Ante categorias políticas tradicionais como “conservadorismo”, “liberalismo” ou “socialismo”, o pensamento de Hannah Arendt é elusivo, mesmo desorientador. Mas o que sugere uma mente paradoxal, talvez seja mera coerência, já que para Arendt o pensamento deve nascer dos “incidentes da experiência viva”, e a sua foi atravessada pelos incidentes mais dramáticos de seu tempo: por quase 20 anos, desde que a ascensão nazista deu início à sua diáspora pessoal, foi apátrida, refugiando-se em Genebra e Paris, até receber a cidadania norte-americana. Da Primeira Guerra à Guerra Fria, ela viveu e pensou no coração das piores catástrofes do século XX, como testemunham os títulos de suas obras: As Origens dos Totalitarismo, Da Revolução, Da Violência.
Mas após expor o mal em sua face mais monstruosa, Arendt também se inquietou com o seu caráter paradoxal em nosso tempo. Um de seus principais objetivos durante o pós-Guerra foi, nas suas palavras, “destruir a lenda da grandiosidade do mal, da força demoníaca; retirar das pessoas a grande admiração que têm por grandes malfeitores”. De fato, dizia ela, “o súdito ideal do governo totalitário não é o nazi convicto ou o comunista convicto, mas pessoas para quem a distinção entre fato e ficção (isto é, a realidade da experiência) e a distinção entre o verdadeiro e o falso (isto é, os padrões de pensamento) já não existem mais.” Personificado no medíocre mas consciencioso funcionário nazista Adolf Eichmann, esse diagnóstico deu origem à sua fórmula mais célebre e controversa: a “banalidade do mal.” Longe porém de estar restrita aos despotismos genocidas, algo dessa banalidade está impregnada no modo como concebemos a atividade humana na era da sociedade de massas.
Para Arendt a vida ativa deve ser uma cooperação entre o nosso trabalho, pelo qual garantimos nossa subsistência material, as nossas obras, pelas quais criamos os objetos do mundo da cultura, e a nossa ação, pela qual, através do relacionamento e do diálogo interpessoal, construímos uma sociedade plural e solidária.
Mas Arendt lamentava que a pressão da economia de mercado tenha invertido a hierarquia, impondo o predomínio da dimensão mais baixa: a do trabalho. Ante suas reflexões, somos tentados a parafrasear os versos de T.S. Eliot: Onde está a ação que perdemos em nossa obra? Onde está a obra que perdemos em nosso trabalho?
Convidados
Celso Lafer: professor de Filosofia e Teoria Geral do Direito na Universidade de São Paulo e autor de A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.
Cláudia Perrone-Moisés: professora de Direito Internacional da Universidade de São Paulo e coordenadora do Centro de Estudos Hannah Arendt.
Eduardo Jardim: professor de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e autor de Hannah Arendt – pensadora da crise e de um novo início.