos processos da operação Lava-Jato. O país eliminou o financiamento empresarial de campanhas, por decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2015, e vem produzindo um amplo processo de investigação de crimes contra o patrimônio público, envolvendo precisamente os “níveis mais altos” do mundo político (incluindo-se as prisões do Ex-Presidente Lula da Silva e do Ex-Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha). Por certo não são processos isentos de controvérsia, além de gerarem tensões, no mundo político. Demonstram, porém, a fragilidade ou a força da democracia brasileira?
O mesmo vale para a “desilusão com os partidos tradicionais”. Em que sentido a desilusão com partidos tradicionais, em particular no contexto do sistema partidário brasileiro, pode ser visto como sinal de declínio democrático? Processos de renovação política, de crítica e afastamento dos eleitores em relação a partidos tradicionais, eventualmente envolvidos em processos de corrupção, não apenas são normais, como expressam a vitalidade da democracia. O que ocorreu, nas eleições brasileiras de outubro e novembro de 2018, foi precisamente um processo de renovação política. Os dados claramente demonstram este fenômeno[12]. Neste mesmo período, a partir da medição de um dos mais tradicionais institutos de pesquisa brasileiros, o Datafolha, houve uma relativa retomada de confiança nos partidos e no Congresso Nacional. Entre junho de 2018 e abril de 2019, a taxa dos que não confiam no Congresso caiu de 67% para 41% dos eleitores[13].
O que vemos na análise da Freedom House é um junção relativamente descuidada de opiniões, que não obstante se apresenta como análise “objetiva” da realidade política. Trata-se de um tipo de argumento impressionista ou falácia cherry picking (agravado por envolver erros factuais). Ela foi bem definida por Gary Klass, estatístico da Illinois State University, como a “seleção enviesada de indicadores sociais para apoiar ideias preconcebidas”. Na visão de Klass, se trata de um fenômeno crescentemente comum, do debate público, diante da expansão das “alternativas de indicadores sociais e séries temporais que permitem ao pesquisador escolher pontos de início e fim para comparação” (Klass, 2008). Desse modo, é possível dizer que o Congresso Americano é incapaz de monitorar adequadamente e se contrapor ao executivo federal, até as eleições intermediárias, de 2018, quando os democratas obtiveram maioria na Câmara dos Deputados, ou que há grupos nazifascistas agredindo minorias, no Brasil, até se descobrir que eram falsas as acusações de que uma suástica havia sido marcada no corpo de uma jovem estudante, no sul do Brasil[14].
Quando se observa como o dado empírico é construído, selecionado e ordenado, percebe-se que boa parte do que se apresenta como evidência factual carrega consigo um amálgama de juízos de valor, segundo um viés político bem determinado. Isto apenas nos sugere cuidado. O cuidado de fazer as perguntas incômodas e retomar a velha lição weberiana sobre a exigência de neutralidade axiológica que envolve o trabalho da ciências, e em particular a pesquisa em ciências sociais.
Nos anos recentes, este tipo de procedimento analítico ganhou espaço, na literatura política, sob a lógica do argumento da “autocratização desde o interior da democracia”. Lührmann e Lindberg lançam mão desta argumentação, que enfatiza processos de declínio, em grandes democracias, não pela via da intervenção abrupta, do golpe ou ruptura da ordem constitucional, mas via processos formalmente legais, porém capazes de gradualmente fragilizar e mesmo destruir, no devido tempo, as instituições democráticas. Observe-se:
“Enquanto os autocratizadores antes da terceira onda tomavam medidas claramente reconhecíveis, como emitir uma nova constituição não-democrática ou dissolver a legislatura, a maioria dos autocratizadores contemporâneos não altera as regras formais. Assim, também o modo como os incumbentes minam a democracia tornou-se mais informal e clandestina (LÜHRMANN & LINDBERG, p. 14, 2019)”
Trata-se de um argumento persuasivo, sem dúvida capaz de descrever apropriadamente processos de declínio democrático em países como Venezuela, Rússia, Hungria ou Turquia, em momentos distintos e em contextos muito diferentes entre si. Há, porém, um risco. A aplicação genérica da tese (governantes podem minar a democracia de maneira informal ou clandestina, sem ferir normas legais), em democracias bem estabelecidas, abre espaço para que (no limite) qualquer atitude, política pública ou jogo retórico feito por um governante possa ser apontado como uma ameaça à democracia. Steven Levitsky, autor de How Democracies Die, apontou o presidente Trump como um fator de risco para a democracia americana[15] pelo seu “incentivo à violência”, durante a campanha; por dizer, em um debate de campanha, que iria pedir, caso eleito, a investigação do caso dos e.mails da ex-Secretária de Estado Hillary Clinton, por um promotor especial; e por sugerir, via redes sociais, que se deveria mudar as leis de difamação, relativamente a textos e matérias publicadas pela mídia. Em sequência, comparou Trump com o ditador peruano Alberto Fujimori, e a polarização da política americana atual com o contexto chileno do início dos anos 70, que levou ao golpe militar e à sangrenta ditadura do general Augusto Pinochet.
De um lado, temos a falácia impressionista. Episódios esparsos e controversos são pinçados da realidade (ao mesmo tempo em que se omite toda a série de fatos que confrontariam a tese que se quer favorecer) e apresentados como algum tipo de “prova empírica”. Alguém representando a posição inversa poderia, com facilidade, fazer a mesma coisa. A subjetivação surge ainda mais clara no uso das comparações. Fujimori fechou o Congresso Peruano, em 1992, com tanques na rua, interveio no poder judiciário e prendeu líderes de oposição. Algo evidentemente distante da tese do deslizamento democrático no interior das próprias instituições democráticas, sugerida por Levitsky[16]. A comparação contradiz o elemento mais essencial de seu próprio argumento, à parte desconsiderar o envolvimento direto de Fujimori com o crime organizado e um sistema altamente sofisticado de corrupção de Estado, amplamente documentado.
O que se observa, neste tipo de análise, é o transbordamento de inclinações políticas bastante evidentes para o universo das ciências sociais. Não se trata de algo propriamente incomum. O pano de fundo deste tipo de comprometimento é a rejeição, em alguma medida relevante, do que chamamos anteriormente de abordagem pluralista da democracia.
Na filosofia política contemporânea, poucos expressaram o sentido da democracia pluralista de modo mais abrangente do que John Rawls. Na visão rawlsiana, a modulação de um acordo político, nas sociedades democráticas, marcadas pela coexistência de visões morais e políticas de natureza abrangente (e como tal irreconciliáveis, no plano ético-filosófico), exigia que se aplicasse à própria filosofia o princípio da tolerância. Seria preciso admitir a legitimidade de visões éticas abrangentes, em uma sociedade democrática, ainda que incompatíveis entre si. Incompatíveis sob o ângulo estético, da crença religiosa e da fundamentação ética. A vinculação genérica da atual agenda conservadora com processos de erosão democrática agride estes pressupostos. A expressão de ideias conservadoras, tanto quando a expressão de ideias progressistas (e múltiplas variáveis) são, elas mesmas, produtos da democracia. Do uso da razão e do direito à escolha política, por parte dos cidadãos.
A análise política deveria incorporar o sentido pluralista da democracia, e a filosofia tem um contribuição a oferecer aí. Seu papel é ir além do que se apresentada como dado empírico e perguntar sobre seus fundamentos. Examinar o rigor dos argumentos, o ordenamento factual, o uso de critérios, com isso ajudando as ciências sociais a pensar à distância segura das inclinações políticas e culturais que povoam, legitimamente, nossas democracias.
Fernando Schüler é Doutor em Filosofia (UFRGS) e professor do Insper.
Notas
[1] A academia, aqui, não parece se distinguir fundamentalmente do que se passa na sociedade, como um todo. O relatório The Democracy Project mostra que a percepção de risco democrático, nos Estados Unidos, varia fortemente segundo as inclinações partidárias dos cidadãos. 57% de autodefinidos democratas concorda que Estados Unidos correm o risco real de se tornar um país autoritário. Pela mesma margem, a maioria dos republicanos não identifica este risco. A academia, ao menos em tese, não deveria seguir estes fluxos de opinião.
[2] https://www.v-dem.net/media/filer_public/3f/19/3f19efc9-e25f-4356-b159-b5c0ec894115/v-dem_democracy_report_2018.pdf
[3] Declínio de 0,19 no Liberal Democracy Index – LDI (V-DEM 2017, p. 21).
[4] Em um de seus relatórios semanais, V-dem explica que “depois de uma turbulenta campanha eleitoral, o governo Dilma Rousseff tornou-se cada vez mais envolvido em uma rede de denúncias de corrupção e intrigas, resultando em seu impeachment em 2016” (https://www.v-dem.net/en/news/criticism-judiciary-system-brazil/). Omite-se o essencial: as razões do impeachment são relativas ao cometimento de crime de responsabilidade por descumprimento de legislação orçamentária, e expressam a vigilância do Congresso e sua capacidade de responsabilizar o executivo.
[5] Introdução da cláusula de barreira, proibição de coligações em eleições proporcionais, reforma da legislação trabalhista, Emenda à Constituição fixando um teto constitucional para a expansão da despesa pública, entre outras medidas de caráter estrutural.
[6] Declínio de 0,12 no Liberal Democracy Index – LDI (V-DEM 2017, p. 21).
[7] https://www.ft.com/content/8522481a-fdf4-11e8-ac00-57a2a826423e
[8] https://freedomhouse.org/report/freedom-world/freedom-world-2019/democracy-in-retreat
[9] https://freedomhouse.org/report/freedom-world/2019/brazil
[10] https://especiais.g1.globo.com/monitor-da-violencia/2018/mortes-violentas-no-brasil/
[11] https://rsf.org/sites/default/files/rsf_2018_pt.pdf
[12] Os índices de renovação na Câmara dos Deputados e do Senado Federal foram, respectivamente, de 52,5% e 85%, os mais altos registrados nas últimas duas décadas, no Brasil.
[13] https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2019/04/1987746-brasileiros-veem-forcas-armadas-como-instituicao-mais-confiavel.shtml
[14] Episódio amplamente explorado na campanha presidencial brasileira de 2018. A jovem foi posteriormente indiciada pela Polícia Civil do Rio Grande do Sul por falsa comunicação de crime.
[15] https://www.latimes.com/politics/la-na-pol-trump-democracy-levitsky-20180206-story.html
[16] Em sua expressão, “não há tanques na rua. A constituição e outras instituições nominalmente democráticas continuam no lugar. As pessoas ainda votam. Os autocratas eleitos mantém uma aparência de democracia enquanto evisceram a sua essência” (Levitsky, 2018, p. 5). É evidente que nada disso ocorreu no Peru de Alberto Fujimori. Comparar aquele processo de violenta e explícita ruptura constitucional com a situação americana atual é não apenas um erro na interpretação histórica, mas também um alerta do quanto o viés político pode fazer mal à compreensão da política.
Referências bibliográficas
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