por Felipe Massao Kuzuhara
O Brasil levantou da cama na última terca-feira em estado de choque, com a notícia da queda do avião na Colômbia, rumo a Medellín. Aliás, não só o país: o mundo ficou tocado pela tragédia do voo que transportava a delegação da Associação Chapecoense de Futebol. Da Inglaterra, o estádio de Wembley se pintou de verde em homenagem aos mortos; da Colômbia, a mesma coisa; e por tantos outros cantos do planeta pôde-se ver gestos e manifestações em solidariedade. Porque, de uma maneira ou de outra, cada um de nós se pintou de verde, em algum pedacinho dentro de si. É a isso, e ao que aconteceu em Brasília nestes dias, que se dirigem estas reflexões.
A morte dos jogadores, comissão técnica, jornalistas e comentaristas de futebol não foi uma morte qualquer. No Brasil, mais de 120 pessoas morrem de trânsito por dia, e morrem mais de 3 mil por dia como um todo. Não há morte mais importante que a outra. No entanto, num acidente violento e inesperado envolvendo um grande número de pessoas, em grande parte jovens, o impacto é ainda maior. Para aumentar nossa dor, a Chapecoense representava talvez o que houve de mais inocente e feliz em nosso futebol este ano: o pequeno time-cinderela que vivia seu conto de fadas, a pousar na inédita final de um campeonato sul-americano, no ápice de sua história. Em outras palavras, foi todo um sonho que virou pesadelo. A morte da Chapecoense nos arremessa contra o fato de que a alegria da vida, por mais intensa e promissora que seja, pode ser arrancada de nós a qualquer instante.
O alcance da “morte” nunca conheceu consenso na psicanálise. Faz sentido, considerando a dificuldade que temos em explicar ou lidar com a morte. Em Luto e Melancolia, Freud apresenta a ideia de que, frente a proximidade de uma morte, passamos por um complexo processo emocional, pelo qual tentamos processar a perda e a dor no vazio em que passamos a subsistir. A psicanalista Ignês Sodré trata do mesmo tema. Mas lida com a discussão em torno da peça Philoctetes, de Sófocles. Nesse sentido, a perda pela morte é comparada a uma ferida mítica, rasgada dentro de nós, num sofrimento que parece ser incurável. Julia Kristeva não lida diretamente com a morte. Mas ela apresenta uma noção pertinente no contexto deste texto. Em seu Revolução da Linguagem Poética, Kristeva chama de chora (emprestado ao grego khôra para designar “aquilo que esta fora da polis”), a ideia de que retemos uma fonte de experiência básica, pré-linguística, de onde emerge de maneira abrupta uma força desestabilizadora de nossa linguagem, e capaz de rearranjar nosssas estruturas básicas. Nesse sentido, a chora pode ser entendida como um desafio – o nosso esforço de representação e compreensão.
Traduzindo para o debate aqui, a noção de chora em Kristeva ajuda a ver que a morte nos leva a questionarmos aquilo que temos de mais estável, ao mesmo tempo que, a partir da experiência coletiva de catarse emocional, tentamos prover um significado que dê sentido em cada um de nós. Foi assim, por exemplo, com uma enormidade de pessoas que se entristeceram profundamente com o acidente. Na tentativa de estabilizarmos nossa ferida e tentarmos dar algum sentido à perda súbita, buscamos saber mais sobre os detalhes do acidente, o que aconteceu com o piloto do avião, com a aeronave, com o combustível. Nada mais humano e solidário. Da mesma maneira, muitos de nós acompanhamos, a partir de uma grande arquibancada, a trajetória dos sobreviventes do acidente, lendo seus relatos, e torcendo por sua recuperação. Torcemos pela vida – que apesar de tudo continua.
Em Velórios, publicado em 1936, o jornalista Rodrigo de Andrade escreve uma série de contos. Todos eles giram em torno de reações diversas frente à morte ao longo de uma série de velórios. Andrade consegue propiciar brilhantemente ao leitor aquilo que Kristeva sugere com sua noção de chora. Isto é, nosso desnorteamento ao tentarmos reagir frente ao impacto da morte. Nesse caso, o livro de Andrade vai muito além da profunda tristeza e vazio. Ele descreve outras reações, que vão do trágico, passando pelo violento, cômico, até chegar no grotesco. Segundo Velórios, seriam estas algumas das possibilidades de nossa condição, ao tentarmos seguir caminho frente a morte.
Dentre outras reações na vida real, chama atenção a de Fernando Carvalho, dirigente de futebol do Internacional de Porto Alegre. De sua consternação com o acidente do avião da Chapecoense, ele tenta traduzir a tragédia da morte para o seu contexto. Isso é, ele estaria em busca de um referente na sua experiência atual para estabilizar e achar uma linguagem desse conta do trauma. Mas ele falhou ao comparar a trágica morte de mais de 70 pessoas com a ameaça de rebaixamento de seu time. Assim como para o leitor de Rodrigo de Andrade, para o ouvinte de Carvalho a sua reação desencadeia uma reação forte. Para alguns, a sensação de profunda raiva, para outros, um riso aflito. A morte não deixa ninguém indiferente.
Pelo menos, podemos dizer que o dirigente do Internacional tentava processar a experiência da perda, que todos nós compartilhamos. Neste sentido, ele acusou o golpe ao se mostrar desorientado. Por isso e apesar de tudo, ele também faz parte do nosso luto coletivo pelo acidente com todo o time da Chapecoense.
O mesmo não se pode dizer sobre nosso Congresso Nacional em Brasília. Enquanto o país acordava abalado em luto, os deputados se aproveitaram da situação para votarem em benefício próprio um pacote contra medidas de combate a corrupção. Como dizer, em palavras, o que foi isso? Uma atitude inominável. Não bastasse a corrupção de nossas leis, resolvem agora transgredir uma das experiências que nos definem de maneira misteriosa, em nossa humanidade. Falo, claro, do luto ou a regra com a qual velamos por nossos mortos e ancestrais. Nesse momento ouço as palavras de Chico Buarque: “num tempo, página infeliz da nossa história, passagem “viva” na memória, das nossas novas gerações, dormia, a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída, em tenebrosas transações…”. Compartilho com tantas outras pessoas a dor e o profundo respeito pelas vítimas do acidente e por seus familiares. Já para Brasília, me viro e digo: não passarão!
Felipe Massao Kuzuhara é economista e doutorando pelo Birkbeck College de Londres em Psicologia Social.