por Hugo Guimarães
Parece inegável que a Operação Lava Jato tem trazido à tona grandes modificações no campo do Direito. Com a recente condenação em segundo grau de um ex-Presidente da República – e a possibilidade de sua prisão – retornam as questões sobre o sentido das modificações no Direito que tornaram possível a operação. Por que a Operação Lava Jato ocorreu somente agora? Não podia ter ocorrido antes, a partir do caso Banestado – também julgado pelo juiz Sérgio Moro – ou de alguma grande operação da Polícia Federal ocorrida na década passada – como a Operação Satiagraha? E, ainda, será que ela representará um novo momento para a justiça criminal brasileira, especialmente em relação aos crimes de colarinho branco?
Quando falamos sobre modificações que tornaram possível a Operação Lava Jato, é quase unânime a citação da instituição da delação premiada pela lei nº 12.850/2.013. Mas esta é uma resposta problemática e que ignora alguns dados. Em primeiro lugar, embora a delação sem prêmios, conhecida como “chamada do corréu”, faça parte do Direito e da cultura jurídica brasileira desde muito tempo – e, inclusive, da cultura popular, como atestam as canções de Bezerra da Silva – a delação premiada passou a constar do nosso ordenamento em 1999, quando a lei nº 9.807/1.999 foi promulgada. Muito antes da operação, portanto. Em segundo lugar, as leis, por sua natureza, têm o condão de limitar, de dar contornos à prática jurídica, mas essa prática tem de ser criada não só a partir dos textos legais, como também da tradição.
Nesse sentido, concordamos com o professor José Eduardo Faria – em recente entrevista publicada neste Estado da Arte – quando reconhece a importância da mudança de mentalidade para o sucesso da Operação Lava Jato, “especialmente na primeira instância da Justiça Federal e no Ministério Público de um modo geral”. Fica claro que personagens como o juiz Sérgio Moro e o procurador da república Deltan Dallagnol são muito mais importantes para a operação do que pode parecer à primeira vista. Continuando com o raciocínio exposto na entrevista pelo professor Faria, a formação próxima ao Direito anglo-saxão – ambos fizeram cursos em Harvard, por exemplo – teria levado a uma inflexão e a um choque de gerações.
Mas a questão que realmente nos interessa aqui é esta: como esse choque de gerações pode ter se dado? Indo direto ao ponto: a mudança do local em que um juiz se forma ou com que professores ele estuda deveria levar a mudanças significativas na condução dos processos e nas sentenças que ele produz em um país de tradição romano-germânica como o nosso, em que a lei é o principal dado a ser interpretado?
Parece-nos que, mais do que proximidade com o Direito anglo-saxão, essa visão é dependente de uma corrente teórica muito específica naquela tradição e que tem tido bastante influência nos últimos anos em nosso país. Trata-se do chamado Realismo Jurídico de Alf Ross, Oliver Wendell Holmes, Karl Llewellyn e Jerome Frank. Resumindo bastante, essa escola procura focar a análise jurídica na “realidade”: “o direito é aquilo que os tribunais dizem que é”, escreveu Holmes. Mas a dicotomia apresentada pelo professor – “a vida do Direito não é lógica, é experiência” – é falsa. Não há uma necessidade de escolha entre a experiência – os casos – e o uso da subsunção a partir de regras. Ambas são falsas imagens do Direito e da tarefa do intérprete. O Direito é sempre a aplicação de um texto a um caso específico, mas isso não implica em uma subsunção do fato à lei, e nem na tomada de decisão pura e simples. Sempre haverá texto – seja na forma de tradição oral, de julgados ou de leis – e mesmo os fatos são “textos”: eles também devem ser interpretados.
Aliás, o “diagnóstico” de Faria – o choque de gerações e dos sistemas históricos na prática do Direito brasileiro – parece correto. Afinal, quando o ministério público defende a utilização das conduções coercitivas fora dos limites estabelecidos pelo Código de Processo Penal – em suma, somente após a testemunha ou a parte recusar-se a comparecer – ou delações premiadas fora dos marcos legais – com concessão de perdões e reduções de pena muito além dos limites legais – com base em estatísticas, no Direito de outros países, ou em argumentos morais destinados a superar a legalidade, é no espírito de certo realismo jurídico – poderíamos dizer até, de uma vulgata sua, com Lênio Streck – que se está apostando. Mas não seria o tom de louvor desse “novo espírito”, presente na entrevista do professor Faria, um pouco ingênuo? Porque, até agora, pela sua aplicação no Brasil, ele tem se mostrado muito mais como um modo de utilizar-se o Poder Judiciário para afastar a vigência de leis das quais não se gosta ou que, acredita-se, dificultarão o que se pretende conseguir.
Continuando, a influência desse pensamento em nosso país é facilmente perceptível nos argumentos que andam dominando as discussões públicas sobre Direito nos jornais e nos tribunais. Recentemente, por exemplo, o ministro do STF Luís Roberto Barroso e o ministro do STJ Rogério Schietti escreveram artigo defendendo a possibilidade de prisão de réus após esgotada a segunda instância que está recheado de estatísticas. Nos julgamentos sobre a questão, ministros argumentavam também com base em direito comparado, isto é, em como funciona o Direito de outros países.
Aliás, a execução antecipada da pena – após a condenação em segundo grau – vem sendo vendida como a nova panaceia contra a impunidade. Entretanto, antes de 2009, quando o STF declarou como inconstitucional a execução da pena antes do trânsito em julgado definitivo, tínhamos, por acaso, uma situação melhor – do ponto de vista da diminuição da impunidade e do uso protelatório de recursos judiciais? Acreditamos que qualquer um que olhe desapaixonadamente para o quadro anterior a 2009 concluirá que a prisão após a condenação em segunda instância pouco muda. Ou seja, o STF demorou 21 anos para respeitar a normatividade da Constituição em relação ao cumprimento da pena. O Judiciário e o Legislativo têm demorado sobremaneira para tratar a Constituição como norma e adequar as leis ao paradigma constitucional. O que vemos agora, com essa postura realista à brasileira, é o Judiciário atropelar o Legislativo e, tendo como pretexto o cumprimento de certo espírito da Carta, transbordar seus poderes constitucionalmente delimitados. É o violar a Constituição, para protegê-la – como se os limites formais impostos pela Carta fossem menos importantes do que seu conteúdo. É o Judiciário agindo como “vanguarda iluminista”.
Neste sentido, ficam algumas perguntas: o STF é uma corte de Direito Constitucional ou um órgão do Poder Legislativo? Os ministros não deveriam estar argumentando com base na Constituição, no texto constitucional? Quando as partes legitimadas a provocar uma atuação dos tribunais entram com uma ação, elas estão querendo saber o que dizem as estatísticas? Ou então o que acontece no Direito de outros países? Ou ainda quais são as convicções morais dos juízes? Suas opiniões políticas?
Alguns ligam essa aposta no Poder Judiciário como forma de superar os problemas do Congresso Nacional (morosidade, desinteresse ou incapacidade de votar certos temas, etc.) com uma visão esquerdista do mundo. Realmente, é certo que historicamente a esquerda brasileira busca formas de burlar o conservadorismo do Congresso Nacional – visto como conservador – e que certas correntes – como o movimento do uso alternativo do Direito ou o “Direito achado na rua”, de Roberto Lyra Filho – postulam um ativismo judicial que funcionaria como uma espécie de “vanguarda iluminista”, nos dizeres de Barroso.
Entretanto, não é menos verdadeiro que as elites políticas nacionais e a direita reacionária e pouco culta – tipicamente brasileira – também não têm grande apego pela institucionalidade. Basta ver os golpes – militares ou não – promovidos pelas direitas no país ao longo da história. Ou, ainda mais recentemente, a resistência em aceitar a normatividade de diversos trechos de nossa Constituição, com o Poder Judiciário apegando-se aos códigos e leis feitos durante os regimes autoritários e recusando-se a filtrá-los através de uma leitura constitucional.
Por isso, ainda convivemos com o protagonismo do juiz que, no Brasil, é o rei do processo. Apenas em um sistema inquisitorial como o nosso, pode o juiz ser responsável por ir atrás da prova. Por isso, vemos juízes que perguntam mais às testemunhas e aos acusados do que os próprios promotores; ou que decidem sobre prisões e cautelares na fase pré-processual e ainda são considerados imparciais para julgar o feito. Apelando à metáfora futebolística, é ele responsável por marcar o pênalti, expulsar o goleiro, realizar a cobrança e comemorar o gol.
O processo inquisitório também é burocrático, escrito e moroso. Devido à oralidade, o processo no sistema acusatório é muito mais rápido. Aqui, convivemos com julgamentos como o de Lula no TRF-4 em que, após as sustentações orais das partes, os juízes começaram a leitura de seus votos prontos. Isto é, os debates orais em nada influenciam a decisão.
A Operação Lava Jato, assim, soube aproveitar-se dos defeitos já presentes em nosso sistema processual e conjugá-los com um ativismo judicial de cunho realista para conseguir uma igualdade processual às avessas: ao invés de universalizar as garantias constitucionais e o sistema acusatório da Constituição – acessíveis somente aos ricos e poderosos que podiam pagar bons advogados – universaliza-se o inquisitorialismo arbitrário.
Logo, enquanto vemos os nossos vizinhos reformarem seus sistemas de justiça criminal para aproximarem-se do sistema dominante nos Estados Unidos e na Europa – desde os anos 2.000, Colômbia, Chile, Argentina e Uruguai aprovaram novos Códigos Processuais que instituem ou aperfeiçoam o sistema acusatório – nós não conseguimos superar o inquisitorialismo de nosso Código de Processo Penal, fruto da Ditadura Vargas e cópia do “Codice Rocco”, o código do fascismo italiano.
Resta trabalhar e torcer para que esta “igualdade ao contrário” entre ricos e pobres – violadora dos direitos e garantias constitucionais – gere uma oportunidade que possa nos levar à reforma de nossa justiça criminal, agora que suas arbitrariedades não atingem só ladrões de galinha.
Hugo Guimarães é Bacharel em Direito pela UFPR, com mestrado em Filosofia pela mesma instituição.