por Gabriel Heller
Talvez a Lei da Ficha Limpa tenha sido elaborada por um bando de bêbados, como sugeriu um Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF); talvez tenha sido aprovada por parlamentares demagogos que acharam que a lei não ia “pegar” ou tenha sido sancionada sem vetos por um outro demagogo com auxiliares incompetentes ou desatentos. Também há dúvidas igualmente sérias sobre o acerto do STF ao decidir pela constitucionalidade da aplicação da lei a pessoas que foram condenadas antes do início de sua vigência.
Tais dúvidas – compartilhadas por uns e refutadas por tantos outros – não são capazes de mudar os fatos: a Corte Suprema do País decidiu, com a autoridade que a Constituição lhe outorgou e de maneira definitiva, que a Lei da Ficha Limpa é constitucional[1] e aplicável a fatos anteriores à sua entrada em vigor[2]. Se, por um lado, é equivocado entender que o Direito é meramente aquilo que os Tribunais dizem que é, por outro, contra decisões do Poder Judiciário, não cabem outra insurgência senão recursos ou trabalhos acadêmicos.
A Lei da Ficha Limpa é uma lei flagrantemente contramajoritária: nela está implícita a ideia de que existem valores constitucionais e sociais que prevalecem quando confrontados com eventuais grandes feitos de um cidadão, com o que os outros acreditam que ele fez de bom ou, mais importante, com a intenção de voto dos eleitores para as próximas eleições. É uma legislação protetiva e algo paternalista em relação à sociedade, na medida em que limita as escolhas das pessoas e impõe: “em determinados indivíduos, vocês não poderão votar”; constitui, assim, o reconhecimento – aparentemente não tão óbvio quanto alguns gostariam – de que democracia é mais do que a opinião e vontade de “metade + 1” dos eleitores.
As ações penais que têm como réu o ex-Presidente Lula, seu julgamento pelo juiz Sérgio Moro e a iminência da análise de seus recursos pelo Tribunal Regional Federal da 4a Região (TRF4) proporcionaram uma pré-campanha eleitoral e manifestações jurídico-políticas que põem à prova tudo quanto aqui exposto, além de evidenciarem uma grande crise de coerência por que passa o País.
Todos temos nossas preferências político-partidárias (mesmo aqueles que votam, a cada dois ou quatro anos, no “menos pior”) e, ingênuos ou otimistas, ansiamos que o candidato eleito não traia nossa confiança e não repita os malfeitos que nos fazem ter uma percepção tão negativa de nossos representantes. De todo modo, esperamos, ano após ano, que a Polícia e o Ministério Público desvendem e comprovem os crimes praticados por gestores públicos e políticos e torcemos para que o Poder Judiciário julgue-os o mais rapidamente possível, impedindo, ao final, que voltem a ocupar cargos públicos.
A pré-campanha de Lula, que não se sabe ao certo se tem mais intenções políticas ou judiciais, obscurece um tanto esse fluxo de ações e desejos que parece lógico ou, ao menos, racional. Tudo porque, se condenado por órgão colegiado (no caso, a 8a Turma do TRF4), Lula não poderá ser candidato à Presidência da República. E vale enfatizar esse “se”, já que, embora as decisões anteriores da 8a Turma possam indicar entendimentos jurídicos dos juízes que a compõem, elas não dizem nada, rigorosamente nada, sobre o conteúdo das provas que o Ministério Público diz ter e que a defesa de Lula rejeita, cada um em seu papel de direito.
Boa parte da revolta em relação aos votos contrários à Lei da Ficha Limpa – que, diga-se, jamais foram desprovidos de bons fundamentos jurídicos – converteu-se em uma relativização sem precedentes. Os discursos de perseguição, de “não existe plano B à candidatura de Lula” e de “Lula será candidato, condenado ou não” acabam por convergir para um desejo simples de não se aplicar a Lei da Ficha Limpa ao ex-Presidente, caso seja condenado.
Nada há de errado em ser contra a Lei da Ficha Limpa, em desacreditá-la porque contramajoritária, em renegá-la porque constitui aplicação de pena sem trânsito em julgado, ou em rejeitar sua incidência retroativa, como possibilitou o STF. O que é inaceitável é apoiá-la e aplaudir os entendimentos do STF a seu respeito apenas para os candidatos dos outros.
O princípio fundamental da arte do Direito, legado pela Antiguidade Clássica, resume-se na expressão latina suum cuique tribuere: atribuição a cada um do que é seu. Essa máxima de justiça só é realizável quando as pessoas são tratadas igualmente pela e perante a lei ou, no linguajar comum, quando a lei é para todos. Em democracias constitucionais, os deveres de solucionar conflitos, aplicar as leis penais e garantir as regras do jogo democrático recaem sobre o Poder Judiciário, e, ao que consta, ainda pretendemos ser uma república que atribui a cada um o que lhe cabe.
[1] Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) no 29 e 30 e Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no 4.578, julgadas em fevereiro de 2012.
[2] Recurso Extraordinário (RE) no 929.670, julgado em outubro de 2017.