Precisamos de conduções coercitivas para interrogatório?

Por mais que a repressão à corrupção da classe política e do poder econômico seja algo necessário e desejável, não se pode permitir que o afã de encontrar culpados e puni-los de forma exemplar acabe por legitimar condutas arbitrárias por parte das autoridades encarregadas da persecução penal.
Lula conversa ao sair do aeroporto de Congonhas, onde prestou depoimento a Policia Federal conduzido coercitivamente FOTO: MARCIO FERNANDES/ESTADAO

Por Eduardo Siqueira Néri

Existe significativo consenso quanto à necessidade de combater a criminalidade, em especial crimes praticados por membros da classe política. No entanto, não é de hoje que as opiniões se dividem quando o assunto é determinar os limites a que estão submetidos os agentes estatais encarregados dessa tarefa.

Esse dissenso está ilustrado em recente julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal no qual, por seis votos a cinco, decidiu-se pela inconstitucionalidade da utilização das chamadas conduções coercitivas para realização de interrogatório de pessoas investigadas e de pessoas que já foram formalmente acusadas em ações penais.

O julgamento, encerrado em sessão realizada em 14 de junho de 2018, teve por objeto análise conjunta de duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental – a primeira delas suscitada pelo Partido dos Trabalhadores (ADPF 395) e a segunda ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (ADPF 444).

O resultado apertado (6×5) reflete não só uma clara divisão de opiniões entre os Ministros do STF, mas também deixa transparecer que o “direito declarado” poderia ser outro em caso de simples mudança de entendimento por parte de um dos membros do colegiado julgador, ou até mesmo na hipótese de o Supremo passar por um momento de transição em sua composição[1].

A questão chegou ao Supremo em razão da utilização de conduções coercitivas ter se tornado praxe em operações que buscam desarticular esquemas complexos de corrupção, que geralmente envolvem empresários, membros da classe política e agentes públicos em geral.

Essas operações caracterizam-se pela adoção de medidas investigativas inicialmente sigilosas, mas que são subitamente trazidas a conhecimento público no momento de realizar ações investigativas tais como buscas e apreensões, prisões e conduções coercitivas para interrogatório, tudo de forma simultânea e com ampla exposição midiática.

O método adotado é similar a um blitzkrieg (operação de guerra relâmpago), na medida em que retira dos investigados tempo hábil para troca de informações, articulação de estratégias defensivas e supressão de evidências. Em especial, restrições de comunicação e um contexto de desinformação são utilizados nesses “ataques surpresa” para facilitar a “rendição” de seus alvos, tornando-os mais suscetíveis a aceitar acordos de colaboração premiada, por exemplo.

Concomitantemente a sua deflagração, as operações passam a ser objeto de ampla cobertura por parte da imprensa, o que ocasiona a exposição dos suspeitos e tende a submetê-los a julgamentos sumários por parte da opinião pública. Com isso, propicia-se não só uma espécie de castigo por via transversa, mas também uma maneira de tentar influenciar politicamente as decisões que virão a ser tomadas pelos órgãos do poder judiciário.

Não existem dúvidas de que essa estratégia tende a ser eficaz para obtenção de elementos de informação e “eliminação” de seus alvos. E muito embora a credibilidade do material probatório resultante dessas operações seja questionável (especialmente no que tange às delações premiadas), a questão submetida à apreciação do STF dizia respeito apenas às implicações negativas da condução coercitiva para a esfera de direitos do acusado (deste ponto em diante, utiliza-se o termo acusado para designar tanto o Réu em ação penal, quanto o investigado).

A condução coercitiva para interrogatório não é obra da criatividade das autoridades judiciárias ou policiais. A medida tem previsão legal expressa no artigo 260 do Código de Processo Penal (CPP), que dispõe que “se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”.

Com a decisão do STF, procedeu-se uma redução do texto legal para suprimir o trecho “para o interrogatório”, mantendo-se válida e vigente a previsão de condução coercitiva do acusado para fins de reconhecimento.

As razões para a condução coercitiva para interrogatório ter sido colocada no banco dos Réus e considerada inconstitucional decorrem tanto de sua utilização anômala (sem prévia intimação do investigado, para preservar o efeito surpresa das operações), quanto pela constatação de que se tornou uma medida anacrônica, incompatível com o atual contexto regulatório a que se submete a atividade estatal de investigar e punir criminosos.

O escopo das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental era demonstrar que a medida é atualmente (i) inconciliável com a atual compreensão que se tem da função e finalidade do interrogatório em Direito Processual Penal; (ii) incompatível com o conteúdo normativo de direitos fundamentais insculpidos na Constituição de 1988; bem como (iii) incongruente com o tratamento conferido à necessidade da presença do acusado para o desenvolvimento do procedimento que apura sua responsabilidade.

De fato, a redação original do artigo 260 do CPP é quase octogenária e remonta ao ano de 1941. Nesses quase oitenta anos, o contexto normativo em que inserida a condução coercitiva alterou-se radicalmente em razão da promulgação da Constituição de 1988, por conta de tratados internacionais dos quais o Brasil tornou-se signatário, bem como em virtude de reformas legislativas que alteraram significativamente o CPP.

Em 1941, o interrogatório do acusado era visto como uma oportunidade para a acusação tentar provocar sua confissão e durante o qual o defensor do acusado sequer poderia intervir. Por essa razão, o interrogatório era ato inaugural do procedimento de produção probatória e, muito embora o acusado não fosse obrigado a responder as perguntas que lhe eram dirigidas, existia previsão expressa de que seu silêncio poderia ser interpretado em prejuízo de sua defesa.

Atualmente, de modo diverso, o interrogatório do acusado está submetido a um enquadramento normativo que faz dele essencialmente uma oportunidade para o acusado exercer sua defesa. É em razão disso que o interrogatório é, desde 2008, o último ato de prova praticado em um processo criminal. Somente nesse momento o acusado tem clareza quanto a todos os aspectos da acusação que lhe é dirigida, podendo optar por trazer esclarecimentos úteis, confessar ou permanecer em silêncio, por exemplo.

Do aspecto procedimental, reforma realizada no ano de 1996 alterou o texto do artigo 367 do CPP, para viabilizar o prosseguimento da marcha processual mesmo quando o acusado deixa de comparecer, sem um motivo justificado, a qualquer ato para o qual tenha sido regularmente intimado.[2]

No âmbito constitucional, o direito do acusado recusar-se a depor em investigações ou ações penais recebeu status de direito fundamental, foi complementado por regras legais que proíbem que seu silêncio seja interpretado em prejuízo de sua defesa[3]e passou a ser interpretado pelo STF, conjugadamente com o princípio da presunção da inocência, como um direito de recusar-se a participar (ativa ou passivamente) de procedimentos probatórios[4], de não cooperar com a investigação criminal[5]; e de não ser tratado como se culpado fosse antes de decisão condenatória[6].

Esses elementos demonstram uma mudança de conjuntura a partir da qual foram forjados os argumentos utilizados pelos seis Ministros que votaram pela inconstitucionalidade da condução coercitiva para interrogatório.

De forma sintética e simplificada, pode-se dizer que o fundamento central da tese vitoriosa tem suas bases no argumento de que inexiste qualquer razão para expor a pessoa do acusado (interferindo na presunção da inocência) e compeli-lo a comparecer no interrogatório (interferindo em sua liberdade de ir e vir) se o ato tem função exclusiva de meio de defesa e, ao mesmo tempo, sua ausência não representa empecilho para o transcurso do procedimento até seu ato decisório final.

Pode-se ilustrar a tese com uma tentativa de ponderar os interesses postos em jogo pela condução coercitiva no novo contexto normativo. De um lado da balança são colocadas as interferências causadas na esfera de direitos fundamentais do acusado e, no lado oposto, coisa nenhuma… Não haveria interesse legítimo da acusação a ser considerado.

O raciocínio, portanto, depende da consistência da premissa de que somente o acusado é legitimamente interessado na realização do interrogatório, o que parece correto.

A espetacularização do tratamento conferido ao acusado durante a condução coercitiva não representa um interesse digno de proteção, revelando apenas uma interferência indevida em sua liberdade e em seu direito de não ser tratado como culpado antes da prolação de sentença condenatória.

Da mesma forma, não existe um direito de a acusação buscar meios para mobilizar a opinião pública e fazer dela um elemento de pressão política para o Poder Judiciário. Em verdade, essa forma de agir representa uma verdadeira tentativa de distorção das condições básicas para realização de um julgamento justo. Não é desejável que o clamor popular seja manipulado por nenhuma das partes (acusador ou acusado) na tentativa de corromper a imparcialidade do órgão julgador ou enviesar-lhe o discernimento.

E ainda que exista a possibilidade de o interrogatório resultar em confissão ou em declarações que comprometam a defesa do acusado, favorecendo a acusação, essa expectativa não é protegida pelo ordenamento jurídico, tendo em vista que ao acusado está assegurado o direito fundamental de permanecer em silêncio e de não cooperar com a produção de provas contrárias a seus interesses.

Nenhum benefício legitimamente protegido pelo ordenamento jurídico pode ser esperado de uma condução coercitiva para interrogatório, sendo essa a razão pela qual não deve ser permitido ao Estado agir dessa forma, mesmo que motivado pela busca de um combate mais eficaz à criminalidade.

Por mais que a repressão à corrupção da classe política e do poder econômico seja algo necessário e desejável, não se pode permitir que o afã de encontrar culpados e puni-los de forma exemplar acabe por legitimar condutas arbitrárias por parte das autoridades encarregadas da persecução penal, as quais podem atingir tanto culpados quanto inocentes e até mesmo culminar em punições injustas.

A decisão do STF não deve ser vista como uma medida de incentivo à impunidade, ou como uma forma de aniquilar os esforços adotados na luta contra a criminalidade de colarinho branco. O julgamento das ADPF 395 e 444, na verdade, é um verdadeiro trunfo para o Estado de Direito.

Eduardo Néri é advogado e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

[1]Um bom exemplo de que a composição do órgão colegiado é um aspecto determinante para o resultado está nos julgamentos do HC69.912/RS e do HC72.588/PB, ambos ocorridos no ano de 1996. No primeiro caso, o pleno do STF decidiu por 6×5 que a utilização da chamada prova ilícita por derivação não estava proscrita pelo artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal. No segundo caso, julgado poucos meses depois, o pleno do STF decidiu por 6×5 que a prova ilícita por derivação era inadmissível, em razão do conteúdo normativo do artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal. O fator determinante para a alteração de paradigma, nesse caso, foi a aposentadoria do Ministro Paulo Brossard, que se seguiu da investidura do Ministro Maurício Correa, que tinha entendimento divergente.

[2] Art. 367. O processo seguirá sem a presença do acusado que, citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato, deixar de comparecer sem motivo justificado, ou, no caso de mudança de residência, não comunicar o novo endereço ao juízo. (Redação dada pela Lei nº 9.271, de 17.4.1996)

[3] Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003)

[4]HC 69026, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Primeira Turma, julgado em 10/12/1991, DJ 04-09-1992 PP-14091 EMENT VOL-01674-04 PP-00734 RTJ VOL-00142-03 PP-00855.

[5]HC 83943, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 27/04/2004, DJ 17-09-2004 PP-00078 EMENT VOL-02164-02 PP-00245 LEXSTF v. 27, n. 313, 2005, p. 443-451.

[6]HC 85538, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 13/09/2005, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-105 DIVULG 04-06-2013 PUBLIC 05-06-2013. O julgado refere-se à impossibilidade de o tratamento ser conferido antes do trânsito em julgado, mas recentemente essa exigência foi relativizada para que se permita o cumprimento provisório da pena após o esgotamento do chamado segundo grau de jurisdição.

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