por José Eduardo Faria
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Em livro hoje considerado clássico sobre democracia e totalitarismo, lançado há quase seis décadas, o filósofo e sociólogo francês Raymond Aron afirmou que na língua francesa (como, também, na portuguesa) a política é uma palavra simples demais para dar conta da complexidade da vida e do processo político[1]. Essa palavra é utilizada em múltiplos sentidos — política interna vs. política externa, política de um governo conservador vs. política de um governo social-democrata e política para o aumento da produção de beterraba, dizia.
Por isso, com o objetivo de ser mais preciso em suas análises, Aron fazia três distinções. A primeira é entre política-domínio, “o conjunto em que lutam indivíduos ou grupos e em que cada um tem seus objetivos, seus interesses e sua filosofia”, e política-programa de ação, um “programa, o método de ação ou a própria ação de um indivíduo ou de cada grupo relativo a um problema ou à totalidade dos problemas de uma coletividade”. A segunda distinção é entre política-realidade, que implica a vida política como uma sucessão de fatos históricos, e política-conhecimento, que pressupõe a consciência que deles tomamos. A consciência da realidade faz parte da própria realidade. A terceira distinção é entre política-parcial, “um setor particular do conjunto social”, e política-global, “o próprio conjunto social observado de determinado ponto de vista”.
Já em inglês há pelo menos três palavras para designar essas distinções, lembra Aron. A primeira é polity, que denota um pacto constitucional, ou seja, os parâmetros da convivência política mediante o estabelecimento dos marcos normativos que exercem uma função estruturante do jogo protagonizado por líderes e partidos. Essa palavra é a tradução do termo grego politéia, ou seja, do “regime da cidade” — mais precisamente, do modo de organização de mando de uma coletividade. A segunda palavra é politics. Ela expressa a ação política, o que implica disputas, negociações, acordos e formação de coalisões. A politics diz assim respeito ao jogo político conforme as regras definidas pela polity. A terceira palavra é policy. Ela se aplica ao resultado do jogo, quando o vencedor de uma eleição formula, implementa e executa políticas públicas.
Apesar de apresentadas de modo esquemático, essas distinções ajudam a entender a crise institucional brasileira, deflagrada pelas reiteradas afrontas do chefe do Executivo a duas instituições judiciais – o Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, encarregado da guarda da Constituição, e o Tribunal Superior Eleitoral, a instância máxima da Justiça eleitoral. A primeira corte é acusada pelo presidente da República de “cometer crimes e disseminar notícias falsas”, além de exorbitar e “de ser favorável ao aborto e contrária à família”. A segunda corte é apontada como participante de fraudes e manipulações dos resultados das urnas.
A gravidade não está nas acusações, mas, isto sim, na ausência provas pelo acusador — um desacreditado político profissional que sempre se pautou mais pelo que nega ou desqualifica do que pelo propõe. A gravidade também está nas críticas dos ignaros apoiadores do chefe do Executivo acerca da falta de legitimidade da Justiça para decidir questões políticas e/ou envolvendo políticos, já que seus magistrados não são eleitos para seus cargos. Por isso, não poderiam tomar decisões independentes por não estarem submetidos a um controle popular — afirmam eles.
Esses apoiadores obstinados também consideram antidemocrático que os membros de uma corte encarregada de promover a guarda da Constituição e o controle da constitucionalidade das leis tomem decisões morais fundamentais em nome de todos os cidadãos. E ainda defendem o impeachment dos ministros do Supremo, sob a justificativa de que eles não estariam deixando o presidente da República governar, por um lado, e de que estariam cometendo crime de responsabilidade por não interpretarem a legislação infraconstitucional de modo literal e, ao mesmo tempo, fazerem uma leitura “política” da Constituição, por outro lado.
Contudo, esses sectários e beatos se esquecem de que, como o constitucionalismo contemporâneo valorizou os princípios como normas que devem orientar todo o sistema jurídico, e eles primam por serem polissêmicos e conterem uma carga retórica, sua utilização pelo legislador acaba exigindo maior criatividade dos intérpretes. Também não compreendem que a despolitização da legislação infraconstitucional implica, paradoxalmente, ponderação na interpretação da Constituição. E como ela é uma norma que não pode ser deduzida de outras normas, do ponto de vista hermenêutico a Constituição não pode ser caracterizada segundo critérios estritamente lógico-formais da produção de regras jurídicas.
Na visão dos juristas contemporâneos, princípios podem ser atendidos em graus distintos — e, no caso específico dos princípios constitucionais, eles tendem a ser abertos para valores de ordem moral e de um pluralismo cultural e político assegurado por uma democracia fundada normativamente no Estado de Direito. Por consequência, decisões tomadas por juízes, de um modo geral, e por magistrados de cortes supremas, de modo mais específico, “devem ser políticas em algum sentido”, dizia o importante filósofo americano do direito Ronald Dworkin (1931-2013)[2].
Esse é o ponto central da questão. Como seu governo foi medíocre, irresponsável e inconsequente em matéria de policies, o atual presidente da República se tornou um alvo fácil dos candidatos e partidos de oposição na politics — ou seja, na dinâmica do jogo político-eleitoral. Com sua visão de mundo tosca e maniqueísta, ele não só conspirou contra vacinas e promoveu um desmanche do ensino público e do sistema de pesquisa científica, como também ampliou o desmatamento em terras indígenas, desmantelou os mecanismos de fiscalização do poder público e aumentou significativamente o registro de armas de fogo. Como no País os antagonismos democráticos da politics ocorrem em espaços de diversidade, antagonismos e conflitos e a sociedade é complexa, heterogênea e marcada por desigualdades profundas, ele ficou sem nada de concreto para mostrar. Aliás, por sempre agir como bufão, essa foi a marca de sua carreira como político do baixo clero.
Em 2018, ele gerou expectativas, formulou promessas e acenou com uma “nova política” — justamente ele que vinha do que há de mais imundo e abjeto na “velha política”. Quatro anos depois, ele agora dramatiza. Estimula a intolerância. Dissemina o medo. Apropria-se dos símbolos nacionais e tenta fundi-los com uma cópia caricata de atos e palavras de ordem do fascismo. Recorre à divulgação de fake news. Promove campanhas de descrédito da imprensa e do modelo de votação. Estimula o discurso de ódio. Despreza o diálogo. Desqualifica adversários. Demoniza críticos. Com isso, vem criando o caldo de cultura de que necessita para, na politics, tentar substituir o confronto democrático entre situação e oposição pela concepção de política do jurista Carl Schmitt (1888-1985), o constitucionalista do nazismo: o embate implícito no binômino amigo vs. inimigo.
Desde que o País foi tomando consciência da gestão inepta, desastrosa e inconsequente do atual governo, foi ficando claro que seu chefe – por estar acuado e sem alternativas na disputa da reeleição – não teria outra saída a não ser deslocar sua atuação para o campo da polity. Aí, então, estaria em condições de aprofundar o processo de deterioração constitucional que deflagrou desde o primeiro dia de gestão, por meio de sucessivas ameaças de golpes e de afrontas às instituições. Mas qual é a força de que ele dispõe para passar de simples ameaças a ações efetivas? Por mais que o governo – que é transitório e tem prazo para acabar – venha tentando há muito tempo aliciar as Forças Armadas, que é uma instituição nacional permanente, em que medida os oficiais de patente superior da ativa nas três armas se deixarão comandar pelos interesses institucionalmente repulsivos dos cavilosos generais do Palácio do Planalto, com sua visão de mundo simplória e maniqueísta? Em que medida estes últimos representam, efetivamente, o pensamento médio das corporações militares?
Não é só. O atual presidente, mesmo após ter renunciado à “nova política” e terceirizado a gestão da máquina administrativa, entregando-a para o Centrão, continua primando pela fraqueza. E ela é tanta que o chefe do Executivo perdeu o controle da pauta legislativa na Câmara e no Senado. Dos 194 vetos que fez a projetos aprovados pelo Congresso, em três anos de mandato, 43% foram derrubados — 26% inteiramente e 17% parcialmente. Embora tenha sido o dirigente que mais editou Medidas Provisórias, a taxa de aprovação foi de apenas 49%. Em seus primeiros mandatos, a taxa de aprovação de MPs do governo FHC foi de 81% e a do governo Lula chegou a 90%.
Conjugados com falas desastrosas do próprio inquilino do Palácio do Planalto e dos caricatos generais palacianos com sua visão regressiva de ordem pública, estes números revelam um governo fraco, por força da mediocridade de seu chefe e de seu ministério. Trata-se de um governo que, quanto mais inepto e perdido se tornou, mais foi pendendo para aventuras antidemocráticas — a ponto de, sistematicamente, ameaçar contestar por meio da violência o resultado das eleições presidenciais limpas, em caso de derrota. É uma forma ladina, mas sobejamente conhecida, de tentar desacreditar ou deslegitimar as instituições políticas e jurídicas.
Desse modo, levado pelo desespero a deslocar mais uma vez suas ações do âmbito da politics para o da polity, na ilusão de que esse movimento lhe permitirá recuperar a confiança em si mesmo, o chefe do governo chega ao seu último ano de mandato pleiteando uma reeleição a qualquer preço e em meio a uma situação paradoxal. Sente-se forte para intimidar, para ameaçar e para afrontar o Estado de Direito. Mas o faz na justa medida de sua debilidade política e de suas fraquezas morais.
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Notas:
[1] Cf. Raymond Aron, Démocratie et totalitarisme, Paris, Gallimard, 1965, pp. 21-30.
[2] Ver R. Dworkin, Uma questão de princípio, São Paulo, Editora Martins Fontes, 2005, pg. 3.
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