por José Eduardo Faria
Há vinte anos, de passagem por Paris rumo a Barcelona, onde participaria de uma banca, deparei-me na Place de la Sorbonne com um ato público de centenas de estudantes de economia, lançando um manifesto no qual pediam mudanças de currículo e de abordagem pedagógica. Segundo eles, o uso “descontrolado” da matemática os estava levando a aprender uma “economia imaginária”, moldada pelos princípios da acumulação e manipulação dos mercados financeiros – portanto, “descolada da realidade”. Ainda que reconhecessem a importância da econometria, pediam o retorno da disciplina de economia política. E afirmavam que não fazia sentido estudar o processo de destruição criadora analisado por Joseph Schumpeter e a igualdade de oportunidades sob a luz de Alexis de Tocqueville, para serem admitidos na universidade, uma vez que esses temas não eram contemplados na graduação.
Lembrei-me daquela manifestação quando li as MPs da liberdade econômica e do emprego verde-amarelo. O denominador de ambas é o desejo de remover o que estaria impedindo a recuperação econômica, mediante redução da intervenção regulatória estatal e incentivo à auto-regulação e à arbitragem. A estratégia foi classificada pelo ministro da Economia e por membros de sua equipe, quase todos com uma formação econométrica, como liberal. Mas que liberalismo é esse que, sob a justificativa de estimular a contratação de jovens de 18 a 29 anos, desonera as empresas e, para compensar o dinheiro que deixará de entrar no Tesouro, taxa quem recebe o seguro-desemprego? Como pode ser liberal uma estratégia que limita a discricionariedade dos fiscais do trabalho, reduz pensões e subsídios para baratear o custo da mão de obra, cria dificuldades para acesso dos cidadãos aos tribunais e despreza a isonomia que deve reger as relações entre capital e trabalho? Pode ser liberal quem, relegando a importância do diálogo político, afirma não haver alternativas de combate à crise fiscal, a não ser as que promovem a transferência de seus custos para a sociedade?
Vista em seus detalhes, essas MPs nada têm de liberais – pelo contrário, são uma glosa irresponsável do liberalismo. Como doutrina, em matéria econômica o liberalismo valoriza o jogo de mercado. Mas essa valorização não está desconectada do campo político, no qual o liberalismo valoriza garantias fundamentais como regras básicas desse jogo e a atuação do Estado sobre os cidadãos, segundo regras democraticamente definidas pelos mesmos cidadãos. No liberalismo, política e economia são verso e reverso de uma mesma moeda. Por mais que seja market friendly, enfatizando as funções estruturantes do direito de propriedade e do cumprimento das obrigações contratuais, o liberalismo não descarta a responsabilidade social de quem empreende e, enfrentando os riscos de mercado, lucra. Também não abre mão da defesa dos direitos individuais, do respeito às minorias e da proteção aos chamados hipossuficientes, por meio de políticas compensatórias.
O que se vê com base nas duas MPs é que a equipe econômica do governo não é liberal, mas libertária. É como se, por sua simples existência, o Estado fosse um mal em si e tudo o que dele viesse fosse ilegítimo. É como se o mercado fosse dotado de um poder constituinte absoluto, negando qualquer possibilidade de regulação estranha à economia e aos seus cálculos de oportunidade. Confundindo liberalismo com libertarismo, a equipe econômica relega o fato de que é o Estado que garante o funcionamento do mercado e assegura equilíbrio nas relações sociais. Onde o Estado é reduzido a quase nada, o contrato social tende a se esgarçar e a liberdade é corroída pela força bruta dos mais fortes. Na filosofia política, há quem defenda o libertarismo com rigor. Foi o caso de Robert Nozick, autor de Anarquia, Estado e Utopia. Para ele, o libertarismo se assenta no respeito pela liberdade individual, constituindo um imperativo moral, e não um simples instrumento de promoção da eficiência econômica. A seu ver, interferências governamentais no mercado não são censuráveis pelos efeitos negativos que podem acarretar na economia, mas sim porque constituem erros morais. O que se tem entre nós, porém, é uma vulgata de libertarismo, que permite lembrar o que diziam os estudantes franceses há vinte anos, quando alegavam que economistas com viés econométrico tratam problemas sociais como problemas setoriais. Na visão de mundo dessa equipe, quando surgem problemas ambientais, basta criar um mercado de direitos de poluição. Se há problemas para financiar a previdência, basta montar um sistema de estímulo para subscrição de seguros privados e de contribuições definidas. É uma resposta simples para um sistema de proteção social que já padece com o envelhecimento da população, queda de natalidade e diminuição do número de trabalhadores ocupados, em decorrência das transformações tecnológicas. É uma resposta singela para um sistema previdenciário organizado sobre o emprego tradicional e folha salarial, num período de expansão do autoemprego, de contratação por tarefa e por trabalho temporário e de erosão do próprio conceito de empregado.
Ignorando que o direito à propriedade privada e o cumprimento dos contratos só são efetivos pela força do Estado, a equipe econômica não percebe que, para funcionar bem, o jogo da oferta e da procura exige uma complexa urdidura de regras jurídicas. Mais grave ainda, confunde economia de mercado com sociedade de mercado, onde tudo – inclusive as alternativas políticas – pode ser vendido ou comprado. Ao híper-responsabilizar os indivíduos por seu futuro, o libertarismo esvazia as ideias de cidadania e de contrato social. Torna as pessoas empreendedoras de si mesmas – principalmente os trabalhadores informais e os trabalhadores por conta própria. E desfigura o homo juridicus, convertendo-o num homem simultaneamente responsável e culpado pelo seu destino individual, entreabrindo desse modo o darwinismo social como contraponto desse libertarismo. Em sua linha programática, as MPs da liberdade econômica e do emprego verde-amarelo não têm nada de liberais. Por isso, tendo em vista os retrocessos que acarretam, são muito mais preocupantes do que seus idealizadores tentam fazer crer.
José Eduardo Faria é professor titular da Faculdade de Direito da USP e chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito.