por Felipe Massao Kuzuhara
Imagine um país no qual ideias abomináveis, infames e condenadas a um passado torpe e triste deixassem de ser inaceitáveis. Entre nós, há intensos debates, exasperação, e intolerância mútua. Além da paranoia, claro, e várias teorias para se explicar o estado de choque em que vivemos. Para quem pensou “Brasil”, permita-me uma pausa: a meu ver, a boa resposta considera antes “Inglaterra”, “Polônia”, “Estados Unidos”, entre outros cantos do mundo. É a partir desta ótica que olho para o Brasil em tempos de eleição, e vejo o politicamente incorreto costurado a toda uma atitude antissistema que por vários motivos emerge no mundo.
Anne Applebaum, do Washington Post e da London School of Economics, escreveu e comentou recentemente sobre o atual panorama político da Polônia. Essencialmente, ela desceve um rápido processo de transformação no país, em que amigos deixam de se falar ou passam a se detestar por conta de rupturas na política local. Lá, o autoritarismo aberto, as teorias da conspiração, o controle da mídia, a tentativa de releitura do Holocausto nazista, a profunda desconfiança sobre a União Europeia e os imigrantes, passam a fazer parte da vida quotidiana. Perplexa, Applebaum — especialista na Europa da “cortina de ferro”, sobre a qual escreveu um livro já clássico — não consegue especificar razões claras o suficiente que justifiquem mudanças tão drásticas, e tampouco restringe seu diagnóstico a apenas uma situação isolada.
Ela simplesmente constata que, em maior ou menor grau, algo semelhante também acontece, por exemplo, na Hungria, na Grécia, na Itália, mesmo nos Estados Unidos, e na Ásia. A partir disto ela esboça uma nova tendência política à espreita no mundo hoje. Nesse contexto, nossa familiar divisão esquerda/direita, calcada no debate sobre o tamanho do Estado, o funcionamento do mercado, e em como se fazer justiça social, torna-se secundária. Estas preocupações acabam por ser deslocadas ou suplantadas por um novo contraste de forças, uma nova agenda de tensão política.
De um lado, temos por exemplo os principios democráticos e suas instituições, as liberdades individuais, e os problemas de como se exercer estes valores na prática. Do outro lado, vemos agora uma movimentação de cunho antiestablishment associada a uma atitude ostensiva e ofensiva. Muito do que seria reprimido ou rejeitado antes fica posto às claras agora.
Na ausência de um termo mais preciso, associo esta atitude antissistema à cultura punk dos fins da década de 1970. Sim, é evidente, estes novos punks não usam cabelo moicano, correntes ou piercings. Mas eles também chegam para chocar, à sua maneira, ao ofenderem muitas normas de cunho liberal e democrático, e se vestirem de um viés autoritário, provinciano, com pitadas de intolerância somada à defesa de uma noção de pureza e pátria — originalmente estranha ao punk, mais próxima de outros grupos. Por este viés, os novos punks de hoje continuam a radicalizar e gritar contra o sistema.
Há dois anos atras, o Reino Unido passou por um referendo sobre sua separação da União Europeia. Para surpresa de muitos, o voto majoritário disse “sim”, naquilo que ficou conhecido como “Brexit”. Acompanhei este momento de perto e vejo muitos traços similares entre esse processo e as eleições presidenciais brasileiras de 2018. Por exemplo, o Brexit era em muito descartado como algo quase impossível de acontecer. Mas ele tomou corpo subitamente, conduzido decisivamente por um partido nanico (UKIP), com um líder obscuro (Nigel Farage), acusado de racismo e xenofobia, dentro de uma agenda com inclinações à direita mais extrema. Além, é claro, de atacar todo o arcabouço que criou cooperação sócio-econômica do Reino Unido com a União Europeia. Nada disso diminuiu o ímpeto pró-Brexit. Ao contrário, o movimento a favor do Brexit deu voz a uma parcela da população que não se sentia representada no parlamento inglês, e causou um choque profundo no establishment. Em outras palavras, o sistema político foi lançado a uma crise, com seus dois maiores partidos (Conservadores e Trabalhistas) passando por grande instabilidade, trocas de comando, e tendo de reposicionar suas agendas em função da direção proposta pelo pequeno grande UKIP. Com o Brexit, então, o Reino Unido e sua tão decantada establilidade também tiveram seu processo de ruptura, seu ressurgimento de uma direita extrema, e seu tensionamento de instituições, na esteira de outros países. Sua antiga agenda política desmoronou de repente, na velocidade de um tapa eleitoral na cara de muitos.
Não acho que o surgimento de Bolsonaro no Brasil possa ser simplesmente explicado pela analogia com Trump, com o Brexit, ou o com o aumento de autoritarismo na Polônia. Claro que vive-se, no Brasil, um contexto específico, com o antipetismo, a questão da corrupção, as feridas políticas do impeachment de uma presidente e as dificuldades de recuperação na saída desse processo. Mas se nos afastarmos um pouco das figuras de Lula e Bolsonaro por um instante, é possível vermos muita semelhança entre o mundo e o que se passa no Brasil hoje. Pois radicalismo, intolerância, polarização, extrema-direita, surpresa, valores democráticos, e questionamento sobre instituições são alguns dos termos em comum, que passaram a frequentar a nova agenda de vários países.
Mais que isso, o resultado das eleições em primeiro turno no Brasil parece indicar uma atitude de franca rejeição por parte do eleitorado ao establishment político, à semelhança de outras votações no mundo. Não foi só o PT que foi confrontado. O PSDB também teve sua força política muito reduzida, na votação diminuta de seu candidato, assim como a tradicional alternativa oferecida por Marina Silva. Nossas antigas disputas também parecem estar suplantadas. Como pólo de um novo contraste de forças, Bolsonaro agora possui uma bancada significativa na câmara dos deputados, além de assistirmos a uma guinada à direita no senado federal. Tudo isso é muito recente e tem de ser melhor analisado. No entanto, com certeza já podemos dizer que aqui também o inacreditável passou ao centro da agenda política. Nesses tempos de grande incerteza e estranhas coincidências no mundo, acho ainda mais importante o exercício de se olhar o Brasil em contraste e comparação com o que ocorre fora dele, em uma perspectiva global, tendo assim maior sobriedade possível em relação a como conduzir o País a partir deste momento tão agudo.
Por ora, é como se a cabeça rodasse, e assistisse aos vencedores desta eleição simularem o não-conformismo de bandas como The Clash, em um novo mundo bizarro com sinal ideológico trocado. O antissistema já venceu, independentemente do resultado do segundo turno. Resta ver como os novos punks vão gozar do poder que lhes foi conferido. Seria Bolsonaro um primo estranho de Johnny Rotten, do Sex Pistols, com mais ambições destrutivas e reativas do que qualquer outra coisa? Enquanto não descobrimos a resposta, ouçamos os Pistols de novo.
Felipe Massao Kuzuhara é economista e psicanalista radicado em Londres