Por que vocês odeiam Israel?

O Estado da Arte publica com exclusividade no Estadão artigo de Brendan O'Neill, editor da revista Spiked e colunista da Spectator, sobre o ódio antissemita do progressismo contemporâneo. O artigo marca a estreia da parceria do Estado da Arte com a Spiked.

por Brendan O’Neill

A questão que paira sobre a esquerda e que ninguém sabe responder.

Por que vocês odeiam Israel mais do que qualquer outra nação? Por que Israel lhes irrita mais do que qualquer outra nação? Por que as atividades militares de Israel incomodam mais, perturbam mais sua consciência e fazem vocês saírem às ruas em manifestações ou tuitarem furiosos de uma maneira que nenhuma outra atividade militar, de nenhum outro Estado, faz? Essas são as perguntas que pairam sombriamente sobre os chamados progressistas de hoje. Elas corroem sua autoproclamada autoridade moral, sua alegada condição de praticantes da justiça e da igualdade. São as perguntas que ainda não receberam uma resposta satisfatória. Assim, elas intensificam – muito bem evitadas, ou tangenciadas de maneira pouco convincente – um ponto de interrogação sobre boa parte da esquerda atual: por que Israel?

Essa pergunta ressurgiu recentemente, após os confrontos violentos na fronteira com a Faixa de Gaza. De maneira mecânica e tão previsível que chega a ser deprimente, esses confrontos que resultaram na morte de diversos manifestantes palestinos magicamente despertaram um instinto anti-imperialista e antibélico entre os observadores ocidentais. Um instinto que estava evidentemente, insistentemente e misteriosamente adormecido quando a Turquia destruiu a cidade curda de Afrin, ou durante qualquer uma das recentes barbáries cometidas pela Arábia Saudita com apoio ocidental contra o desventurado povo do Iêmen. Um membro das Forças de Defesa de Israel mostra sua arma, e, de repente, os bem-intencionados do Ocidente desligam o Spotify, abrem o Twitter e descarregam sua fúria emocional, dizendo: “NÃO”. Sua letargia política some, eles tiram o pó de seus cartazes e lembram que a guerra e a violência são ruins. Eles até vão para as ruas, como fizeram em Londres e por toda a Europa recentemente. Isso é cruel, eles declamam, e aquela pergunta ressurge – silenciosa, desconfortável, geralmente ignorada: por que isso é cruel, mas o massacre turco de centenas de civis e combatentes curdos em Afrin não é?  Por que Israel?

As atividades israelenses não só provocam uma resposta desses manifestantes enquanto as atividades turcas, sauditas e sírias passam em branco – elas provocam uma resposta que é sempre visceral. A condenação de Israel é furiosa e intensa. A linguagem usada é sombria, muito diferente da linguagem usada sobre qualquer outra nação que pratique atividades militares. As atividades israelenses nunca são apenas erradas ou exageradas, nunca se trata de um país que “corre estupidamente para a guerra”, como manifestantes falaram sobre Tony Blair e o Iraque, ou eventualmente sobre Obama e a Líbia, ou, se pressionados para opinarem, provavelmente falariam sobre os turcos e os sauditas. Não, Israel é genocida. É um Estado terrorista, um Estado vilão, um Estado de apartheid. Ele é raivoso, racista, ideológico. Não usa apenas as forças militares – causa “sangria“; tem algum tipo de prazer em matar civis, inclusive crianças.Como disse um observador durante os confrontos na fronteira com Gaza, Israel mata pessoas cujo único crime foi “não terem nascido de mães judias”. Israel odeia. Esse Estado judaico é o pior de todos, o mais sanguinário.

Após a morte de 18 palestinos na fronteira com Gaza, Glenn Greenwald denunciou Israel como um “Estado de apartheid, vilão, terrorista”, parecendo buscar a maior quantidade possível de formas de dizer “mau”. Um grupo de esquerda diz que o comportamento de Israel na fronteira com Gaza confirma que está executando um “lento genocídio” de palestinos. O “tamanho da sangria” é aterrorizante, diz um escritor mais radical. Israel adora derramar sangue. Na Al-Jazeera, um autor escreve que os confrontos são um alerta para o fato de que Israel transformou Gaza no “maior campo de concentração na superfície da Terra” – e aquela pergunta irrespondível, ou certamente não respondida, ressurge: por que Gaza é um campo de concentração, mas o Iêmen, que está barbaramente submetido a um bloqueio marítimo, terrestre e aéreo desde 2015, resultando numa escassez devastadora de comida e medicamentos, causando fome e a disseminação desenfreada de doenças como a cólera, não é? Em todos os aspectos, o bloqueio do Iêmen é pior do que qualquer uma das restrições impostas a Gaza. As pessoas em Gaza não estão morrendo de fome ou contraindo cólera aos milhares como no Iêmen. Ainda assim, Gaza é um campo de concentração, enquanto o Iêmen, quando se prestam a comentar sobre isso, é uma zona de guerra. Israel causa mobilizações; a Arábia Saudita, não. A Arábia Saudita faz guerra; Israel comete “genocídio”, constrói “campos de concentração”, pratica “terrorismo”. E eles deveriam ter mais cuidado, esses judeus. Esse é o subtexto, sempre: as vítimas de genocídio se tornaram genocidas.

De maneira geral, a atividade israelense é sempre tratada de modo diferente. Os confrontos em Gaza ganharam um destaque midiático muito maior do que os piores horrores cometidos em Afrin alguns dias e semanas antes. Políticos de tendência esquerdista, incluindo líderes do Partido Trabalhista do Reino Unido, condenam severamente pelo Twitter os tiroteios de Israel na fronteira com Gaza, mas se mantêm em silêncio, ou ao menos mais contidos, sobre a Turquia e os curdos. Instituições acadêmicas e culturais boicotam Israel, mas não boicotam a Turquia, ou a China, ou a Rússia, ou mesmo os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, que cometeram uma boa quantidade de erros – “sangrias”? – no Oriente Médio nos últimos anos. O fato de que apenas Israel sofre boicote dos autoproclamados guardiões da consciência moral do Ocidente, das nossas elites culturais e acadêmicas, passa a mensagem constante de que Israel é diferente. É pior. Está acima de qualquer outro Estado em termos de perversidade, ódio e guerra. O movimento BDS institucionaliza a ideia de que Israel é diferente das outras nações, uma pústula em meio aos outros países, a nação mais baixa, mais suja. É uma triste ironia que os militantes do BDS gritem “apartheid!” ou “racista!” para Israel ao mesmo tempo que o submetem a uma espécie de apartheid cultural e contribuem para a terrível visão desse Estado, dessa nação judaica, como o Estado que mais merece sua indignação e, até mesmo, seu ódio.

Houve tentativas de responder àquela pergunta iminente de “por que Israel?”, especialmente depois das últimas polêmicas sobre a expressão de ideias antissemitas nos círculos de esquerda, incluindo o Partido Trabalhista de Jeremy Corbyn. Mas as respostas não foram nada convincentes. Israel merece a fúria especial dos manifestantes ocidentais porque é um Estado apoiado pelos líderes ocidentais, nossos líderes, eles dizem. A Turquia também. E a Arábia Saudita. A repressão israelense aos palestinos vem acontecendo há muito tempo, e é uma grande injustiça que precisa ser combatida, eles dizem. E a guerra da Turquia contra os curdos não vem acontecendo há muito tempo? Israel pune os palestinos cultural e politicamente, e isso torna seu caso especial, eles alegam, enquanto usam termos como “apartheid” para descrever a vida em/entre Israel e os Territórios Palestinianos, distorcendo, assim, a realidade do que acontece lá. Mas, novamente, existe a Turquia para desfazer sua narrativa frágil e egoísta. A Turquia realmente quer acabar com a herança cultural, a língua e o desejo de independência dos curdos, e sobre isso eles não dizem nada, ou certamente muito pouco. Eles não protestam em volta de teatros quando atores turcos estão se apresentando. Eles não fazem coro coletivo para calar violinistas turcos em concertos. Eles não exigem que os acadêmicos turcos e seus livros sejam expulsos das universidades americanas e britânicas. Não. Apenas os israelenses. Somente eles. Somente essas pessoas.

Não há como fugir: o que realmente diferencia Israel é ódio que recebe. Israel se destaca não pelo que faz, mas pela maneira como descrevem o que faz: estranho, sangrento, vingativo, nocivo, genocida, uma “gangue de criminosos doutrinados por uma ideologia que desumaniza crianças”, como descreveu o escritor da Al-Jazeera semanas atrás. Vamos lá. Pode dizer. Eles são fascistas. As vítimas do fascismo agora praticam fascismo. Esse é o sentimento por trás de boa parte desse foco míope em Israel: os judeus agora estão fazendo aos outros o que outros já fizeram a eles. Embora, na verdade, não estejam. Embora eles não estejam fazendo nada que se pareça mesmo que remotamente com os esforços nazistas para eliminar judeus. E, mesmo assim, nas manifestações contra Israel, os cartazes comparam Gaza ao Gueto de Varsóvia; as pessoas imploram que os judeus relembrem seu próprio sofrimento e carregam bandeiras israelenses com desenhos de suásticas. Isso não é ser anti-imperialista; é ser antijudaico. Dizer que os judeus ou o Estado Judaico representam um novo nazismo é a pior ofensa de todas, e quem fala isso sabe que é a pior ofensa de todas.

O tratamento de Israel como particularmente colonialista, como um exemplo de racismo, como responsável pelos tipos de crime contra a humanidade que achávamos ter deixado nos momentos mais sombrios do século XX, realmente capta o que move a atual fúria intensamente dedicada essa nação sobre todas as outras: Israel tornou-se o saco de pancadas daqueles que se sentem envergonhados ou desconfortáveis com os excessos políticos e militares cometidos por suas próprias nações no passado e que agora expressam essa vergonha e esse desconforto vociferando contra o que consideram, hiperbolicamente, ser uma expressão remanescente daquele passado: Israel e a maneira como trata os palestinos. Eles atribuem todos os horrores do passado a Israel, e por isso o denunciam como ideológico, racista, imperialista e até genocida – para eles, e graças à sua campanha, Israel passou a simbolizar os crimes do passado. Assim, quando 18 palestinos são mortos, não é apenas uma tragédia, não é apenas um excesso, e certamente não é apenas algo que exige uma discussão séria e ponderada, inclusive sobre o papel do Hamas na organização desses protestos para alimentar a compaixão internacional pela vitimização palestina. Não. É um ato que nos lembra de toda a história de colonialismo, chauvinismo racial, campos de concentração e genocídio, porque é isso que Israel agora lembra as pessoas; elas projetam sua culpa pós-colonial e seu ceticismo em relação ao projeto ocidental nesse pequeno Estado do Oriente Médio.

A raiva contra Israel é, na verdade, mais terapêutica do que política. Não se trata de querer abordar seriamente a realidade da vida e do conflito no Oriente Médio, mas de querer suprir as necessidades mesquinhas de observadores e ativistas ocidentais de ter uma entidade para espumar seu ódio e dar vazão à sua própria desorientação histórica e política. Mas o impacto dessa raiva terapêutica, dessa espécie de terapia primal contra Israel, é desastroso. Ele contribui para a crescente ideia conspirativa de que certas pessoas, e você sabe quem, têm uma influência particularmente nociva sobre as questões internacionais, a vida política e a segurança cotidiana. “Não é antissemitismo criticar Israel”, dizem os observadores. E eles estão absolutamente certos. Toda nação deve estar sujeita a críticas e protestos. Mas se você critica apenas Israel, ou se critica Israel de maneira desproporcional em relação a qualquer outro Estado, e se sua crítica a Israel é carregada de referências ao Holocausto e expressões como “sangria”, e se você boicota Israel mas nenhuma outra nação, e se você promove as fantasias obscuras da extrema-direita, dos islâmicos e dos teóricos da conspiração ao ficarem se preocupando com um lobby israelense superpoderoso, e se a visão de um violinista israelense é demais para o seu estômago, sinto muito, mas essas são as principais características do antissemitismo.

Brendan O’Neill é jornalista, editor da Spiked e colunista da Spectator.

Tradução: Ana Beatriz Fiori

Link para o texto original na spiked

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