por Felipe Pimentel
Existem dois modos de tratar a política ativamente. O primeiro consiste em aderir a uma causa ou um conjunto de ideias políticas. Uma causa caracteriza-se como uma bandeira pontual; poderia ser o feminismo, a igualdade racial, a eleição direta, a derrubada de um governo. Um conjunto de ideias – que poderíamos chamar uma ideologia, latu sensu – já aparece de modo mais amplo e, talvez, consistente; como, por exemplo, a democracia representativa, o socialismo marxista, a social-democracia ou o neoliberalismo. Uma causa pode se expandir até se tornar uma leitura ampla e até total da realidade – é algo exigente, mas é possível (como, por exemplo, interpretar a sociedade como um todo sob o viés de determinada corrente do feminismo). Uma ideologia mais facilmente torna-se uma leitura completa da realidade. Aquele que aderiu ao neoliberalismo ou ao socialismo marxista enxerga nas mais diferentes situações as evidências da sua leitura do mundo. E aqui surge um ponto muito importante – e muito pouco tematizado – desse modo de tratar a política: a narrativa.
Esse modo de aderir à política é dependente e decorrente de uma narrativa histórica, psicológica, filosófica e social de si mesma. Explico. Não é possível aderir a uma causa ou a uma ideologia sem alicerçá-la em uma explicação de como aquilo operou, opera e operará no mundo. Uma causa ou uma ideologia está embasada numa explicação das razões históricas que trouxeram a situação até aqui e que orientam então nosso olhar para percebermos as mais variadas ocorrências dela na realidade. Deste ponto em diante, aquele que à ela adere entra numa relação de mútua alimentação entre a narrativa e a realidade circundante, isto é, eu vejo uma situação e a interpreto pela narrativa em questão. E toda vez que eu faço isso, eu fortifico essa narrativa; e essa narrativa, fortificada, aprofunda ainda mais minha percepção dela sendo efetivada na realidade.
Até aí, tudo bem, todos nós temos essas narrativas. Por exemplo, cada um de nós possui uma narrativa familiar: uma interpretação de como a família funciona de determinado modo, por que o pai é assim e mãe assado. E isso acaba sendo uma visão que confirmamos em distintas situações ao longo da vida, muitas vezes cristalizando rótulos nas pessoas e nos seus comportamentos. Ocorre que, no caso que analisamos, se trata de uma narrativa política, e isso não é sem conseqüências. Pois, o que é a política?
A política é o âmbito genérico (institucional ou não, oficial ou não) no qual nós pensamos, sentimos e agimos em relação a três âmbitos de vínculos: de indivíduo para indivíduo, de indivíduo para com o Estado e, em retorno, do Estado com os indivíduos. E esse campo é o responsável pela noção de justiça (razão pela qual depende tanto do campo do direito, assunto que por ora não interessa). Assim, uma narrativa política é uma interpretação de passado, presente e futuro que explica os três vínculos entre indivíduos e Estado no que respeita à justiça. Assim, necessariamente aderir a uma causa ou ideologia política significa compreender, a partir dessa causa ou ideologia política, a história da justiça (e obviamente das injustiças) e agir de modo a efetivá-la. Dado isso, voltemos à noção de narrativa política.
Eu adiro a determinada causa ou ideologia e compreendo toda a sua trajetória de justiças e injustiças que a fizeram chegar até aqui. E, quanto mais eu adiro à essa narrativa, mais imbuído estou de corrigir estas injustiças e efetivar essa noção específica de justiça. Na realidade, eu já argumentei, noutro texto também aqui no Estado da Arte, que aquele que adere a uma causa não só se incumbe, mas se vê efetivamente obrigado a fazer valer sua causa, num movimento de missão que decorre de sua narrativa da justiça. Pois essa narrativa é o que lhe dá força e, acima de tudo, legitimidade. E o problema é que em política legitimidade facilmente deriva em álibi; ou pior, licença para agir à revelia das sutilezas da vida em sociedade e, até mesmo, da lei.
Quer dizer, é muito comum – e isso vemos cotidianamente – que o politizado possua uma visão estreita, limitada e viciada da realidade ao seu redor; e que possivelmente derive nalgum nível de fanatismo, incorrigível e inveterado. Alheio aos mais evidentes desmentidos de sua narrativa, o indivíduo desmente e vocifera com qualquer um que remotamente almeje desconfiar ou (alas!) desconstruir sua visão.
Novamente: até aí, tudo bem. Para manter o exemplo com as narrativas familiares, estas também são rígidas e cristalizadas em nossa visão, infensas à sutilezas e desmentidos, contra-argumentos ou refutações. Porém, insisto: trata-se de política, e a política, como diz o clichê de Clausewitz, é a continuação da guerra por outros meios.
Esse clichê deve ser compreendido com profundidade, pois não se trata de uma frase de efeito, uma crítica tola e moralista à política – ela é uma teoria da política. Isto é, ela é uma definição do que fundamenta à política em si, a saber, o confronto, a contenda, a oposição.
E é somente desse modo que compreendemos por que razão, independente da orientação política do politizado, a sua narrativa, a sua visão e, também, sua ação, estão eivadas pelo confronto e pela oposição. Pois a narrativa política possui uma história dos responsáveis pela injustiça, dos traços que nos trouxeram até aqui, e todo aquele que parecer carregar algum desses traços ou ser um desses responsáveis é necessariamente – um inimigo. Assim, podemos compreender por que o politizado trabalha numa dupla tarefa: ao mesmo tempo que santifica sua visão, ele demoniza a oposta. E mais: ao santificar sua visão, ele também adquire um álibi para agir de qualquer modo com o representante da visão oposta (ou agente da injustiça que ele supõe), o que explica como milhares de infelizes vezes assistimos a maldade ser cometida em nome do bem e da justiça.
Podemos acusar-nos uns aos outros, mas, em última instância, defensores de uma determinada causa, aparentemente “do bem” rapidamente desejam (e explicitam assim mesmo nas redes sociais) “a morte” daqueles que julgam seus adversários, bem como os defensores dos costumes “do bem” dramatizam queimas de bruxas, simbólicas ou não. O que fez o marxismo, por exemplo, foi somente, elevar essa estrutura ao estado da arte, isto é, construir uma narrativa consistente, que não só apontava adversários no presente, mas lia toda a história como uma oposição (a célebre luta de classes); e que, por fim, terminava apontando uma ação específica (a tomada do poder e instalação da ditadura do proletariado), legitimada em seus meios (violentos) através da beneficência de suas propostas futuras (o igualitarismo socialista). Mais ainda, a teoria marxista supõe mesmo que a transformação histórica apenas ocorre com a violência. Porém, e isso é muito importante, qualquer causa ou ideologia política pode vir a funcionar assim, e, eu ratifico, inclusive tende a funcionar assim. A visão autoritária de direita também vislumbra as mesmas coisas: grupos de adversários, um conjunto de boas intenções, ordem mantida à força. Quer dizer, e isso é o mais exasperante, há critérios históricos capazes de evidenciar as mais estapafúrdias narrativas políticas. Se alguém que crê que a sua é a correta e que, por conseguinte, ela deve imperar, ficaria uma ressalva: até que ponto esta pessoa está disposta a tolerar a alheia?
Não suficiente, as narrativas possuem uma força incrível de convencimento. Parece impossível não ver algumas injustiças na história passada e na presente – que houve injustiças com determinadas nações, raças, religiões ou gêneros parece inegável. Mas, com o receio de adentrarmos a esse lamacento terreno que mencionei, deveríamos nos paralisar? Evidentemente que não. Ficaria a dúvida, então: como agir politicamente de modo a evitar sua conseqüência aparentemente natural, a saber, o confronto e a intolerância?
Na minha opinião, os caminhos são frágeis e imparciais – como o é a realidade da vida em comunidade -, mas são algumas indicações. Em primeiro lugar, as passivas. Toda vez que aderirmos a uma causa que nos faz olhar os outros cidadãos de modo agressivo, incompreensível ou desagregador, já devemos suspeitar de nós mesmos. Toda vez que nossa causa parece legitimar a usurpação da lei e a legitimação da violência, nossa convicção nela deve ser suspensa, pois a história mostra que o caminho da ação política violenta em nome do bem é um caminho torto, viciado, enganoso e degenerado. Algum ceticismo sempre é necessário.
Em segundo lugar, as ativas. Toda ação que promova a confraternização dos cidadãos em sua diferença, na real aceitação da imperfeita e eternamente assimétrica relação humana, deve ser estimulada. Igualmente a crença na capacidade da conscientização via educação e diálogo (e não da ação violenta), como forma de promover o progresso do espírito humano ao longo das gerações. Se as leis estiverem imperfeitas, que as aperfeiçoemos no devido processo legal, pois as leis estão a serviço da justiça. É difícil suportar a injustiça que vemos, que toca a cada um de nós de modos específicos, assim como (ou porque) é difícil conviver em comunidade, dado que a convivência humana em si é desarmônica e irredutível.
Esse é o segundo modo de tratar a política. É ele que vai permitir que consigamos construir, pelo menos, a paz possível.
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