Reforma da previdência: uma necessidade

Na conjuntura de crise que o Brasil atravessa, o governo federal vem adotando medidas reformistas, e agora se ocupa de um tema bastante controverso: a Previdência.
Detalhe de As três idades da mulher de Gustav Klimt (1906)

por Gabriel Heller e Índio Artiaga do Brasil

Na conjuntura de crise que o Brasil atravessa, o governo federal vem adotando medidas reformistas, e agora se ocupa de um tema bastante controverso: a Previdência.

Antes de adentrar a matéria propriamente dita, esclareça-se que este artigo não visa anuir ou criticar o texto da Reforma da Previdência em debate no Congresso Nacional, e, sim, debater a necessidade (ou não) de se realizar uma, bem como o contexto no qual ela está sendo elaborada.

Qualquer reforma tende a ser complexa, uma vez que envolve romper barreiras e estabelecer novos regramentos; esta, em especial, encontra grande resistência popular, em função dos efeitos — à primeira vista negativos — que gerará para quase todos os trabalhadores.

No entanto, é preciso inicialmente compreender que aposentadoria não constitui um prêmio por tempo trabalhado e sim um seguro social, materializado na forma de um benefício pecuniário que visa sustentar o trabalhador — e/ou aqueles que dele dependem — quando ele não mais possui o vigor necessário para o trabalho.

Também, é inerente ao conceito de Previdência a ideia da poupança. Isso porque a Previdência pressupõe que o empregado e o empregador contribuam com essa poupança (contribuições previdenciária e patronal respectivamente), a fim de assegurar um fluxo de benefícios futuros para a subsistência do trabalhador em sua velhice, enfatize-se, quando ele não mais puder trabalhar. Portanto, pressupõe-se que esse processo seja sustentável, isto é, as contribuições do empregador e do empregado precisam ser, em geral, suficientes para garantir, por si só, o pagamento dos valores aos aposentados e pensionistas.

Nesse sentido, entendem-se incompatíveis com a sustentabilidade da Previdência, por simples lógica matemática, regras que permitam ao indivíduo aposentar-se em pleno gozo de suas condições laborais e em idade excessivamente distante de sua expectativa de sobrevida, cujo cálculo exclui os indivíduos que morrem antes de se aposentar.

Para se ter uma ideia, de acordo com o IBGE, pessoas que se aposentam aos 60 anos têm uma expectativa de sobrevida de 25,2 anos. Pelas regras atuais, aposentando-se nessa idade, o tempo de contribuição (homens, 35 anos; mulheres, 25 anos) se aproxima em demasia do tempo pelo qual o indivíduo receberá os benefícios previdenciários. Nos casos de pensão, o tempo de recebimento dos benefícios pode até superar o período de contribuição.

Essa incompatibilidade seria mitigada, se financeiramente a Previdência se mostrasse saudável. Entretanto, não é esse o quadro.

Segundo dados do Ministério da Previdência Social, o deficit atuarial (resultado negativo entre receitas e despesas previdenciárias dos próximos 75 anos levadas a valor presente por uma taxa de desconto factível) relativas aos Regimes Próprios de Previdência Social (dos servidores públicos da União, estados e municípios), foi, em 2015, de 5 trilhões de Reais. Tenha-se em mente, para entender a magnitude dessa cifra, que o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, no mesmo ano, foi de 5,77 trilhões de Reais.

Da mesma forma, de acordo com o Relatório Resumido de Execução Orçamentária — RREO do último quadrimestre de 2016:

(i) o deficit do Regime Geral de Previdência Social, que abarca todos os trabalhadores, exceto servidores públicos foi de aproximadamente R$ 138 bilhões;

(ii) o deficit do Regime Próprio de Previdência dos servidores públicos civis da União foi de aproximadamente R$ 43 bilhões;

(iii) o deficit do regime dos servidores públicos militares da União foi de aproximadamente R$ 34 bilhões.

Isso significa que, caso não haja uma reforma da Previdência, cada vez mais recursos do Orçamento Público serão direcionados para cobrir esse rombo. Assim, Saúde, Educação e Segurança, por exemplo, perderão cada vez mais sua importância relativa frente ao pagamento de benefícios aos aposentados e pensionistas. Ressalte-se que essa defasagem já vem ocorrendo: em 2016, os gastos na função Previdência Social responderam por 30,73% (dados do RREO, dez/2016), contra 10,56% referentes aos gastos com as funções Saúde, Educação e Segurança Pública somadas.

Existe a hipótese de que, se as regras atuais fossem aplicadas num prazo longo, elas poderiam não resultar, por si só, em um deficit que necessitasse de uma reforma como a que tramita no Congresso Nacional. Isso porque é possível que o deficit da Previdência seja resultado apenas do conjunto de regras que regeram e regem a concessão de aposentadorias e pensões nos últimos 50 anos, as quais foram reconhecidamente mais generosas e imprudentes, permitindo, por exemplo, a aposentadoria por tempo de serviço, em vez de tempo de contribuição, e, por vezes, a contagem de tempo de serviço realizado no âmbito do serviço público.

No entanto, essa não é uma hipótese apta a teste e comprovação, de modo que somos forçados a lidar com o atual deficit previdenciário de ambos os regimes, isto é, com o fato de que as regras atuais não se mostram suficientes e adequadas para essa tarefa. Em resumo, o que nos conduz a uma reforma previdenciária é uma necessidade.

As tentativas de se negar essa realidade correspondem a mais uma evidência de que o brasileiro padece do fenômeno da ilusão fiscal, no qual o indivíduo sobrevaloriza os benefícios advindos de uma determinada política pública e subestima seus custos, convencido de que os recursos do Orçamento Público são infinitos. Embora se compreenda tal pensamento, tendo em vista a abundância de informações que tratam de desvios e desperdícios de dinheiro público, fato é que os recursos são finitos. Pior: são escassos para atender a todas as demandas da sociedade.

Há também a expressiva e ruidosa corrente dos que afirmam que o deficit da Previdência seria fabricado artificialmente e que, na verdade, o regime seria superavitário. No entanto, tal tese, baseada em aspirações ideológicas, confunde conceitos elementares e chega a uma conclusão equivocada.

Primeiramente, ela confunde os conceitos de Previdência e de Seguridade Social: a primeira trata apenas dos benefícios concedidos a aposentados e pensionistas, ao passo que a segunda compreende, além da Previdência, Assistência Social e Saúde.

Além disso, ela considera os recursos de que trata a Desvinculação de Receitas da União como integralmente extraídos da Previdência, desconsiderando a aplicação desses em outras áreas igualmente ou até mais importantes e esquecendo-se que os recursos de que trata a referida desvinculação não advêm apenas da Previdência. Considera, ainda, os recursos oriundos de renúncias de receitas da Seguridade Social como se fossem integralmente da Previdência, ignorando o efeito que aquelas geram para a economia, inclusive para fins de manutenção do nível de emprego.

Ainda, chegam ao cúmulo de adicionar recursos da Dívida Ativa da União à Previdência, misturando conceitos de fluxo e de estoque, considerando ativos cujo recebimento flutua historicamente entre 2% e 4% e esquecendo-se que a destinação dessas receitas, caso fossem arrecadadas, não seria apenas a Previdência.

É sabido que momentos de crise, como os vividos atualmente, proporcionam reflexões não despertadas em tempos de bonança e calmaria. Esta é, portanto, uma oportunidade para um debate honesto, para que a sociedade tenha consciência de todas as despesas incluídas na Previdência de modo a opinar sobre a sua manutenção, a sua ampliação ou mesmo a sua restrição.

Por fim, vale mencionar que toda essa celeuma é resultado da natureza compulsória da Previdência. Sendo assim, tem-se que  o cidadão brasileiro médio não possui a cultura e o hábito de poupar recursos para o futuro com vista a se sustentar na velhice, o que o obriga a depender exclusivamente do Governo. Talvez seja hora não só da reforma da previdência, mas de uma política pública de educação financeira, de modo que também o Governo pare de tratar todos os cidadãos como indivíduos incapazes de gerir suas próprias finanças, obrigando-os a contribuir para um regime de Previdência claramente insustentável.

Índio Artiaga do Brasil é matemático, auditor e mestre em Economia do Setor Público pela UnB.

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