por Felipe Pimentel
Existe um brinquedo de criança, também chamado de quebra-cabeça, mas para crianças bem pequenas, cujo objetivo é encaixar formas geométricas (círculos, quadrados, estrelas, losangos) em buracos correspondentes. Todos nós já brincamos com isso quando éramos pequenos, sendo aplaudidos a cada vez que encaixávamos a estrela no espaço correspondente ao encaixe dela. O quebra-cabeça era óbvio: os espaços eram feitos tal modo que a estrela não entrava no círculo, nem o losango no quadrado, por exemplo. As crianças logo percebiam a impossibilidade e testavam até acertar.
Em certo sentido, esse brinquedo é como uma ideologia política. O ideólogo carrega nas mãos somente uma peça, preterindo todas as outras, e testa, testa, testa, até encontrar um encaixe possível (quando não insiste em encaixá-la num espaço impossível). Para a sociedade como um todo, um ideólogo, não importa a posição que ocupe – professor, juiz, jornalista, especialmente gestor ou servidor público -, é um desastre. Em primeiro lugar, porque para compreender a realidade com uma única chave é preciso simplificá-la, afastando todos os matizes da sociedade ou todos os elementos que fazem dela algo complexo, de modo que o ideólogo reduz a sociedade – muito mais heterogênea e variada do que ele poderia supôr – a algo simples e unidimensional. Mais do que simplificar a realidade, para subordiná-la a uma visão de mundo específica, é preciso efetivamente retirar aspectos da realidade (que não são compreendidos por tal visão ou a contradizem). O ideólogo, dispondo de antemão da peça que se encaixa na realidade, inverte brutalmente o vetor realidade-compreensão, pois ao invés de olhar o mundo para compreendê-lo, faz a realidade se encaixar na sua visão. Assim, cada vez que o ideólogo consegue associar um evento do mundo à sua ideologia, ele se aferra ainda mais a sua pecinha e com mais força tenta encaixá-la nos próximos espaços. É por isso que um ideólogo proíbe os outros de “brincarem junto”: só dá para tentar encaixar uma pecinha por vez. Por fim, o ideólogo acha que encaixar uma das peças é ganhar o jogo.
Escrevo isso porque recentemente o Brasil tem assistido a uma crescente ideologização dos debates políticos. Quer dizer, qualquer comentário sobre o que quer que seja (ou, mais ainda, qualquer silêncio ou hesitação) é interpretado não pelo conteúdo que expressamente veicula, mas pela ideologia que lhe serviria, supostamente, de sustentação. Assim, ser a favor de X é ser “petista” ou “comunista”, ser contra Y é “defender bandido” e a favor de Z é ser “defensor do Bolsonaro”; “bater panelas” é isso, “não bater panelas” é aquilo. Junto a tais rótulos, há a facilitação das escolhas: se é “a favor da iniciativa privada” concordo, se é contra a “máquina pública” discordo; e assim também surgem as cobranças: quem é “petista” tem que X (explicar isso ou aquilo), quem “defende bandido” tem que Y (efetuar tal e tal prática), quem simpatiza com Bolsonaro tem que Z (responder assim ou assado). Não suficiente, as cobranças já preparam as futuras explicações “eu quero todos na cadeia”, “eu não tenho político corrupto de estimação”, eu defendo isso, “mas não sou fascista”.
Aparentemente, tudo está mais politizado. Mas não: tudo está ideologizado, isto é, polarizado e rotulado com conceitos já um pouco gastos, como fascista ou socialista. Os problemas reais, que são complexos e de difícil solução, ficam cada vez mais desamparados diante de tamanha ausência de republicanismo. No atacado, a vida em sociedade pode ser mais capitalista ou mais socialista; mas, no varejo, a realidade segue imune a tais pré-conceitualizações, tão velhas quanto inúteis, clamando pelo republicanismo daqueles verdadeiros politizados – os que sabem que a política é o debate de cada questão em particular, com todas as suas singularidades e especificidades, visando à conciliação entre os extremos e os atores em disputa.