por Horacio Neiva
Um dos lugares comuns da filosofia política dos últimos 250 anos é o suposto conflito existente entre constitucionalismo e democracia. A democracia pressupõe que, de uma forma ou de outra, a vontade da maioria deve guiar as decisões políticas. Por outro lado, as Constituições procuram proteger alguns temas e direitos justamente contra o ímpeto majoritário. Se um direito é constitucionalmente garantido, pensam os constitucionalistas, então a maioria – ainda que esmagadora – não pode violá-lo.
O problema é que as Constituições não podem chegar ao ponto de retirar das maiorias um espaço razoável de manobra e decisão política, sob pena de perderem legitimidade. Uma Constituição engessada, que impeça que maiorias consistentes possam fazer valer suas deliberações, tem grandes chances de ser um fracasso: afinal, que documento é esse que impede que nós, hoje, façamos aquilo que entendemos ser justo e razoável?
Por outro lado, não estamos dispostos a abrir mão da ideia de uma Constituição. Queremos espaços livres de deliberação democrática. Mas também queremos uma salvaguarda contra o que uma maioria livre pode fazer. As minorias de agora e mesmo as maiorias de uma geração futura poderiam ser prejudicadas – ou até destruídas – se não houvesse freios às vontades, quaisquer que sejam elas, de uma maioria eventual.
O primeiro Jon Elster, por exemplo, afirmava que o papel das Constituições é colocar amarras nas maiorias, destinadas a protegê-las de seus próprios excessos. John Hart Ely identificava como função precípua de um texto constitucional a proteção dos direitos de minorias, que bem poderiam, sem a proteção de uma Constituição, ser alijadas do jogo democrático.
O problema, como sempre, é encontrar um certo ponto de equilíbrio. Criar instituições que permitam a atuação democrática – como um Congresso – cria o risco de opressão majoritária; por outro lado, uma Constituição com um “núcleo intangível”, em especial quando envolve, como é comum, um órgão sem pedigree democrático para interpretá-la, acaba prejudicando tanto a democracia quanto a igualdade política: afinal, por que onze juízes não eleitos têm o poder de invalidar uma lei que a esmagadora maioria dos cidadãos comuns do país aprova?
O momento de criação de uma Constituição, portanto, possui, por sua própria natureza, uma certa dimensão histórica. É o momento de definição do adequado equilíbrio entre constitucionalismo e democracia, e de desenho de instituições que permitam que aquele equilíbrio possa ser levado adiante sem grandes rupturas.
Mas o que fazer nos momentos de crise? É esse, hoje, o dilema que alguns juristas, colunistas e políticos têm colocado ao Brasil. Diante da crise política e moral que assola o país, não seria o momento de revermos o pacto constituinte?
Qualquer resposta a essa questão deve, antes, enfrentar alguns pontos. A Constituição de 1988 estabeleceu o que o Constituinte entendia ser um adequado ponto de equilíbrio entre constitucionalismo e democracia no momento de sua promulgação. O contexto também importa. O país saía de uma Ditadura de duas décadas, o que tornava a discussão sobre proteção de direitos e garantias individuais um tema premente. Mas nossa Constituição também incluiu temas mais comezinhos, como questões orçamentárias, o número de vereadores nas Câmaras Municipais e de Juízes em Tribunais.
Onde, exatamente, a Constituição falhou? Para alguns dos que encabeçam o movimento por uma nova Constituinte, ela falhou ao distribuir uma quantidade inimaginável (segundo eles) de direitos sociais, impossíveis de serem efetivados com as limitações orçamentárias do país. Para outros, a falha do Constituinte foi ter estabelecido um “sistema político” inadequado, do ponto de vista democrático, e facilmente capturado por agentes privados. Por fim, há ainda aqueles que creem que o leque de garantias individuais foi por demais exagerado, favorecendo a impunidade e criando incentivos, mesmo que inconscientes, à prática criminosa.
Não é preciso, agora, discutir o mérito de cada um desses argumentos. O importante é perceber que, por trás de cada regra ou norma constitucional individual, há um compromisso mais básico e fundante do Estado. Adotamos mecanismos de participação popular, um sistema eleitoral com votação proporcional, para alguns cargos, e majoritária, para outros, bem como um conjunto de leis imutáveis que devem ser protegidas por um órgão jurisdicional formado por Juízes não eleitos (o STF). Também protegemos um extenso rol de direitos e garantias individuais destinados a proteger os cidadãos contra o Estado e contra o que chamei de ímpeto majoritário.
Por que escrevo isso? Porque precisamos distinguir o que são erros pontuais do que é uma falha fundamental básica. A crise que justificaria uma nova Constituinte seria aquela que atingisse o seu compromisso mais básico – justamente o equilíbrio entre constituição e democracia que citei no início do texto. Mas crises pontuais não significam falha fundamental, justamente porque elas podem ser resolvidas pela própria deliberação democrática.
Faz parte do equilíbrio constitucional a previsão de mecanismos para sua própria modificação. Esses mecanismos, em geral, envolvem maiorias mais qualificadas (para prestigiar o valor do constitucionalismo), mas não impossíveis (para prestigiar o valor da democracia). A reforma constitucional não é um momento de crise constitucional: pelo contrário, é a própria Constituição que, no seu acordo com a democracia, prevê formas pelas quais as maiorias poderão modificá-la.
Nem todo o texto constitucional, no entanto, está aberto a esse tipo de modificação. Nosso Constituinte não quis que a cada nova maioria o texto constitucional pudesse ser inteiramente reformado. Foi por isso que estabeleceu o que os juristas chamam de “cláusulas pétreas”: normas constitucionais que não podem ser alteradas, mesmo por maiorias super-qualificadas.
Está aqui, no meu entender, uma das raízes, e também a solução, para a suposta crise brasileira atual. Por muito tempo, doutrinadores e juízes dos mais diversos matizes procuraram ampliar, exageradamente, o número de normas constitucionais protegidas pelo manto das “cláusulas pétreas”. Ao mesmo tempo, defenderam interpretações bastante extensivas dessas normas, o que, na prática, impedia que as maiorias pudessem impor sua vontade, mesmo em temas que a Constituição regulou de maneira menos direta ou clara. O pressuposto – derivado do valor democrático – que as leis aprovadas pelo Congresso são “constitucionais”, isto é, que na dúvida, a maioria está correta, foi gradativamente deixado de lado, em nome de uma atuação mais incisiva do Supremo Tribunal Federal na interpretação da Constituição. Outras ideias, como a da vedação ao retrocesso social, aplicadas sem grandes reflexões teóricas, também contribuíram para uma perda gradual dos poderes da maioria.
Mas isso não precisa ser assim. É preciso resgatar a ideia de que a Constituição existe como parte de um acordo, e que não pode ou deve exercer um domínio imperial sobre a vida política do país. Isso não envolve abrir mão da Constituição. Envolve, ao invés disso, encontrar novamente, no próprio texto constitucional, espaços de atuação para as maiorias. Ao invés de abandonarmos tudo que temos, o melhor talvez seja permitir que a maioria possa ter voz e modificar parte daquilo que entende ser inadequado.
E vale lembrar: tão importante quanto a Constituição, é como e quem a interpreta. De nada adianta um novo texto constitucional se os mesmos juízes, munidos, muitas vezes, do mesmo tipo de discricionariedade e decisionismo, continuarão a interpretá-la – tal como fazem atualmente. A realidade não muda com uma simples mudança legislativa. Parte dos problemas da Constituição de 1988 não é o que ela diz, mas como os Juízes entendem o que ela diz. Para mudarmos isso, precisamos mudar a mentalidade dos Juízes, e não, necessariamente, o texto constitucional.
Além disso, grande parte das reivindicações dos proponentes da nova Constituinte podem muito bem ser equacionadas dentro da nossa estrutura constitucional atual, seja com mudanças pontuais em seu texto, seja através de novas leis. Basta que entendamos que a Constituição representa uma proposta de acordo, que envolve, sim, partes imutáveis, mas que envolve muito que pode retornar para uma correta e justa deliberação da maioria.
As Constituições não existem para desaparecer em momentos de crise. Elas existem para criar mecanismos que permitam equacionar, sem lutas e derramamentos de sangue, essas mesmas crises. Se, ao menor sinal delas, abandonamos nossa Constituição, ao fim e ao cabo não precisaremos de mais nenhuma.