por Heloisa Pait
Fomos descobrindo aos poucos sobre a vida de Marielle Franco, a vereadora de sorriso iluminado pela cidade do Rio de Janeiro. Uma amiga me disse que seus colegas da UFF, onde a vereadora fez mestrado, a conheceram. Um site judaico progressista contou que ela compartilhava da preocupação de seu companheiro de partido, Jean Willys, com o antissemitismo da esquerda. Vimos sua família e ouvimos sua filha falar na TV, ainda chocada mas confiante que o crime seria solucionado, e uma identificação mais humana foi se estabelecendo entre nós e essa mulher que lamentamos não ter conhecido. Quando minha mãe faleceu, o rabino disse: “Pense como ela viveu, e não como morreu.” Ele repetia a frase de tanto em tanto tempo para uma família atordoada como agora deve estar a família da Marielle, que tenho certeza botará a sua vida na história política de nosso país com homenagens, depoimentos e atividades que honrem seus valores e ações.
Mas foi através do assassinato que a maior parte de nós conheceu Marielle, então é inescapável falar do que ele significou para todos nós, nesse momento político nacional. Desde a eleição de 2014, com a tomada de consciência de que o país rumava para um abismo, tivemos uma aliança entre social-democratas e conservadores, herdeiros políticos dos antigos PSD e UDN, contra o autoritarismo varguista então no poder. Era uma aliança desconfortável. Quem participou das manifestações antigovernamentais de 2015 e 2016 sabe que, muitas vezes, era difícil estar ao lado dos monarquistas, da TFP e do Revoltados Online, e que dava vontade de voltar no tempo, para os comícios nos quais cantavam Chico e Fafá de Belém e subiam no palanque Covas e Lula, Montoro e Fernando Henrique. Estávamos, nós que acreditamos no valor da vida humana e defendemos o direito reprodutivo, que vimos nossas mães quebrando barreiras no trabalho e ousando na vida privada, que testemunhamos nossos amigos afirmando, com dificuldade mas alegria, suas opções sexuais, estávamos marchando ao lado da direita.
Essa aliança acabou ali, no dia 14 de março de 2018, e não foi culpa de Marielle, uma pessoa, pelo que lemos na imprensa, que buscava agregar, que defendia pessoas e não corporações e por isso era bem quista até por familiares de policiais abatidos por essa violência terrível da nossa cidade maravilhosa. As manifestações a favor de investigações e em homenagem à Marielle foram sim políticas, duras e recriminatórias: diziam “olha vocês do golpe de 2016, olha isso onde deu!” Mas também foram sentidas, humanas, dignas e pacíficas. Paradoxalmente, não foi a dureza e a politização que incomodaram tanto os assim chamados “coxinhas”, produto da referida aliança; foi o fato de que o protesto era absolutamente necessário, legítimo, correto, irrepreensível. Afinal de contas, o que é mais valioso que a vida humana? Como condenar a indignação de mulheres, de negros, de ativistas de esquerda e de jovens vendo um dos seus ser abatido sem mais nem porquê?
Os atos em memória de Marielle Franco foram os primeiros protestos de rua chamados pela esquerda, em muito tempo, que se legitimavam a partir de valores comuns a todos nós: a defesa da vida, da liberdade de expressão e da democracia institucional. Foi essa legitimidade que agrediu de tal modo parte da aliança que, até aquele momento, se via como detentora monopolista da justiça. Tiveram inveja do pesar legítimo e do protesto adequado do campo alheio. Não era mais defesa de condenado e de trapaças; de políticas desastrosas e de desvios de verba. Não. Agora era defesa da boa. Sim, houve preconceito explícito com a origem social da vereadora e parte dele pode ter sido genuíno, como o da desembargadora e de um infeliz deputado, gente preconceituosa na alma que não merece ser nominada. Mas houve também o fel dos que entenderam a gravidade do atentado mas se ressentiram de um luto e uma luta que não era mais deles. E aí fizeram acrobacias mentais admiráveis para diminuir a importância de um evento de tamanho impacto nacional e internacional. Depois dos sommeliers de tragédia e de protesto, agora vieram os de funeral, dizendo quais mortes podemos chorar e como é apropriado fazê-lo.
Foram esses sommeliers de funeral que acabaram com a aliança entre, ainda usando as siglas antigas que para mim enquadram melhor a política brasileira que os partidos atuais, a UDN e o PSD, que agora está solto novamente, em busca de um candidato, de um líder, de um partido, de uma identidade resgatada. Somos, e aqui obviamente me coloco nesse campo, a favor da liberdade e do desenvolvimento humano, temos ojeriza ao autoritarismo varguista mas também medo do machismo e da intolerância em suas várias formas. Somos naturalmente de centro, tanto ideologicamente como na busca de uma sociedade onde caiba uma variedade de posições. É verdade que essa visão progressista, talvez a mais assemelhada ao Partido Democrata americano e aos partidos social-democratas europeus, desgastou-se no passado recente com o desenvolvimentismo retrógrado de alguns líderes e o Estado do bem-estar patriarcal de outros. O termo derrogatório “isentão”, na moda nos anos do impeachment, refletiu bem o cansaço com esse progressivismo hesitante, que faz privatização com dinheiro de banco público e participa de protesto da sacada de Ipanema. Mas esse desgaste conjuntural não reduz sua importância para a democracia nacional.
Não é a primeira vez na história que liberais rechaçam valores do centro moderado. Antônio Paim, estudioso da história do liberalismo brasileiro, já havia apontado o erro dos liberais em, depois do fim da ditadura Vargas, voltar à cena política sem idéias renovadas, sem a preocupação social que liberais, no mundo todo, haviam incorporado após a dramática crise de 1929 e a tragédia da Segunda Guerra Mundial. Os UDNistas, entre os quais o mais conhecido é o cultíssimo Carlos Lacerda, evitavam com isso dar o braço a torcer ao abominado populismo de Vargas, mas tal recusa em incorporar a questão social, para Paim, radicaliza a UDN num anti-varguismo que desemboca no golpe de 1964. Agora, também depois de um período de hegemonia, ainda que não domínio, de valores autoritários no campo da economia e da cultura, parece que como no pós-guerra os liberais optam por deslegitimar a presença das mulheres na vida pública, que é um fato, com receio de cair na agenda identitária construída nas últimas décadas.
Houve os que criticaram a pessoa de Marielle Franco, insinuando as coisas mais estapafúrdias possíveis. Esses mostraram preconceito e desumanidade. Mas houve os que quiseram que a morte dela fosse tratada como uma entre as milhares que acontecem todos os anos, sem o que chamaram “politização”: apenas uma vida perdida para a violência urbana. Era como se quisessem apagar o fato de que uma mulher, negra, homossexual e vinda de uma favela tivesse conseguido se tornar uma liderança política expressiva que justificasse a comoção geral. Nada teria ela a ver com Kennedy, nem com Juscelino, nem com Milk, políticos importantes cujas mortes foram lamentadas, investigadas, rememoradas. Ela seria apenas uma mulher qualquer, sem cor política, sem voz própria, sem seguidores, destas tantas que morrem atropeladas, ou espancadas, ou assaltadas, ou apenas pelo azar de estarem na linha de uma bala perdida, sozinhas ou com seus bebês na barriga. Vítimas anônimas.
Os Lacerdas de hoje pedem à Nação que esqueçam as décadas de inclusão, devida em parte a políticas específicas, em parte a esforços individuais, em parte à própria natureza das sociedades nas quais há liberdade de escolhas, inclusive de empreender, e justiça. A inclusão como política entra em cena ao final dos anos 1960, como resposta das universidades americanas para os conflitos raciais que pareciam exigir mais do que apenas direitos iguais. Concordando ou não com tais políticas, é fato que elas chegam ao Brasil, com atraso, e seria legítimo questionar se foram aqui aplicadas de modo correto ou se foram utilizadas como arma de cooptação de um projeto político que nada tinha de igualitário. O que não se pode negar é que a sociedade brasileira hoje é mais inclusiva que ontem, com negros e mulheres ocupando posições de destaque nos negócios, na ciência e nos meios de comunicação. O maior significado da crítica aos protestos contra o assassinato de Marielle é portanto a negação de todo o processo de inclusão na sociedade brasileira.
O resultado deste rechaço não é uma volta conservadora de valores tradicionais, que exigiria aliás o discurso de proteção a Marielle e outras mulheres que andam nas ruas das grandes cidades brasileiras e que, na verdade, não seria de todo indesejada, se houvesse na cena política nacional mais homens honrando as próprias calças. Também não é uma asserção de valores liberais clássicos, o que exigiria juntar-se aos que pedem investigações céleres e proteção efetiva aos representantes legislativos, da qual depende a democracia nacional, que seria a alternativa mais apropriada. Talvez o resultado seja o reforço do discurso reacionário sobre gênero, apesar de que esse é imediatamente ridicularizado, na esfera pública, como provindo dos “machos de pantufas”; pode ter mais chance o reforço de nosso arraigado preconceito de classe. O principal efeito dos esforços de deslegitimação de Marielle como atriz política e, por tabela, de toda a história de inclusão das últimas décadas, não é direto: é um indesejável cisma entre liberais e progressistas, com os UDNistas se inclinando à direita.
Os progressistas, agora, devem voltar a buscar o meio-termo, as posições conciliatórias, a moderação e o alargamento das alianças. Não é possível lutar ombro a ombro com quem acredita que a vida de um ser humano vale pouco e fica difícil fazê-lo com quem está disposto a desvalorizá-la por conveniências políticas. Se é verdade que reduzir a morte de Marielle a uma questão de gênero ou raça é inadequado, negar que foi uma mulher que morreu enquanto fazia sua voz se ouvir – como fizeram tantas de nós nessas últimas décadas – é um completo absurdo. Liberais de fato reconhecem a estupenda história global de inclusão das últimas décadas ao invés de, como no pós-guerra, voltarem seus relógios para trás. Homens de verdade estão se perguntando: que cidades são essas que construímos que não oferecem proteção mínima, nem às mulheres? Homens e mulheres de verdade olham os fatos e buscam compreender qual seu papel diante deles. A morte de Marielle nos recoloca, a todos nós, essa pergunta: qual nosso papel diante do Brasil de hoje? É nesse sentido que digo, Marielle, presente!