Manifesto pela heresia: Brendan O’Neill desafia a militância trans e a patrulha identitária

Em maio passado, militantes identitários tentaram impedir que o jornalista e editor Brendan O'Neill falasse em um evento na Universidade de Oxford. Apesar disso, o evento ocorreu, e Brendan apresentou um "manifesto pela heresia" contra as patrulhas politicamente corretas e identitárias. Confira com exclusividade no Estado da Arte.

por Brendan O’Neill

Tradução: Ana Beatriz Fiori

Tenho a sincera convicção de que um homem jamais pode se tornar uma mulher. Que não importa quantos hormônios ele tome, quantas cirurgias ele faça, quantas roupas incríveis ele compre: uma pessoa que nasce homem jamais consegue virar uma mulher.

Eu aceito que um homem possa ser uma mulher transexual. Eu aceito que todo homem tenha o direito de se declarar mulher. E de trocar seu nome para um nome de feminino, se ele quiser. E essas mulheres transexuais devem, é claro, ter os mesmos direitos de qualquer outro cidadão: o direito de votar, o direito à liberdade de expressão, o direito de trabalhar. Mas, para mim, não são mulheres. O slogan “Trans women are women” (“Mulheres transexuais são mulheres”) é uma mentira. Essa é minha sincera convicção.

Recentemente, porém, essa convicção se tornou praticamente impronunciável numa sociedade de respeito. Ela se tornou o equivalente de uma heresia. Negar que homens possam se tornar mulheres é o equivalente moderno de negar que uma hóstia e uma taça de vinho possam se tornar o corpo e o sangue de Cristo durante a missa. Se você negar a mágica da transgeneridade, será alvo de uma fúria semelhante àquela infligida, no passado, aos que negavam a mágica da transubstanciação.

Existe uma espécie de zelo religioso na proteção da transgeneridade contra a crítica, a negação ou a blasfêmia. A palavra “transfobia” é usada para demonizar a ideia de que homens não podem se tornar mulheres. O objetivo da luta contra a transfobia não é acabar com a discriminação contra transexuais – é silenciar as opiniões que agora são consideradas inaceitáveis, é transformar certas convicções em heresias. “Transfobia” é, na verdade, um novo termo para blasfêmia. Acusar uma pessoa de “transfóbica” é acusá-la de ter pecado ou proferido calúnias na nova ortodoxia segundo a qual o gênero é fluido, alguns homens têm cérebro de mulher, o binarismo é um mito, e assim por diante. Não se engane: transfóbico significa herege.

Observem como as feministas que questionam a mágica da transgeneridade são perseguidas nos campi universitários e incluídas em listas negras pela NUS (União Nacional dos Estudantes do Reino Unido). Essas feministas são chamadas dos piores nomes nas redes sociais: cadelas, putas, vagabundas. Ou TERFs. TERF, que significa trans-exclusionary radical feminist (feminista radical “trans-intolerante”), se tornou o insulto mais usado contra essas mulheres blasfemas, que têm sido hostilizadas pelos representantes estudantis, como recentemente aconteceu na Universidade de Bristol. Além de serem fisicamente impedidas de se reunirem, também são violentamente atacadas: no ano passado, ativistas trans agrediram uma avó de 60 anos, ou TERF, para usar o termo desumanizador que eles usaram ao desferirem um soco em sua cara.

Uma TERF é uma bruxa. É isso que TERF realmente significa: uma mulher problemática, atrevida, provocadora, herege. Assim como o medo e a fúria medievais dedicados às bruxas eram impulsionados pelo desejo da Igreja de erradicar a heresia, descobrir e punir o pensamento não ortodoxo, as listas negras e os ataques às TERFs hoje são impulsionados pela intolerância do establishment contra aqueles que se opõem à nova religião da fluidez de gênero. Especialmente entre as mulheres. As batalhas de teor religioso contra a heresia sempre odeiam as mulheres dissidentes mais do que os homens. O fato de que os caçadores de TERFs, assim como os caçadores bruxas do passado, odeiam mais as mulheres hereges do que os homens – mais do que me odeiam, por exemplo – expõe não só a intolerância do movimento trans contra qualquer visão de feminilidade diferente da sua própria visão elástica e excêntrica, mas também suas semelhanças com movimentos mais antigos contra as “bruxas” que desafiavam os ditames religiosos.

Recentemente, no Reino Unido, 300 mulheres membros do Partido Trabalhista renunciaram aos seus cargos como protesto contra a decisão do partido de incluir pessoas que nasceram homem em uma lista restrita a mulheres. Outros membros do partido – homens inclusive – comemoraram a debandada feminina: “Tirem as TERFs daqui”, eles tuitavam. Isto é, tirem as bruxas daqui. Expulsem essas bruxas. Hereges não são bem-vindas. O fato de que muitos homens de esquerda riem das preocupações dessas mulheres, aprovam a censura de suas ideias ou colaboram para sua demonização como TERFs indica que a ideologia trans tem fortes traços de misoginia. De fato, o ativismo trans parece cada vez mais uma misoginia travestida.

Observem, também, como as críticas à ideologia trans são desprezadas não apenas como ideias erradas, mas como ideias perigosas, moralmente corruptas e moralmente corruptoras. Ao que parece, as convicções dessas pessoas são uma espécie de veneno, capaz de poluir mentes e almas e, talvez, até causar o suicídio de transexuais. Um certo ponto de vista, aquele que diz que você não pode mudar magicamente de sexo, é imbuído de um poder incrível e devastador: o de matar.

Isso também remete às antigas cruzadas contra a heresia. Naquela época, assim como agora, o pensamento não ortodoxo, seja por questionar a lei do Vaticano, seja por questionar as escrituras bíblicas, era tratado não só como um pensamento de gente mal informada, mas como um mal, uma doença – e uma doença que poderia se espalhar. Como conta um relato histórico, as pessoas e, às vezes, comunidades inteiras eram vistas como “contaminadas pela heresia”. Hoje, essa ideia profundamente repressora se expressa na guerra contra a blasfêmia da transfobia. Como apareceu em uma manchete recentemente, “A transfobia é a doença mental, não a transexualidade”. Ou, como disse um jornalista do Los Angeles Times, são os críticos da transgeneridade que estão “realmente doentes”. Isto é, suas ideias são contagiosas e causam danos – às vezes, a morte. Elas foram contaminadas pela heresia e contaminam os outros com sua heresia.

Estamos diante da clássica demonologia: a transformação de um grupo inteiro de pessoas – os críticos à ideologia trans – em demônios. Por meio da demonologia, da censura e, às vezes, da violência, a convicção de que você não pode mudar de sexo magicamente – e eu acredito nisso – deixou de ser um ponto de vista aceitável e se tornou uma heresia que você expressa por conta e risco. E essa transformação rápida e implacável de uma convicção em pecado moral é fascinante, porque é um estudo de caso moderno sobre o surgimento das bruxas e sobre a imposição da ortodoxia. Esse ataque moral e físico a uma ideia merece ser estudado, pois representa uma “versão século XXI” daquela transformação do pensamento crítico em doença que foi comum em períodos mais obscuros da História.

Ao observar tudo isso, comecei a me perguntar: o que acontece quando você se torna um herege? O que acontece quando suas convicções passam a ser consideradas perigosas? O que acontece quando os parâmetros do que é aceitável pensar encolhem, repentina e violentamente, e você se encontra fora deles, como uma lepra intelectual? O que esse novo herege deve fazer?

Parece muito claro que existe uma escolha. É uma escolha difícil, mas uma escolha. Aqui, vale observar que, na verdade, é isso que heresia significa. A palavra heresia vem do grego para “escolha”, “a coisa escolhida”. Ser um herege é fazer uma escolha – a escolha errada, segundo os guardiões da ortodoxia. E a escolha com a qual se deparam os hereges involuntários de hoje, aqueles que acordaram um dia e descobriram que aquilo que vinham dizendo há anos agora é proibido, é esta: ou você aceita sua condição de “mau” e se cala pelo suposto bem da estabilidade social, ou você rejeita essa condição e continua a expressar sua “heresia”, porque você sinceramente acredita nela. Esta é a sua escolha, esta é a sua heresia.

E eu espero não surpreender muitos aqui ao dizer que meu conselho é que sigam a segunda opção: continuem expressando sua heresia, e que se danem as consequências. Vocês devem fazer isso por duas razões. Primeiro, porque será bom para vocês como indivíduos. Segundo, porque será bom para a sociedade como um todo.

É claro que não é apenas o pensamento crítico à ideologia trans que foi reclassificado como heresia. Ultimamente, a indústria da demonologia tem funcionado a todo vapor, descobrindo novos demônios e deslegitimando certas convicções. A linguagem da demonologia tem corrido solta na vida pública. As duas classificações impostas com mais frequência às pessoas cujas convicções são consideradas heréticas são “fóbico” e “negacionista”. São termos fascinantes. O primeiro, “fóbico”, expressa a maneira como certas convicções são tratadas como medos irracionais – como doenças mentais, basicamente. E o segundo, “negacionista”, ecoa exatamente a terminologia usada para aqueles que eram julgados pela Inquisição. Eles também eram negacionistas: no caso, da luz de Cristo.

Assim, se você critica a ideologia trans, você é transfóbico. Se você acha que o casamento gay não é uma boa ideia e que a instituição do casamento tem um papel social mais adequado para casais heterossexuais, você é homofóbico. Critique o Islã, e será um islamofóbico. Quando o Runnymede Trust popularizou o termo “islamofobia” pela primeira vez, nos anos 90, ele incluiu em sua definição qualquer expressão que considere o Islã como “inferior aos valores ocidentais”. Expressar certo juízo moral – neste caso, de que os ideais ocidentais são melhores que os islâmicos – significa que você é uma pessoa desequilibrada, doente. Este é um exemplo claro da linguagem da demonologia sendo usada para transformar um ponto de vista perfeitamente legítimo em heresia.

Se você se preocupa com a imigração em massa, você é xenófobo. Se você se opõe à União Europeia, talvez sofra de uma doença mental chamada eurofobia. Segundo um observador pró-UE, a eurofobia é uma espécie de racismo “contrário à cultura da Europa pós-guerra”. Assim, uma perspectiva política – a oposição à oligarquia de Bruxelas – é reclassificada como irracionalismo. 

Junto com os fóbicos, temos os negacionistas. Enquanto os fóbicos têm uma doença moral, os negacionistas são puramente pecadores. Essa acusação é usada com mais frequência contra as pessoas que negam a existência das mudanças climáticas. Qualquer pessoa que questione não apenas a ciência por trás dessas mudanças, mas as propostas políticas para lidar com os problemas ambientais – o que geralmente envolve desestimular o desenvolvimento em larga escala – está sujeita a ser denunciada como “negacionista”. Novamente, suas palavras são tratadas não só como erradas, mas como moralmente depravadas e, até mesmo, como uma ameaça à vida na Terra. Suas ideias são imbuídas com um poder demoníaco que corrompe e danifica a própria existência. Não à toa, um ambientalista afirmou que deveria existir “tribunais penais internacionais” para esses negacionistas, onde seriam obrigados a “responder por seus crimes”. Ou seja, uma Inquisição. Suas palavras são crimes, suas ideias são uma espécie de poluição moral que pode até ser mais perigosa que a poluição industrial. Essas pessoas são hereges, assim como os “negacionistas de Cristo” eram hereges.

Aqueles que colaboraram para a criação dessa ortodoxia científica que reles mortais não podem questionar deveriam refletir sobre o fato de que a própria ciência é uma heresia – ou certamente começa como uma. Nas palavras de Isaac Asimov: “Alguns dos maiores nomes da ciência foram… hereges. As grandes descobertas científicas geralmente começam como heresias”. O fato de que a ciência e seus adeptos agora contribuam para o policiamento e a punição da heresia representa um abandono da abertura à crítica e à refutação que fazem da ciência uma atividade tão importante.

Os fóbicos e os negacionistas estão por toda parte. Às vezes, sua heresia é punida pela lei, como tem acontecido na Europa nos últimos anos, com a prisão e a cobrança de multas para quem expressa pensamentos islamofóbicos ou ideias homofóbicas. Às vezes, sua heresia é controlada pelo que John Stuart Mill chamava de “tirania do costume”, em que uma pressão social, e não do Estado, é usada para silenciar indivíduos corruptos e corruptores. Representantes estudantis em universidades como esta aqui, Oxford, se superam na aplicação dessa tirania do costume por meio de listas negras de palestrantes hereges, boicotes a mulheres que blasfemam contra a ideologia trans e o uso promíscuo de rotulações como fóbico, negacionista, fascista e hater para demonizar qualquer pessoa que discorde de sua ortodoxia limitada, iliberal e identitária. Em ambos os casos, sejam as heresias reprimidas pela lei ou pela necessidade implacável da alta sociedade de promover o conformismo moral, o resultado é o mesmo: as pessoas sentem que não podem expressar suas convicções.

Mas deveriam. Independentemente das consequências. Primeiro, porque se autocensurar, silenciar as próprias convicções, é colaborar para a diminuição da própria autonomia e, até mesmo, humanidade. É confessar o pecado que os outros atribuem a você e se punir por esse pecado. É internalizar a mentalidade inquisitória e economizar o trabalho dos novos caçadores de hereges, pois você já está se punindo. Recusar-se a expressar sua profunda convicção – ou, ao contrário, expressar uma ideia na qual você não acredita – é abdicar as responsabilidades morais do cidadão livre.

É por isso que o caso daquela padaria na Irlanda do Norte, a Ashers, é tão importante. A Ashers, que é administrada por cristãos, está recorrendo de uma multa de 500 libras esterlinas por se recusar a fazer um bolo com a frase “Apoie o casamento gay”. Devemos é apoiar a Ashers, pois exigir que a as pessoas expressem convicções que não são suas, que elas consideram ser uma ideia má ou errada, é a perfeita antítese da sociedade livre. Novamente, isso remete à abordagem inquisitória, quando as pessoas eram forçadas – mas por fogo, não multas – a fazer declarações públicas que iam contra suas convicções. Vocês devem expressar suas heresias, e vocês devem se negar a proferir opiniões que não são suas, mas de outros, porque é isso que é ser um indivíduo livre com dignidade.

E a segunda razão por que vocês devem expressar suas convicções heréticas é que a heresia faz bem para a sociedade. Quase todas as liberdades e os confortos de que desfrutamos hoje existem graças aos hereges. Dos hereges religiosos, incluindo os desta universidade, que sugeriram que a Bíblia deveria ser publicada em inglês, aos hereges científicos, que promoveram a visão heliocêntrica sobre o nosso canto do universo, e os hereges políticos, que defenderam que as mulheres são tão capazes de pensar em política quanto os homens – todas as ideias que ajudaram a tornar a sociedade melhor, mais livre e mais racional começaram como uma forma de heresia, cuja expressão pode ter levado à morte, à expulsão de Oxford ou à ridicularização na mídia.

A heresia dá vida à sociedade. Ela expande os parâmetros do pensamento aceitável que tantas pessoas hoje querem reduzir e controlar e, ao fazer isso, ela dá espaço para novos pensamentos e novos avanços sociais importantes. Precisamos lembrar das palavras de Robert Ingersoll, advogado e político do século XIX e defensor do livre pensamento. Ele disse:

“A heresia é o eterno amanhecer, a estrela da manhã, o reluzente arauto do dia. A heresia é o último e o melhor pensamento. É o perpétuo Novo Mundo, o mar desconhecido, rumo ao qual os corajosos navegam. É o eterno horizonte do progresso. A heresia aumenta a receptividade do cérebro para uma nova ideia. A heresia é um berço; a ortodoxia, um caixão.”

A heresia é um berço. É isso. Ideias complicadas e supostamente perigosas são exatamente o que vocês precisam. Elas são o Novo Mundo do pensamento e do debate pelo qual vocês devem se aventurar. Por isso, parem de boicotar, parem de caçar hereges nas universidades, parem de tratar ideias como doenças e discursos discordantes como discursos de ódio. Em vez disso, digam o que vocês pensam e deixem os outros dizerem também. Expressem seus verdadeiros pensamentos. Deem voz às suas convicções heréticas. Esta é a minha: um pão jamais pode se tornar um corpo, e um homem jamais pode se tornar uma mulher.

Brendan O’Neill é jornalista, editor da Spiked e colunista da Spectator.

Link para o artigo original aqui.

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