Militância satânica e militância pateta

Tratar de literatura contemporânea é o mesmo que especializar-se em tornados, furacões, ciclones extratropicais: a aproximação, necessária, requer um rigor absurdo ou o sujeito também vai pros ares junto com a casa, com a vaquinha, com a cerquinha, com as árvores, no meio do Arkansas.

por Thiago Blumenthal

Não é somente no seu Facebook, esta rede social que se revela satânica a seu modo. Tampouco na TV, nos principais portais de notícia, em suplementos diversos fabricados a rodo em risograph, a impressora da moda que, sob sua fachada subversiva, esconde o mesmo movimento: um contra tudo o que aí está. “As ruas falam, gritam,” me conta um amigo um pouco em tom de deboche, “que já não mais aceitamos calados.” “Quem não mais aceita calado,” pergunto. “Oras, as minorias, meu caro, as mulheres, os indígenas, os pataxós.” “E os judeus?” “Os judeus que se contentem por essa multidão toda ainda não estar queimando a bandeira de Israel em algum canto sebento da Rua Augusta,” comemora o amigo, para quem Israel devia se fixar mesmo na Califórnia. Tem todo o meu apoio. O caso é sério, contudo. Não é somente no seu Facebook. Estão em todos os lugares.

Recentemente um suplemento dito literário/cultural nordestino (o Suplemento Pernambucano) publicou uma resenha hedionda sobre o livro novo da professora Leyla Perrone-Moisés. O título anunciava “Sobre uma crítica que ignora o real”, dando a entender que o livro de Leyla não tem compromisso algum com sua contemporaneidade e, assim, não vale nada, uma vez que se destina precisamente a este propósito, o de traçar o que ela chama de mutações de uma literatura de 2000 para cá.

Tratar de literatura contemporânea é o mesmo que especializar-se em tornados, furacões, ciclones extratropicais: a aproximação, necessária, requer um rigor absurdo ou o sujeito também vai pros ares junto com a casa, com a vaquinha, com a cerquinha, com as árvores, no meio do Arkansas. Estamos muito próximos ao furacão, a produção é corrente e, nas palavras de Leyla, está em constante mutação, o que não deveria ser nenhuma novidade. Uma vaquinha vai se perder, ossos do ofício, sem lamúrias. Outras vaquinhas aí estão e não ficaremos sem leite. A hipótese, condição imperiosa das humanidades, é posta em xeque a todo o momento, a cada novo autor, novas interpretações, até mesmo quando um autor de repente, vejam só, de repente troca de gênero, como Laerte. As minorias!

O artigo da professora Regina Dalcastagnè, da UnB, começa citando Donald Trump, depois a soja e termina com a “elite patriarcal branca”. Para Regina, Mutações da Literatura no Século XXI (Companhia das Letras) peca por focar em “homens, brancos, para além da meia idade, bem estabelecidos, publicados por grandes editoras”. Em 16 anos e meio, quantas mulheres negras representaram bem nossos tempos em matéria de literatura? Vamos lá, cite cinco de cabeça, sem consultar o Google. Nem o Google saberia responder. Em 16 anos e meio, tudo isso ainda está sendo produzido, mas infelizmente a literatura não resolveu as questões feministas do século passado e ainda estamos precisando de mais autoras mulheres que retratem nossos tempos. De quem raios Leyla poderia falar? Daquela escritora do Zimbábue que publica seus zines no xerox e que divulga sua obra, seu modo de vida, sua religião, seu sofrimento, a condição humana, de casa em casa? Não a conhecemos.

A literatura ainda não reverteu um processo histórico que vem de origens pré-industriais, e os homens têm mais destaque que as mulheres. Devemos aplaudir isso? Evidente que não. Mas quem escreve um livro que fala da literatura do seu tempo, precisa falar do que conhece, e o que conhecemos sofre alguma influência (grande aliás) socioeconômica do mercado editorial, que escolhe o que devemos ler. Ingênuo é aquele que acha que escolhe tudo que lê. A pequena independência, atingida em certo grau, em certos pontos e em certas circunstâncias, nos liberta e é essa que fica para sempre, essa que derruba religiões, derruba seus Golias, derruba até mesmo os homens brancos de classe média alta. Atentemos para os momentos de pequena independência, não só na literatura, mas na vida.

A militância não resolve, ao contrário, só faz ecoar um discurso que depois é apropriado pelo sistema, pelo mercado, pela publicidade (vide o fenômeno de Elena Ferrante e tantos outros do passado recente). O que resolve é um certo pacto diabólico, pelo menos na literatura. Um pacto silencioso que vai derrubar quem nos oprime e fazê-lo queimar enquanto rimos com nossas boutades satânicas, com a fúria de Holden Caulfield, a piscadela de George Eliot, e, por que não, rir também while your kings and queens fought for ten decades for the gods they made — enquanto seus reis e rainhas lutam por dez décadas pelos deuses que eles fazem. Abrigar o diabo é algo que requer um hospedeiro astuto.

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