por Rodrigo de Lemos
Um presidente francês é simbolicamente um descendente dos reis de França, e uma certa cultura literária é o sucedâneo das cartas de nobreza para o chefe de Estado republicano. Charles de Gaulle também está, por suas memórias da Segunda Guerra, nos manuais literários. Georges Pompidou organizou uma famosa antologia de poesia, editada até hoje. François Mitterrand entretinha a reputação de burguês do gosto, conhecedor de história e de arte. Nem Jacques Chirac, nem Nicolas Sarkozy, nem François Hollande brilharam sob esse aspecto. O ponto mais baixo, talvez, tenha-o tocado Sarkozy, conhecido pela vulgaridade, pela obsessão midiática, pelo arrivismo brutal. Havendo ironizado publicamente o clássico romance de análise psicológica do século XVII, A princesa de Clèves, de Mme de Lafayette, aquele que ficou conhecido como marido de Carla Bruni teve de suportar durante o seu mandato protestos que consistiam em – maratonas de leituras públicas do romance. Não que muitos dos sindicalistas e dos artistas que nelas tomaram parte devessem gozar exatamente de uma intimidade considerável com a obra…
A ascensão de Emmanuel Macron ao trono presidencial pôde parecer a alguns intelectuais uma lufada de ar fresco. Para esse (breve) reerguimento da figura presidencial, contaram elementos de sua biografia, sobretudo sua relação com o filósofo Paul Ricoeur (a quem serviu de assistente editorial) e seus artigos em revistas intelectuais de prestígio (Esprit) – além de episódios como a famosa entrevista em que Macron, de súbito, recita uma cena de O misantropo, de Molière. O estado de graça (aparentemente já terminado) entre o novo presidente e o eleitorado sofreu alguma influência dessa imagem de mandatário digno do cargo em uma nação que, como definiu a insuspeita The Economist em artigo recente, ambiciona “pensar pelo mundo”. Mas o que se pode esperar de Macron em educação e em cultura?
Uma inflexão de algum modo conservadora pode marcar a política educativa de seu quinquenato. A França vem dos anos tumultuosos das reformas de Najat-Vallaud Belkacem, nome da ministra socialista de origem marroquina cujo programa acarretaria, segundo seus críticos, o fim das classes bilíngues francês-alemão, a morte das línguas clássicas na escola e sua substituição pelo ensino do árabe, tudo sob as bandeiras da igualdade, da democratização e da “inclusão das novas populações”. Já se sabe que as reformas não contarão com o apoio do novo ministro, Jean-Michel Blanquer (aliás, especialista em América Latina e autor de artigos sobre o Brasil). Como observou ironicamente o filósofo Alain Finkielkraut, a careta de Belkacem ao ouvir o nome do seu sucessor na cerimônia de entrega do cargo representa por si só o fim de uma era. Blanquer já se pronunciou sobre a pertinência das aulas bilíngues em alemão em um momento em que o projeto europeu necessita novo fôlego. Exprimiu também o desejo de ver o retorno do grego e do latim: “Nas reformas de meus predecessores, veiculou-se uma mensagem contra-produtiva, segundo a qual o latim seria ultrapassado e elitista. Isso é totalmente falso. O latim está no coração da nossa língua e estrutura nossa mentalidade.”
Não que se possa esperar um golpe de misericórdia nas reformas de Belkacem. A intenção parece ser a de sufoca-las en doceur. Blanquer, fiel àquela filosofia de uma relativa descentralização que parece ser a interpretação do liberalismo segundo Macron, declarou que a implantação das reformas será decidida respeitando a autonomia dos estabelecimentos escolares e sua realidade concreta: “Se em 2016 houve a maior fuga de cérebros do sistema público para o privado em décadas, é porque, impondo medidas uniformes, a reforma tornou os estabelecimentos públicos menos atraentes. Não vejo por que não possamos inspirar-nos do sistema privado. (…) O verdadeiro inimigo do serviço público é o igualitarismo; seu amigo, a liberdade, que, bem concebida, favorece a igualdade”.
É duvidoso se mudanças assim marcadas devem ter lugar na política cultural francesa. Quando não mais, porque seu intervencionismo não é desprovido de resultados – ao menos o suficiente para desencorajar um radical pereat mundus, fiat liberalismus. Sofisticados programas de divulgação científica e cultural encontraram como que seu elemento natural em rádios públicas como France Culture e France Musique, as quais podem oferecer, a qualquer hora do dia, uma biografia de Hannah Arendt, um programa sobre a dieta dos sultões otomanos ou um concerto de compositores escandinavos (a única comparação talvez seja, significativamente, a BBC). O cinema, pesadamente subsidiado, é uma máquina geradora de muitas bombas e de algumas obras sublimes; resta que ele permite não apenas um certa irradiação internacional do país (quantos cineastas do Terceiro Mundo não se lançaram em Paris? Quantos filmes são franceses na sala alternativa mais próxima da sua casa?); em 2014 (ano de pico), 44% da bilheteria francesa foi destinada a filmes nacionais, um pouco abaixo do percentual atingido pelos filmes americanos (na Alemanha, a produção doméstica recolheu então 28% da bilheteria; no Reino Unido, apenas 15%). Como na Itália e na Alemanha, o tabelamento do livro permite mesmo a cidades mais modestas disporem de livreiros independentes – uma situação em tudo distinta do Reino Unido, que, em 2014, não tinha mais de 1000 livrarias de pequeno porte (do outro lado da Mancha, seu número é mais que o triplo). Numa recente palestra no Festival de Inverno de Porto Alegre, o dramaturgo franco-romeno Matei Visniec (editado entre nós pela É Realizações) assinalou o quanto sua produção só pôde se estabelecer num país onde um festival de teatro de vanguarda como o OFF de Avignon oferece cerca de 1500 peças do mundo todo a força de subsídios – modelo que é o mesmo a tornar possível o festival de ópera de Orange, o festival de outono de música contemporânea de Paris…
Em sendo verdade que Macron tenha o desígnio de anglo-saxonizar social e economicamente a França, nada indica que esteja em seus planos alterar esse sistema tão antipático à mentalidade daquelas sociedades do Norte em que a merchant class imprimiu, a partir do século XVII, suas concepções de liberdade e de cultura. Pelo contrário; ele não cessa de lhe reconhecer os sucessos. Sua pretensão declarada seria a de proteger as políticas culturais que permitem a manutenção de criadores franceses e a atração de talentos estrangeiros, dentre as quais o polêmico estatuto dos intermitentes do espetáculo (uma alocação de tempo determinado destinada a artistas do espetáculo em entressafra) e a implementação do co-financiamento, por gigantes da internet (via taxação), de iniciativas como um programa de intercâmbios europeu para as disciplinas criativas. Quanto às políticas de acesso à cultura, seu programa é ainda mais agressivo. Uma das principais medidas seria a adoção do passe cultural implantado na Itália por Matteo Renzi: uma alocação de 500 euros a que todo jovem tem direito para adquirir ingressos, livros ou discos. É como se, na interpretação gálica (e macronista?) do ideal de sociedade aberta, esse protagonismo estatal na cultura fosse o preço a pagar para a geração, a circulação e a variedade de obras e de ideias que alimentem o debate público, objetivo inegociável de uma democracia liberal. As taras do sistema, por outro lado, não são poucas, e uma crítica sensata e sensível dos seus excessos encontra-se no livro O Estado cultural, do historiador Marc Fumaroli.
Como em outros tantos aspectos de seu programa, Macron joga com elementos de modernização e de conservantismo. No seu comentado retrato oficial, simbólico até a pedagogia, o presidente é ladeado por dois iPhones (por que dois?); alguns volumes fazem-lhe companhia: as Memórias de Guerra, de de Gaulle (a tradição, a nação, a história); O vermelho e o negro, de Stendhal (o romance do inconformismo francês); Os alimentos terrestres, de André Gide (a poesia, além de um certo perfume de transgressão que cerca o nome de Gide…). Elementos de uma síntese possível?