por Heloisa Pait
Qual o uso apropriado das redes sociais por agentes públicos? Quando esse uso é informativo, colaborativo, propagandístico, ou opressivo? Parecia poucos anos atrás que nas redes sociais os cidadãos expressariam seus anseios e cobrariam os homens públicos, que por sua vez responderiam com informações e políticas públicas de melhor qualidade. Fomos ingênuos.
O caso mais grave que nos vem à mente é o dos tweets do atual ocupante da Casa Branca, parodiado na música “Confounds the Science”, do Parody Project. Frases sem nexo, repletas de ódio, atacando pessoas ou organizações legítimas, seriam apenas patéticas vindas de um cidadão comum pouco letrado. Entretanto, são catapultadas para o debate nacional pela força do governo federal americano, com seu orçamento, suas agências e seu impressionante poder bélico.
A liberdade de expressão e o estado de direito (“rule of law”, nos Estados Unidos) protege os americanos da fúria desses tweets, que eles podem responder, criticar, parodiar e principalmente ignorar. Mas podem também, como indivíduos e grupos, temer. O que é permitido ao cidadão comum – jogar suas frustrações em textões do Face e xingamentos no Twitter – não é aceitável para quem tem o poder e a responsabilidade pública de dirigir um governo.
O hábito de os políticos brasileiros responderem com ações na justiça a jornalistas que, no cumprimento de suas funções, investigam seus crimes, preocupa organizações nacionais e internacionais, tais como o Comitê de Proteção aos Jornalistas. Essa sensação de que não devem satisfação ao cidadão comum – e que este lhes deve obediência – extravasa para o ambiente comunicativo, o que na verdade não deveria ter nos surpreendido. Lembro-me do caráter agressivo e despropositado de algumas mensagens que recebi do hoje condenado Eduardo Azevedo, ex-presidente do PSDB, alguns anos atrás.
Por que ele, que esvaziou cofres públicos como se fossem privados, veria a conversa pública com mais respeito? A cultura política pode ser transformada pela introdução de novos meios de comunicação, como sugerem as idéias de Marshall McLuhan. Mais provavelmente, ela se adaptará com modificações a um novo contexto comunicativo, depois de um período inicial de choque, que é o momento que vivemos agora. Políticos que primeiro ignoraram o novo ambiente comunicativo agora o usam para reproduzir o status quo ante.
E o fazem de várias formas. O atual prefeito da maior cidade do Brasil, que ele pretende transformar numa cidade inteligente, monitora a internet em busca de críticos, importunados na arena jurídica com seus fartos recursos privados. Sua compreensão a respeito do uso de recursos digitais para a vida urbana se limita ao uso desta mesma tecnologia para reforçar um poder pessoal, autoritário, arraigado na cultura política nacional e celebrado culturalmente nas infinitas histórias de jagunços, coronéis e lealdade.
Lembremos que é o Estado que deve satisfações aos representantes, e não o contrário: o cidadão deve obedecer à lei impessoal tão-somente. A jornada pela limitação dos poderes absolutos do Estado começa com a medieval Carta Magna; por mais que critiquemos o patrimonialismo português, é fato que no mesmo período nossos antepassados ibéricos reduziram o caráter arbitrário da ação estatal com extensas regulamentações escritas.
O direito à informação é consagrado pela Declaração de direitos do homem e do cidadão francesa: “La Société a le droit de demander compte à tout Agent public de son administration.” Antes, a Constituição americana já havia, em sua primeira emenda, garantido o direito popular de fazer petições ao governo. Peço perdão pela ironia, mas não se encontram nos documentos citados exceções para jovens jornalistas ou membros de partidos de oposição; o direito parece ser bem abrangente.
Hoje, informações públicas podem ser oferecidas de modo muito completo, em tempo real, e acessível à população, através da internet. Os ganhos com a transparência governamental são tremendos, inclusive para a própria administração pública. Parte da função de organizações não-governamentais como a Open Knowledge Brasil (à qual pertenço), com projetos como o Gastos Abertos, é exatamente mostrar tais benefícios a gestores públicos, jornalistas e população. Não se trata aqui apenas de reduzir o mau uso de verbas públicas através da vigilância, mas de dar mais eficiência à gestão pública através de cruzamento de dados e colaboração dos cidadãos. Algumas informações em poder do Estado devem ser resguardadas, seja por afetarem a segurança nacional, ou por infringirem o direito à privacidade do cidadão. Ausentes essas condições, o ideal é sempre a publicidade; meu orientando Ruan Sales estudou o assunto em sua monografia e dissertação de mestrado, a qual recomendo.
Representantes e gestores públicos devem compreender que a transparência sobre seus atos e sobre as ações de suas pastas e gabinetes é sua obrigação, condição para sua atuação. Não existem encontros “fora da agenda” legítimos, a não ser com razões muito bem estabelecidas e registradas para conferência posterior. Não podem existir gastos ocultos, ações ocultas, decisões ocultas, pela própria natureza de seu ofício, que é público. Diz Hannah Arendt que a indistinção entre o público e o privado é parte da condição moderna. No Brasil isso foi reforçado pelo patrimonialismo histórico e por um discurso autoritário de esquerda que joga holofotes sobre o privado, demonizando-o, enquanto protege o público na sombra, legitimando as práticas mais nefastas.
De posse de informações públicas, compartilhadas, aí sim podemos nos dirigir aos representantes de modo altivo, de igual para igual; enquanto isso, somos tutelados. Um governante que não publica seus atos é antes de tudo um fraco, pois só aceita entrar no debate público escudado pela desinformação dos interlocutores. Caso ele se comporte de modo honrado e aceite que tenhamos os mesmos dados que ele, aí sim é legítimo que entre em diálogo conosco, respondendo a possíveis críticas com base em fatos, seja com explicações ou com correções de suas ações, naturais numa democracia. Até esse momento, não é diálogo: é só bravata.
Faz sentido que representantes legislativos se engalfinhem com seguidores nas redes sociais: a natureza de seu ofício é o debate, o confronto de idéias, o convencimento, a contestação de adversários. Nada mais natural que esse debate parlamentar extravase para o campo digital, ainda que congressistas devam se esforçar para tornar tal debate algo produtivo e evitar o uso pessoal dessa audiência que só existe devido a seu cargo público. Um exemplo positivo dessa atuação é o deputado Roberto Freire, que se expõe, contesta, debate de verdade nas redes sociais. Paradoxalmente, o antigo Partido Comunista Brasileiro, hoje Partido Popular Socialista (PPS), é o que mostra uma compreensão e uma prática mais próxima dos ideais democráticos e liberais entre nossas dezenas de partidos, mas isso fica para um próximo ensaio.
Já a função primordial de postos executivos não é esse rico debate de ideias; tempo gasto na internet, nesse caso, é tempo tirado das sérias responsabilidades do cargo sobre a saúde, a segurança, a educação e, em última instância, a vida da população. Esses governantes devem primordialmente usar suas redes sociais para divulgar informações públicas, apoiar campanhas específicas de suas pastas, ou no máximo atender ao singelo desejo humano de compartilhar seu dia-a-dia com seguidores mais interessados. A defesa de suas ações deve vir de informações completas e oficiais, e não feita em bate-bocas digitais e assimétricos. Ouvir e prestar contas: só isso se espera deles no meio digital.
Especialmente em cargos altos, protegidos por foros especiais e imunidades que postergam eventuais processos para depois do mandato, é deplorável o uso do cargo para retrucar a cidadãos ou à imprensa. Nossos governantes precisam compreender que o palco digital é do cargo que eles ocupam, e não deles como cidadãos privados. Como pessoas, recomendo que se lembrem do exemplo de seus antecessores que, findo o mandato, à direita e à esquerda, João Baptista de Oliveira Figueiredo ou Dilma Vana Rousseff, são homenageados pelo infalível esquecimento nacional. Enquanto isso não acontece, por força tão-somente de seu poder corrente e concedido pelo eleitor, devem respeitar a si mesmos, no embate público digital, através do respeito ao outro, que somos todos nós.