por Rodrigo de Lemos
Quando Emmanuel Macron surgiu na arena pública francesa, em 2014, propulsionado pela virada proto-liberal de um François Hollande acabrunhado por dois anos de fracasso econômico socialista, os traços do personagem não podiam deixar de fazer sorrir um leitor da Comédia humana, de Balzac, a qual, passados quase duzentos anos, ainda oferece um retrato fidedigno da vida política e social do país. Oriundo da província (mas de um meio em nada modesto como o dos Rastignac e dos Rubempré balzaquianos), “subira” a Paris movido pela juventude e pela ambição, onde estabeleceu relações mundanas nos meios artísticos, intelectuais, políticos e financeiros. Realizou estudos de filosofia na Universidade Paris X-Nanterre, com trabalho de conclusão sobre Hegel, e foi assistente do filósofo Paul Ricoeur em La Mémoire, l’histoire, l’oubli – o que, se por certo não bastou a transformá-lo em um intelectual, deu-lhe as credenciais de cultura necessárias ao sucesso no grand-monde em um país onde essas coisas ainda contam.
Diplomou-se na Escola Nacional de Administração (ENA), que forma a elite tecnocrática do país, e foi contratado pelo Banco Rothschild, o que lhe permitiu acumular uma pequena fortuna aos 30 anos; aos 36, é nomeado ministro da Economia e, daí, ruma a um destino nacional, concretizado neste domingo. A essa história balzaquiana de juventude, boa aparência, sensibilidade e ambição, não faltou o elemento essencial da mulher madura como veículo de educação mundana e sentimental (cherchez la femme!), incarnada pela sua outrora professora de francês, duas décadas mais velha, e atual esposa – um enredo improvável em que a mídia de fofocas (francesa e agora global) encontrou uma mina. Além do conteúdo romanesco (Balzac ou romance Sabrina?), uma biografia assim, breve e repleta, não deixa de ser ilustrativa de como as elites se formam em um país antigo e em uma democracia madura.
Eu estava na França em 2014 quando da reforma ministerial de Hollande e imaginei que em dez, quinze anos Macron poderia cogitar a presidência. Nada permitia antever que ele não esperaria dois anos.
Para formar seu retrato midiático, Macron se valeu dessa bela biografia à qual acrescentou uma ideia de ruptura, de revolução, muito pouco justificada. Bem entendido, o triunfo do seu movimento, En Marche!, deslocou os dois partidos tradicionais de direita e de esquerda (em que ele militara), mas o seu social-liberalismo é muito mais uma declinação da social-democracia vigente do que um rompimento. A própria social-democracia se coaduna ao imaginário liberal pela ideia de contrapeso; no interesse de corrigir falhas e insuficiências, o Estado serve de contrapeso ao mercado como um poder contrabalança o outro no seio do próprio Estado. Ocorre que a social-democracia, em sua forma clássica, identifica Estado com o público e os entes do mercado com o privado, os serviços públicos sendo estatais (grande parte das escolas, dos hospitais, das universidades), repartições entre tantas.
O social-liberalismo de Macron, por trás de seu verniz de social-democracia versão start-up, desloca os termos dessa oposição, propondo “um new deal entre sociedade e Estado” (a expressão é do jornalista Luc Rosenzweig). O Estado é por certo um dos entes a compor o espaço público, e um ente central em que sua função é a de capitalizar as forças vivas da sociedade, agregando, estimulando e gerenciando os esforços de outros agentes (empresas, voluntários, associações de toda ordem) em prol do bem público; ainda assim, ele não mais se apresenta como seu guardião por excelência.
Algumas medidas de En Marche! são simbólicas desse novo contrato entre Estado e sociedade. A primeira, clássica, é o emagrecimento da máquina administrativa, com a supressão de 120.000 cargos públicos, a observância estrita à responsabilidade fiscal e a redução dos impostos. A segunda, menor mas ainda mais significativa, é o estímulo às associações e a seu envolvimento nos aparelhos de Estado (por exemplo, na escolas públicas, por meio de associações de voluntários que auxiliem estudantes em dificuldade). Mais amplamente, o vértice liberal do programa situa-se na ideia de desbloqueio; as décadas de dirigismo e de social-democracia teriam legado ao país um emaranhado regulatório que entravaria a atividade econômica e a adaptação às novas relações de trabalho (as extremas esquerda e direita acusaram em uníssono Macron de ser o candidato da “überização”). Daí a necessidade de estimular o investimento e de reformar o código de trabalho, redefinindo o diálogo social e reduzindo os custos ao empregador. Esse impulso ao espírito de empresa como resposta aos impasses da sociedade quadra-se bem com a imagem de Macron, milionário aos 30 anos e polêmico ao aconselhar os jovens franceses a ambicionarem sê-lo. Persegue, por aí, uma tradição do liberalismo gálico, sintetizada pelo lema apócrifo “Enrichissez-vous, messieurs!” de Guizot.
O vértice social do programa é ele mesmo conformado por preocupações liberais, assentando a inclusão no dinamismo de um mercado de trabalho desobstruído. Sustenta ao mesmo tempo a necessidade, óbvia em uma nação civilizada, de proteger os mais frágeis nessa dinâmica; ora, nas sociedades modernas, em que o Estado e o mercado fundam a liberdade do indivíduo garantindo-lhe uma margem de independência quanto a seus pertencimentos orgânicos e comunitários, um papel importante nessa proteção termina por tocar à função pública. No entanto, no programa de Macron, o amparo ao incapacitado consiste menos na sua assistência do que na sua capacitação; menos na tutela do que no incentivo à autonomia, apostando, por exemplo, na qualificação dos desempregados em detrimento à extensão indefinida, por meio de brechas legais, de benefícios como o seguro-desemprego. É a França vazada no progressismo à americana, tanto pela defesa da equidade (não fazer o mesmo por todos, e sim mais pelos que mais precisam – daí as propostas da paridade de gênero e de políticas afirmativas), quanto pela ênfase na noção de oportunidade (“A França é uma chance” sendo uma de suas palavras fortes).
Apesar da retórica revolucionária, não é difícil apontar nesse programa um centrismo, em aparência, fácil. Na realidade, ele responde, por um lado, à mitologia balzaquiana do próprio Macron, herói romântico da auto-realização capitalista que a quer para todos; por outro, aos limites da esquerda e da direita clássicas, as quais (como viu Kolakowski e antes dele Kojève) dificilmente podem bastar em uma democracia liberal, cuja estabilidade depende tanto de uma vivaz economia de mercado quanto da garantia de direitos sociais. Não responde também à situação do indivíduo nas democracias avançadas, impaciente de todo jugo que se interpõe à sua realização pessoal ao mesmo tempo em que consciente demais das fragilidades da sua condição humana? Os diferentes arranjos assumidos pelo regime democrático em diferentes latitudes tentam agenciar (de acordo com circunstâncias locais) essas duas urgências, não necessariamente harmoniosas. En Marche!, apesar de suas novidades no quadro francês, se situa na linhagem desses ensaios. Somente se saberá de suas chances reais depois das eleições legislativas.