Dever de inovar

Pelo dever de inovar. Por Mano Ferreira e Alan Gabriel Teixeira, do Livres, um ensaio sobre o papel dos movimentos cívicos em defesa da democracia.

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Dever de inovar

O papel dos movimentos cívicos em defesa da democracia

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por Mano Ferreira e Alan Gabriel Teixeira

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Praga, 1989

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Vivemos a era dos aplicativos, da economia compartilhada e das redes sociais. Um tempo marcado por um ritmo nunca antes imaginado de mudanças. A inovação chegou ao modo como nos transportamos, fazemos compras, mantemos nossas amizades ou procuramos um amor. Ao mesmo tempo, o topo das pesquisas presidenciais segue sendo disputado por um nome onipresente desde 1989, a primeira eleição após a redemocratização, e um capitão do exército que parece saído diretamente da ditadura que se encerrou logo antes. O sistema político brasileiro ainda não chegou ao século XXI.

O descompasso é visível no cotidiano. Nossas crianças seguram smartphones enquanto pisam no esgoto que escorre a céu aberto. Em meio a pandemia, juízes estaduais receberam mais de R$ 1,4 bilhão em penduricalhos e os portões das escolas públicas ficaram fechados para o futuro. O mundo mudou, mas os velhos vícios do Estado se cristalizaram. Onde podemos, vamos nos virando e correndo atrás como sociedade. Onde precisamos do setor público, seguimos reféns de castas aquarteladas, empenhadas em fazer com que a máquina funcione para si mesma.

Conectar as ações do Brasil oficial às demandas do Brasil real é a tarefa das instituições políticas — em especial, do Legislativo e dos partidos. O que acontece quando essas instâncias falham? Cabe à sociedade construir respostas. Os movimentos cívicos são uma tentativa. O propósito não é negar a política: é inová-la. Hoje, o exercício da cidadania pode estar na palma da mão. Numa era hiperconectada, qualquer indivíduo pode ser um agente relevante na difusão de ideias. Mas a transformação política só acontece se as ideias viram ações reais capazes de solucionar os problemas. Para isso, o engajamento precisa ser mais profundo que o uso de uma hashtag. Precisamos de comunidades políticas abertas, vibrantes e eficientes.

Quem está disposto a aprofundar sua participação política? A resposta se associa ao desejo de se sentir parte da implementação de mudanças sociais relevantes e uma satisfação pessoal legítima, virtuosa e genuína que, geralmente, só se concretiza com o reconhecimento do seu papel pela comunidade. No best-seller A Estratégia do Oceano Azul, os autores Renée Mauborgn e Chan Kim, especialistas em negócios de inovação, destacam que o nível de satisfação e comprometimento das pessoas aumenta quando há justiça procedimental, ou seja, se o processo decisório da organização for justo, aberto à participação e transparente. Em outras palavras: se houver governança madura.

O indivíduo não quer ser olhado apenas como simples eleitor, mas como um sujeito político habilidoso e competente. Valorizar e respeitar a atividade política das pessoas significa considerar seus questionamentos e contribuições na tomada de decisões estratégicas. Quem se engaja em um projeto político quer compreender as razões e critérios utilizados nos processos decisórios, para saber se a escolha foi a melhor ou mais justa. No lugar de promessas vagas, um alinhamento de expectativas claras e factíveis.

Este desejo de participação é o que explica o alto engajamento na Assembleia Geral de Associados do Livres, realizada em fevereiro. Centenas de voluntários se deslocaram de suas casas, seja do Acre ou do Rio Grande do Sul, para participarem presencialmente em São Paulo. Outros ainda se engajaram virtualmente, através de aplicativo próprio. E com que objetivo? Deliberar regras de governança interna do movimento. Em suma, o cidadão quer ser reconhecido não como uma pequena peça no tabuleiro da política, mas como um jogador que participa ativamente das decisões.

Via de regra, essa é uma característica praticamente em extinção nos partidos brasileiros. Apesar de não haver comparação em termos de acesso a poder e recursos, os movimentos hoje têm o papel fundamental para a democracia brasileira de influenciar a transformação dessa realidade, cultivando ambientes de participação política abertos, justos e transparentes que sirvam de referência e atração ao engajamento cívico. Não por acaso,  os movimentos suprapartidários continuam crescendo e se consolidam como pólos de revelação de líderes capacitados.

Há uma nova geração de políticos que percebem que o exercício da liderança precisa ser constante e próximo da sociedade civil. Vejamos o caso de Marcela Trópia, vereadora de Belo Horizonte. Marcela foi coordenadora estadual do Livres em Minas Gerais. Junto com associados e voluntários do movimento, organizou eventos para discussão de políticas públicas por todo estado, cultivando uma participação política cotidiana, que não se restringe ao período eleitoral. Agora se destacando no exercício do seu primeiro mandato, permanece conectada organicamente ao movimento, mantendo sua abertura à sociedade e inspirando novas lideranças.

Como em qualquer mercado, contudo, o surgimento de agentes inovadores incomoda players já estabelecidos. Não à toa, assistimos a fortes reações do sistema político. A maior delas foi o aumento desproporcional do Fundão eleitoral para R$ 4,9 bilhões em 2022, instrumento que favorece a reeleição de quem já possui mandato e poder de barganha junto aos dirigentes partidários, dificultando a ascensão de líderes promissores. O político que aparece de 4 em 4 anos para pedir votos e repetir promessas absurdas e irrealistas está apelando a um volume abissal de recursos públicos para tentar se perpetuar. Isso tudo ignorando a vontade de 86% dos brasileiros, que se opõem ao valor do Fundão, segundo pesquisa do Instituto Millenium.

A injeção de subsídio público em favor de políticos bem relacionados é uma distorção do processo eleitoral que, na prática, amplia o afastamento entre a sociedade e a política. Isso mina a credibilidade e a qualidade da democracia. Afinal, quando o cidadão não é reconhecido, ele não coopera com o projeto político e perde a confiança nas instituições governamentais. O resultado final é a frustração, propiciando cenários perigosos de negação da política, onde ideias autoritárias parecem sedutoras.

Reconectar a sociedade ao sistema político e mudar o rumo desse ciclo vicioso é o desafio que os movimentos estão dispostos a enfrentar. Utilizar ferramentas do século XXI para inovar a política e engajar pessoas comuns na vida cívica é transformar a decepção causada pelos conchavos de gabinete em motivação de mudança. Oferecer ao país uma comunidade política aberta à participação, com princípios claros e governança sólida, justa e transparente, comprometida em reconhecer e valorizar a contribuição dos cidadãos, é criar um oceano azul de oportunidades democráticas. Nesse momento, o Livres está com chamada pública ativa para formação de novas lideranças. Quando foi a última vez que você foi convidado para efetivamente participar de um projeto como esse pelas forças tradicionais da nossa política? Se engajar nessa mudança é defender nossa democracia.

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(Reprodução: Gustavo Oliveira/Livres)

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Mano Ferreira é jornalista, cofundador e diretor do Livres.
Alan Gabriel Teixeira é graduado em Gestão Pública e coordenador de núcleos do movimento.
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