O STF entre tanques e togas

José Eduardo Faria analisa o livro de Felipe Recondo, "Tanques e Togas", que investiga e relata as relações entre o Supremo Tribunal Federal e o poder político durante a ditadura militar no Brasil.
Composição do STF em 1965 com 16 ministros. Fonte: Acervo STF

por Jose Eduardo Faria

Quem trabalhou em agências de fomento à pesquisa na área de ciências sociais, entre 1980 e 2000, testemunhou a forte resistência do Judiciário em receber pesquisadores empenhados em estudar a instituição. Pesquisas importantes foram feitas às duras penas, pois alguns presidentes de tribunais tinham aversão à transparência da Justiça, por temer que ela a enfraquecesse politicamente com relação ao Executivo e ao Legislativo. Opacidade é poder – disse-me à época um desses presidentes, em conversa informal.

A determinação de desvendar essa opacidade no Supremo Tribunal Federal, num período ditatorial, em que os julgamentos eram realizados em meio a condições cambiantes e descontínuas e o procurador-geral da República exercia papéis conflitantes, atuando simultaneamente como advogado da União e chefe do Ministério Público, torna imperdível a leitura do livro de Felipe Recondo, Tanques e Togas: o STF e a ditadura militarsobre a mais alta corte do país. Uma corte cujo cotidiano era marcado por um jogo de sombras entre o formal e o informal, por negociações políticas e corporativas e por interpretações restritivas das leis e por outras mais jeitosas para adequar a ordem jurídica a pressões ilegítimas, tendo como contraponto histórico um cenário de prisões, cassações, censura, repressão e tortura. Um jogo sutil, em que os ministros mais hábeis, aceitando perder votações num momento para ganhar outras mais importantes à frente, em alguns momentos superestimaram suas espertezas e acabaram vendo a corte atingida em sua essência, como ocorreu quando o presidente Castello Branco aumentou de 11 para 16 o número de ministros, diluindo assim o bloco que considerava contrário à Revolução. Um jogo por vezes surrealista, em que ministros da corte chegaram a propor um acordo ao advogado (Arnold Wald) de um réu acusado de crime político, e não vice-versa, como seria de se esperar.

A narrativa sobre o STF nos anos de chumbo mostra que alguns ministros não tinham competência para processar informações políticas, enquanto outros tinham consciência de que a luta pela redemocratização, após o golpe de 64 e a ascensão da linha dura depois do AI-5, necessitava de atores com estatura que o período sob a égide da Constituição de 1946 não conseguiu produzir em grande número. Na formalidade da toga ou no anonimato da informalidade, alguns ministros tentaram preservar o STF como instituição, enquanto outros comportaram-se como áulicos, contribuindo para a conversão da corte num órgão menor, incapaz de promover o controle da constitucionalidade das leis.  O impasse entre as togas e os tanques, especialmente após a ascensão da linha dura, entre1967 e 1968, é agravado pela perda de foco e pelas crises nas organizações responsáveis por mediações e orientações políticas, como partidos e sindicatos. A cada capítulo fica claro como, por necessidade de sobrevivência do STF e de autopreservação de seus ministros, eles desenvolveram práticas informais de atuação.

Eram tempos incertos, em que o Judiciário não tinha força institucional para enfrentar o Executivo. Nem, muito menos, condição de contrapor uma concepção liberal clássica de direito público, que via na Constituição de 1946 a condição a priorida legitimidade da ordem jurídica, à visão autoritária dos juristas que serviam à ditadura, como Francisco Campos e Carlos Medeiros da Silva. Para estes, a “Revolução de 64” não era apenas um poder constituinte originário, que se esgotara com a ruptura da ordem jurídico-política anterior. Era, acima de tudo, um poder constituinte contínuo e dinâmico, para que os “revolucionários” pudessem atingir seus objetivos, legitimando-se a posterioripelos resultados alcançados. Inspirada no pensamento do jurista alemão Carl Schmitt, cuja carreira foi maculada por sua proximidade com o nazismo, essa ideia foi expressa formalmente no preâmbulo de dois atos institucionais, o AI-2 e o AI-5.

Embora não seja esse seu objetivo, o livro revela como a força das leis costuma, entre nós, ser relativizada por parte dos encarregados de aplicá-la. Basta ver como se desenvolveram no STF relações informais com agentes institucionais. Nessa linha, um dos personagens centrais é o ministro Ribeiro da Costa, filho de general e irmão de ministro togado do Superior Tribunal Militar. Se por um lado nunca afrontou os militares para defender garantias fundamentais, por outro demonstrou esperteza na defesa corporativa e institucional do STF em episódios tensos, como o da alteração do número de ministros do Executivo, a ponto de ameaçar fechar a corte e entregar as chaves no protocolo do Palácio do Planalto. Se realmente tinha coragem para tanto ou se era apenas um “galo garnizé”, como disseram informalmente alguns de seus colegas, é difícil saber. Ribeiro da Costa, diz Recondo, ficava entre a coragem cívica e o pragmatismo, conforme a ocasião.

Ao contar como um ministro da Justiça (Juracy Magalhães) indicou para o STF um juiz baiano de carreira opaco (Adalício Nogueira), cujo mérito era ser seu consogro, configurando um caso explícito de nepotismo, o livro aponta a hipocrisia moralizadora dos “revolucionários”. Descreve as articulações feitas por ministros egressos da vida política, como Oswaldo Trigueiro, Aliomar Baleeiro e Adaucto Lúcio Cardoso, para tentar evitar que esse magistrado sem traquejo e bagagem para enfrentar uma situação dramática, assumisse a presidência da corte menos de dois meses após a edição do AI-5 e semanas depois da cassação de Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal e Hermes Lima. Se Adalício emerge como figura patética, outros ministros, independentemente de suas distintas inclinações ideológicas e origens partidárias, saem engrandecidos. Ao lado de Adaucto e Aliomar, udenistas com sólida formação jurídica afrancesada, destacam-se Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal, com inclinações doutrinárias diferentes, mas com a experiência de quem ocupou cargos ministeriais nos governos de JK e Goulart. Dos cinco, estes três tiveram a carreira abortada; Adaucto renunciou ao cargo quando se viu derrotado no julgamento de um recurso que contestava a censura à imprensa imposta pelo regime militar, colocando teatralmente a toga sobre o espaldar de sua cadeira; e Aliomar, com a autoridade de catedrático de direito, deputado e ex-presidente da corte, passou a cobrar dos governos militares respeito às liberdades públicas.

Talvez por ser vista como um poder neutro, alheio às disputas políticas para integrar o Legislativo ou exercer posições de mando no Executivo, a história do Judiciário brasileiro nunca teve a devida atenção que merecia. De certo modo, é como se a história da política pouco tivesse a ver diretamente com o direito estabelecido nos tribunais. Isso explica porque o número de trabalhos acadêmicos recentes sobre o Supremo, durante o período ditatorial, seja pequeno. Há alguns anos, Otávio L. S. Valério apresentou e defendeu na USP a dissertação de mestrado “A toga e afarda: o STF e o regime militar (1964-1969)”. Recentemente, o professor Rafael Mafei Rabelo Queiroz, do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da USP depositou sua tese de livre-docência, que só poderá circular após a realização do concurso, intitulada “A UDN veste a toga: uma história das relações entre direito e política no STF contada a partir dosdocumentos pessoais e das decisões do ministro Aliomar Baleeiro”. No caso de Tanques e Togas: o STF e a ditadura militar, o autor não é historiador e sua proposta não foi fazer um trabalho acadêmico, questionando dúvidas sobre fontes primárias e discursos. Como jornalista, propôs-se apenas a desvendar uma corte que, até recentemente, não tinha maior visibilidade. Esse é o papel do jornalista competente: ajudar os leitores a restabelecer acontecimentos, a reatar fios partidos e a avaliar detalhes aparentemente menores. Se os jornais são uma ponte entre o leitor e o mundo, livros escritos por jornalistas, como este, são sua memória.

José Eduardo Faria é professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da Fundação Getúlio Vargas.

Mais de José Eduardo Faria no Estado da Arte:

“Há uma mudança no conceito de prova, de processo e de delito”

e Reformar a Constituição: da discussão necessária ao irrealismo político

COMPARTILHE: