Audiências, lei de abuso da autoridade, memes, vídeos explicativos e fanatismo político
por Felipe Pimentel
A Psicanálise também vai às ruas. Jamais carrega cartazes, grita frases de ordem ou prepara coquetéis molotov – o que não a impede de ser radical. Ela demora a vir falar, pois prefere escutar; e é através da sua escuta que ela pode interpretar, de acordo com sua visão parcial e suas ferramentas oriundas da clínica individual, o que crê se passar no sintoma social (é sempre importante distinguir o momento em que o psicanalista fala socialmente em nome da psicanálise do momento em que fala por si mesmo).
O debate político, sabemos, está recheado de contradições e enganos: no mesmo dia, em uma única operação policial, podemos afirmar que a operação Lava Jato é uma orquestração para derrubar o PT e nos emocionarmos porque um deputado do PMDB foi preso. Na mesma frase, somos capazes de exigir a prova que prenderia dois, mas só absolvemos intimamente um. Insistimos no devido processo legal, mas queremos que os juízes os atropelem, ou então os acusamos de leniência quando não o fazem.
Reparem que cito as queixas das pessoas comuns, que, em sua neurose, reclamam das autoridades, convocam a lei e seus representantes e carregam dentro de si incoerências, exigências mutuamente excludentes, fantasias travestidas de ideologia política. É parte do jogo, os neuróticos são assim mesmo: vivem a reclamar do peso da civilização que lhes cai sobre os ombros, da quantidade de abdicações e renúncias que são obrigados a fazer, da desilusão da consagração plena. Por outro lado, também reconhecem as vantagens de participar da cultura, não só porque ela promete protegê-los, mas porque ela tem valores – morais, estéticos e culturais – que merecem ser vividos e incorporados. Por isso, na sua própria balança pessoal, terminam resignando-se a uma parcial, efêmera ou privada realização, acumulando, no pouco que lhes restou de prazer, uma cota de futura satisfação.
É diferente com os perversos. O perverso compreende tudo isso, ele sabe que a civilização exige renúncias, que a lei existe, que as instituições a representam e a fazem valer; que existe uma hierarquia de valores, concepções de certo e errado, injustiças, vítimas, algozes; em última instância, prazeres e sofrimentos. A única e crucial diferença é que ele renega tudo isso. É uma manobra curiosa reconhecer e renegar – que, com seu movimento duplo, termina torcendo a própria civilização: “reconheço tudo isso que vocês dizem, essas instituições que valorizam, mas eu não vou as acatar”. Ao contrário do neurótico, que vive a se queixar das suas restrições, o perverso se recusa a se submeter aos ditames civilizatórios e supõe que poderá controlar todas suas regras e principalmente os representantes de suas leis. Nenhuma ameaça advinda do âmbito da lei verdadeiramente o ameaça, pois ele é um mestre da lei, um domador dela e de seus porta-vozes.
Em verdade, poucas coisas podem incomodar o perverso e desmontar sua trama, e entre elas estão especialmente o achincalhe e a privação. A primeira diz ao perverso que seu poder de ludibriar não tem êxito, porque o conhecemos – e o desmascará-lo faz dele alguém patético. Porém, o que poderia realmente assustá-lo, levando-o mesmo à exasperação, fazendo-o se debater e espernear seria uma ação ou instituição não juridicamente legal e castradora, mas uma entidade feroz e privadora, que agisse supostamente fora das regras e do âmbito da lei. A lei não assusta o perverso, pois ele domina seus meandros, de modo que toda autoridade torna-se manipulável, desafiável, mesmo frente a frente, quando ele pode tripudiar dela, desde que ela não abuse – o que quebraria a regra de toda máquina em funcionamento.
Resta pensarmos nas vítimas do perverso. Por certo, o perverso não é o algoz, muito menos a vítima, pois como diz uma piada entre os analistas, o perverso é o chicote – quer dizer, ele não faria mal para ninguém, é o sistema, seja lá qual for, o sistema social ou uma relação conjugal, que está avariado, e ele é obrigado a agir assim. Para isso, ele não precisa só do sistema (que ele aponta como o verdadeiro algoz), mas também da vítima que trata-se, no caso, de todo aquele que clama por alguém que vai nos garantir o prazer por inteiro, o gozo perfeito, a civilização sem fraturas – em nome de quem ele usa a máquina para se locupletar, se regozijar, como se ele próprio fosse a vítima, o mal necessário, o instrumento que tudo consertará. O perverso conhece todos os nossos defeitos, assim como nossas virtudes: quando ele vem se defender, ele sabe como falar, como nos convencer e comover e até como se vestir – quando se maquiar ou quando trocar o terno pela singela camisa branca.
O jogo político seguirá perenemente favorecendo o discurso perverso e suas práticas, além de pessoas simpáticas e afeitas a ele, enquanto nossas demandas mantiverem-se dentro das quatro linhas do jogo de algozes, vítimas e supostos salvadores (essa contra-face do algoz). Ninguém, nem nenhum partido, irá nos garantir nada. O que sobrevive aos desastres que os homens provocam são suas instituições – são elas que, cultivadas nos nossos melhores valores se cristalizam e garantem a manutenção da nossa cultura e dos nossos costumes. São elas que atravessam os homens e mulheres de cada geração, independente de cada um deles, assegurando para as gerações futuras que há algo perene na história, que há uma narrativa que transcende cada um de nós, que há regras que devem ser respeitadas, sem licenças ou prerrogativas individuais. São elas que irão nos salvar dos perversos que insistem em querer nos salvar – perpetuando um sistema no qual, além de nos insatisfazermos em nossa já habitual neurose, vemos também nossos valores, em todos sentidos, ruírem, e nossa história, passado e futuro, se esfumaçar.