Pactos amnésicos no Brasil: Notas para uma história 

Por que os momentos decisivos da história brasileira parecem atravessados por uma espécie de amnésia constitutiva, como se avançássemos como nação apenas pela rasura do passado? 
Congresso Nacional pela Anistia, no teatro da PUC, em São Paulo, 1978. (Foto: Memorial da Democracia)

por Idelber Avelar

Nos albores do bicentenário da Independência, uma razoável certeza que se pode ter é que as noções de pacto e de amnésia têm caminhado juntas no Brasil. Em geral, nossos pactos políticos pressupõem alguma operação de esquecimento constitutivo, que jamais chega a ser ativo no sentido nietzscheano. Ou seja, o esquecimento que fundamenta os pactos brasileiros não costuma passar pelas águas da memória para reemergir forte e afirmativo do outro lado, mas toma a forma de uma rasura apressada, um arranjo mal ajambrado, um acordo espúrio pela desmemória. Estaria fora dos limites deste escrito revisitar em detalhe qualquer dos momentos-chave dessa história, mas vale registrar que, apesar da ausência de um estudo detalhado sobre a amnésia na política, o papel constitutivo do esquecimento em encruzilhadas específicas é assunto que não escapou à atenção da historiografia brasileira.[1] Do esquecimento do sangue negro e índio jorrado como premissa da modernidade e fundamento do país[2] ao esquecimento que inspirou a lei de anistia de 1979 durante a transição democrática, a desmemória é um problema, uma questão genuína que se coloca ao longo da história do Brasil. Trabalhando nos últimos tempos em área vizinha, a análise do discurso na política, tenho me deparado com o tema, que é complexo, espinhoso e próprio a generalizações apressadas ou essencialistas. Em todo caso, não parece descabido perguntar: por que os momentos decisivos da história brasileira parecem atravessados por uma espécie de amnésia constitutiva, como se avançássemos como nação apenas pela rasura do passado? 

A alusão a uma espécie de esquecimento próprio da Terra Brasilis já aparece no “Sermão do Espírito Santo” do Padre Antonio Vieira, que se converteu contemporaneamente em um capítulo de análise antropológica cujo alcance vai muito além do Brasil. Em “O mármore e a murta”, Eduardo Viveiros de Castro mapeia o tema da inconstância na narrativa dos séculos XVI e XVII em Anchieta, Gandavo, Lévy e culmina em uma leitura da formulação do “Sermão do Espírito Santo” segundo a qual as estátuas de mármore se contraporiam às de murta como operações difíceis de se realizar, mas sólidas ao longo do tempo, enquanto estas seriam de fácil moldagem à tesoura do  escultor, mas eminentemente fugazes, já que a mata logo cresce e dissolve a escultura no estado de natureza anterior. Vieira associa a possibilidade de catequese dos Tupinambá a uma estátua de murta, já que eles não parecem resistentes aos ensinamentos; pelo contrário, absorvem-nos com grande maleabilidade. Mas, com a mesma maleabilidade, no dia seguinte, parecem esquecer-se do aprendido e voltam a ser selva como antes, passam a outro deus. A teoria da inconstância da alma selvagem de Viveiros seria, então, também uma teoria do papel do esquecimento no encontro colonial ou, para ser exato, uma teoria do esquecimento como expressão da desleitura do colonizador.[3] Para Vieira e o colonizador português que só podia ver a outra cultura aristotelicamente, sob o princípio da não contradição, a mutabilidade dos Tupinambá aparecia, com efeito, como falha de memória. Não se tratava de que divindades concorrentes competissem com a cristã por espaço social, como no México ou no Peru. Era algo mais desconcertante, a saber, a ausência completa de divindades, o que permitia um passeio por cada uma delas que o português mal interpretava como amnésia. Poderíamos dizer que o momento fundacional da desmemória no Brasil foi uma desleitura do português, equipado para enfrentar as divindades incas ou astecas, mas não a pluralidade babélica dos Tupinambá. 

O fato é que desde o século XVI o esquecimento tem sido um espectro na literatura acerca de como o país vem a ser. Para o bem e para o mal, o esquecimento parece nos constituir enquanto nação, seja porque abraçamos a amnésia em momentos-chave de nossa história, seja porque narramos para nós mesmos ficções fundadas nela. O próprio referente historiográfico da independência do Brasil tem sido entendido como saída conservadora para a turbulência advinda da presença da família real no Brasil, de seu retorno às pressas a Portugal com a revolução liberal de 1820 no país ibérico e da consequente nomeação (e posterior decisão de permanência) de Pedro I como Príncipe Regente. Esse arranjo é tradicionalmente ensinado nos bancos escolares como repactuação conservadora que manteve a Monarquia e a Escravidão, e que contrastaria com as independências hispano-americanas por sua natureza de processo pacificado a partir da ação das elites imperiais. [4] A história dominante da própria Independência relega a uma posição ancilar os sangrentos processos de combates que tiveram lugar em Pernambuco, com a Revolução Pernambucana (1817) e a Convenção de Beberibe (1821), e em seguida as expulsões de portugueses que se seguiram na Bahia, no Piauí, no Maranhão e no Grão-Pará. Apesar da atenção que a historiografia brasileira tem dedicado a essas insurreições, a narrativa dominante que herdamos da Independência é ainda tributária do esquecimento da luta anticolonial e da pactuação dos interesses que ali que impuseram como dominantes. Emblemática dessa amnésia é a própria Praça Tiradentes no Rio de Janeiro, na qual curiosamente não há uma estátua de Tiradentes, e sim de D. Pedro I, neto da mesma dona Maria que ordenara a morte do alferes.[5] Nada exprime melhor o apagamento das insurreições republicanas que a praça nomeada a partir do líder da Inconfidência Mineira trazer uma estátua do regente português cuja avó havia sido responsável pela morte desse mesmo líder. Chama a atenção essa imagem como emblema da pactuação amnésica que se conforma em torno às nossas imagens da Independência.  

No Brasil Moderno, talvez o mais trágico componente amnésico de um pacto político tenha sido o esquecimento que possibilita o apoio de Luis Carlos Prestes ao mesmo Getúlio Vargas que havia enviado sua companheira, Olga Benário, aos fornos crematórios nazistas. É verdade que a rendição ocorre em um momento de negociação para a saída da prisão, mas ela tem lugar já depois da ampla circulação (julho de 1945) da notícia da morte de Olga (1942), em um momento em que o ditador já está na descendente e a transição se encaminha. Esse esquecimento dos esquecimentos na história moderna, que chegou ao ponto de levar Prestes a apoiar o próprio Queremismo (movimento pela continuação de Vargas), é também uma metonímia perfeita da amnésia com que costuma viver a esquerda brasileira acerca das câmaras de torturas, perseguições e violenta repressão do Estado Novo. A aliança PCB-PTB, cujas consequências iriam muito além do período democrático inaugurado em 1946 e que teria, por negação e antagonismo, um papel na própria fundação do PT (1980), se fundamenta então em um ato de esquecimento deliberado dos mais inimagináveis, no qual não é trivial que a sacrificada tenha sido uma mulher, estrangeira e militante comunista exemplar, conhecida pela galhardia com que enfrentou as piores ignomínias do Estado Novo e do nazismo. Talvez tampouco seja uma coincidência que o desvelamento da operação da desmemória no interior do discurso varguista-estadonovista tenha sido obra de outra mulher, a Profa. Maria Emilia A. T. de Lima, que escreveu um livro notável (como não poderia deixar de ser, esquecido) sobre como os discursos de primeiro de maio de Vargas construíram uma memória nacional comum–que, como toda memória nacional, dependia de operações específicas de exclusão e esquecimento.[6]

Há uma linha de continuidade entre a amnésia de Prestes, que encaminha a restauração democrática pactuada de 1946, e a amnésia da lei de anistia de 1979, que encaminha a restauração democrática posterior aos generais de 1964-1985. Segundo muitos, contraditório com o próprio direito internacional ao não garantir a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, como a tortura, o pacto amnésico de 1979 fez com que o Brasil fosse a única nação pós-ditatorial latino-americana a não julgar criminalmente um único ditador ou torturador. Nos países irmãos e muito especialmente na Argentina, as décadas de 1980 e 1990 foram de intenso trabalho mnemônico: retirada de todas as menções a torturadores em obras públicas, julgamento televisionado de ditadores, construção de museus, memoriais e exposições, parceria estatal com associações de mães e avós dedicadas a encontrar filhos e netos sequestrados e uma caudalosa bibliografia no terreno dos estudos da memória. No caso brasileiro, os estudos literários e culturais também trabalharam bastante, mas sempre a partir das dificuldades próprias da validação do trabalho da memória na pólis. No Brasil, nossos estudos seriam muito mais dedicados às gretas, às ausências e ao não dito na pactuação pós-ditatorial.[7] A própria sessão da Suprema Corte que optou por chancelar o pacto amnésico de 1979 foi recheada de algumas ironias. Derrotada por sete votos a dois em abril de 2010 (vencidos Lewandowski e Ayres Britto), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que questionava a lei de Anistia foi apresentada pela mesma Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que cumprira papel reitorial na sua negociação trinta anos antes. Temos aqui o curioso eterno retorno do esquecimento na história brasileira: o questionamento, ante a Suprema Corte, do pacto amnésico que funda nossa jovem democracia se realiza através da amnésia de uma entidade da sociedade civil do próprio papel que ela cumprira naquele pacto, fato que não passou despercebido no voto vitorioso com que o então Presidente Cezar Peluso acompanhou o relator Eros Grau. 

O outro grande momento de pactuação político-econômica no Brasil pós-ditatorial, o Plano Real que lhe estabiliza a moeda, se introduz com uma explícita louvação ao esquecimento. O “esqueçam o que escrevi”, que Fernando Henrique Cardoso talvez disse ou talvez não disse em um almoço com empresários no Rubayat em junho de 1993, apareceu pela primeira vez citado em uma reportagem publicada por João Carlos de Oliveira e Antonio Carlos Seidl na Folha de São Paulo e já entrou, de qualquer forma, para o folclore político do país. A negação de FHC de que tenha dito a frase é aqui de pouca monta. “Esqueçam o que escrevemos no passado, porque o mundo mudou e a realidade hoje é outra”, que é a citação tal como atribuída pelos jornalistas, é plausível como mote de todo o governo Fernando Henrique, atravessado pelo seu distanciamento de teorias desenvolvidas anteriormente por ele próprio, como a dependência. Por mais que se possa argumentar que há uma linha de coerência entre a teoria do autoritarismo de FHC (que via na ditadura um estamento burocrático, não um representante de um projeto de classe particular) e seu giro liberal-conservador como Presidente nos anos 1990,[8] não há como negar que a articulação da governabilidade tucana com frequência teve que recorrer a chamadas explícitas a que episódios da história brasileira contemporânea fossem esquecidos. 

O lulismo foi um período de muitos esquecimentos, claro, e a própria constituição do fenômeno em si—que segundo o autor que funda o conceito, André Singer,[9] se deu em 2005, com o Mensalão e a ida do PMDB ao governo—não ocorreu sem que se esquecessem trejeitos, termos, vestimentas e projetos do Lula dos anos 1980/90. Mais graves talvez tenham sido os esquecimentos da Blitzkrieg difamatória de Fernando Collor de Mello em 1989 e do quanto ele próprio, Lula, havia vaticinado contra José Sarney na segunda metade dos anos 1980. Collor e Sarney se converteriam em aliados tão próximos de Lula que ele terminou indo ao Amapá salvar o velho oligarca maranhense em uma eleição para o Senado na qual, sem a ajuda de Lula, Sarney muito provavelmente teria sido derrotado por Cristina Almeida, líder popular negra de impecável trajetória no PSB. Algumas dessas operações de Lula sobre o passado foram devastadoras para aqueles que lhes emprestaram credibilidade em algum momento. O jornalista Juca Kfouri não se cansa de relatar sua estupefação ao constatar que Lula havia abandonado o compromisso assumido com ele, de democratização do futebol, para abraçar Ricardo Teixeira – em um momento em que Lula, não Teixeira, era o único com algo a perder na associação. O esquecimento lulista da reforma agrária, pauta histórica do partido, consolida um processo já visível no português brasileiro desde a Constituição de 1988, a progressiva substituição da palavra “latifundiário” pela palavra “ruralista”, hoje já consolidada no jornalismo e em todas as variações dialetais do português falado no Brasil. 

Atravessando esses pactos políticos, uma tradição artística, literária e musical brasileira inventou outros registros para se pensar a memória e inclusive outras formas de se esquecer. No Manifesto Antropófago (1928), Oswald de Andrade ofereceu poderosas imagens de como a antropofagia ressignifica o esquecimento. Jamais fomos catequizados poderia ser tomada como a frase nietzscheana por excelência, expressão do conceito mesmo de esquecimento ativo. As figuras subversivas, contra-hegemônicas do Manifesto (Jaboty, Jaci, Guaracy, a Cobra Grande) se contrapõem ao ensinamento da culpa cristã pelo Padre Vieira e por Anchieta ao trazerem a memória do Brasil antes do Brasil. Para além da catequese e da cultura cartorial, são figuras que ativam “a transformação do totem em tabu, que desafoga os recalques históricos e liberta a consciência coletiva, novamente disponível, depois disso, para seguir os roteiros do instinto caraíba gravados nesses arquétipos do pensamento selvagem—o pleno ócio, a festa, a livre comunhão amorosa”.[10] Na antropologia e na crítica literária, em estudos capitaneados por Eduardo Viveiros de Castro e posteriormente por Alexandre Nodari,[11] a antropofagia vem sendo pensada como operação posicional por excelência, tornada possível pela percepção oswaldiana do que era a topologia Tupinambá do inimigo: a devoração entendida como a assunção de um lugar, instância de uma concepção essencialmente relacional e transformacional de mundo. Na antropofagia teria lugar um esquecimento de outra ordem completamente, mais próximo do esquecimento ativo nietzscheano, mais canibal, ágil e móvel, menos desmoralizante como fio condutor do país até seu desolado presente. Contra as pactuações amnésicas passivas com que se faz a política brasileira, a reflexão filosófica mais original a emergir no país desde a Independência, a antropofagia, tem sido também uma pedagogia do esquecimento ativo. 

[1] No caso do período da Independência, ver dois livros essenciais sobre o processo pernambucano como margem popular e revoltosa de um processo normalmente narrado do ponto de vista das elites do Rio de Janeiro e de Lisboa: Carlos Guilherme Mota, Nordeste 1817: estruturas e argumentos. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1972, e Evaldo Cabral de Mello, A outra Independência: o Federalismo Pernambucano de 1817 a 1821. São Paulo: Ed. 34, 2004.

[2]Para o tema do esquecimento do sangue afro-atlântico vertido como elemento essencial da modernidade, ver o já clássico livro de Paul Gilroy, O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência[1993]. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Ed. 34, 2001. No caso da sociologia brasileira, um marco no vínculo entre discriminação racial e desigualdades foi Discriminação e desigualdades raciais no Brasil,de Carlos Hasenbalg. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

[3]“O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem.” A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

[4] Essa é, por exemplo, a interpretação legada por Sérgio Buarque de Holanda. Na consagrada interpretação de José Murilo de Carvalho, a pactuação federalista que se impôs a partir do Rio de Janeiro foi obra de uma Corte que se sobrepôs a interesses locais. Ver A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Campus, 1980. Para uma visão alternativa, ver Miriam Dolhnikovv. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005.

[5] A observação é do historiador Luiz Antonio Simas, que conta a história no texto “Uma história da Praça Tiradentes”, publicado no blog Histórias Brasileiras.

[6] Ver Maria Emilia A. T. de Lima, A construção discursiva do povo brasileiro: os discursos de 1? de maio de Getúlio Vargas. Campinas: Unicamp, 1990. Trabalhei com outro aspecto da obra de Maria Emilia em um artigo sobre hipérbole na política brasileira para o Estado da Arte.

[7] Não por acaso, um dos mais ricos contos sobre a ditadura militar brasileira, “Alguma coisa urgentemente”, de João Gilberto Noll, base do filme Nunca fomos tão felizes, de Murilo Salles, retrata precisamente essa interdição sobre a linguagem e a memória.

[8]Eu mesmo argumentei pela existência dessa coerência na trajetória de FHC. Ver Alegorias da derrota: A ficção pos-ditatorial e o trabalho do luto na América Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

[9] André Singer, Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador.São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[10] Benedito Nunes, Introdução. Do Pau-Brasil à antropofagia às utopias. Por Oswald de Andrade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. XXVIII.

[11]De Viveiros de Castro, além do citado A inconstância da alma selvagem, ver “O recado da mata”,  prólogo à obra capital de Davi Kopenawa, A queda do céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. De Alexandre Nodari, ver sua dissertação de mestrado, “A posse contra a propriedade: pedra de toque do direito antropofágico”. UFSC, 2007 e o notável artigo a quatro mãos com Maria Carolina de Almeida Amaral, “A questão (indígena) no Manifesto Antropófago”. Direito & Práxis9.4 (2018): 2461-2502. Ver também o programa do curso lecionado pelos dois no Museu Nacional em 2012: https://culturaebarbarie.org/atoa/eduardo-viveiros-de-castro/2012/03/

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