por Gabriel Heller
O Presidente eleito Jair Bolsonaro declarou que gostaria de ver o juiz federal Sergio Moro no Ministério da Justiça ou no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma vez que a alocação no STF depende da vacância de uma das 11 cadeiras da Corte, o que, salvo algum evento imprevisto, acontecerá em 2020, com a aposentadoria do Ministro Celso de Mello, remanescia, para o momento, apenas a opção da Pasta da Justiça.
Os motivos da manifestação de Bolsonaro e de seu convite são óbvios: Moro é o símbolo maior da Operação Lava Jato, sinônimo de combate à corrupção no Brasil nos últimos anos e, indireta e involuntariamente, corresponsável pela vitória de Bolsonaro, que se elegeu com a bandeira contrária a “tudo que está aí”. Poucos dias após o convite, o magistrado aceitou a missão de assumir o Ministério que, ao que tudo indica, voltará a comandar a Segurança Pública no Governo Federal.
Resta, pois, analisar o que representa a saída de Moro da Lava Jato e seu ingresso no mundo efetivamente político, o que tentarei fazer sob algumas perspectivas: a do próprio Moro, a do Governo Bolsonaro e a da Operação Lava Jato.
Como afirmou o Presidente eleito, Sergio Moro virou um ícone nacional. Apesar das controvérsias jurídicas e políticas que gerou, o juiz foi inquestionavelmente decisivo para que o povo passasse a crer que o combate à corrupção não é vão e que a lei vale, de fato, para todos. Com rigor, mas sem descuidar da técnica, Moro ajudou a fortalecer a credibilidade do Poder Judiciário junto à população. Ex-professor do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Federal do Paraná, magistrado há mais de 20 anos e ex-juiz auxiliar do STF, o juiz é candidato natural a qualquer indicação no ramo jurídico, inclusive para Ministro da Justiça, cargo de livre nomeação do Presidente da República, que prescinde de qualquer outro predicado além da confiança do Chefe do Poder Executivo.
Porém, capacidade e currículo não pesam isoladamente num contexto complexo como o brasileiro. Ao tornar-se Ministro do Governo Bolsonaro, Moro converte-se em um agente político, não mais guarnecido de proteções institucionais que garantam a proeminência da técnica e a imparcialidade que marcaram sua atuação na Operação Lava Jato.
Ministros de Estado, por mais que estejam igualmente vinculados à lei e à Constituição, são da confiança daqueles a quem compete sua nomeação e exoneração, e a estes devem fidelidade. Chefes de Ministérios são, por conseguinte, subordinados ao Presidente da República, e não há isenção nessas funções. Assim, a primeira pergunta que cabe é: Moro se adequará a essa nova dinâmica de atuação, sob a batuta de um Presidente que ele, até prova em contrário, desconhece em boa monta?
Para o juiz federal, contudo, a migração para o Poder Executivo revela-se estratégica, se ele tem pretensões de chegar ao STF. Não é da tradição brasileira que juízes de primeira instância, por mais qualificados e respeitados que se mostrem, sejam indicados diretamente para a Corte Suprema. O mesmo não se pode dizer de Ministros da Justiça, como demonstram, entre outros, os exemplos mais recentes de Paulo Brossard, Maurício Corrêa, Nelson Jobim e Alexandre de Moraes, nomeados respectivamente por José Sarney, Itamar Franco, Fernando Henrique e Michel Temer, a quem serviram como chefes da Pasta.
A diferença entre Moro e os ex-Ministros citados não reside na capacidade do primeiro, mas no fato de que os últimos possuíam uma longa trajetória vinculada à política, ao passo que o magistrado tem sua carreira restrita ao mundo da técnica, seja na jurisdição, seja no magistério. A segunda pergunta que fica, portanto, é: Moro, acostumado a ser um solitário magistrado que decide com base na lei e no seu livre convencimento motivado, terá o traquejo que a função política exige?
Essa dúvida conduz à perspectiva do Governo Bolsonaro. A nomeação de Sergio Moro para o Ministério da Justiça tem, por certo, seus pontos positivos. Provavelmente ganharão força a oposição institucional a projetos de lei que tentam limitar a independência do Poder Judiciário e do Ministério Público (as propostas de criminalizar a violação de prerrogativas de advogados e de estender o conceito de abuso de autoridade são bons exemplos) e o apoio a propostas que endurecem a legislação de combate ao crime. Por sua vez, o Poder Executivo receberá parte da credibilidade que a figura do magistrado carrega, sinalizando que o Governo Bolsonaro cumprirá suas promessas de intolerância aos desmandos contra o Estado.
No entanto, Ministros são demissíveis ad nutum (instantaneamente) e com frequência operam como “fusível” nos momentos de crise, poupando o Chefe de Estado e de Governo e proporcionando estabilidade ao sistema presidencialista. A política é a arte do possível, implica compromissos e concessões, algo com que magistrados não estão habituados em seu cotidiano. Assim sendo, é válido questionar o que o Presidente Bolsonaro fará, caso Sergio Moro não corresponda às expectativas ou se envolva em alguma polêmica que o ponha na berlinda. Terá coragem e pulso para rifar esse símbolo de “lei e ordem”, tão popular quanto o próprio Presidente?
Por fim, é sob a perspectiva da Lava Jato e da percepção da sociedade brasileira que a transferência de Moro do Poder Judiciário para o Poder Executivo enseja maiores questionamentos. Após sua adesão a um Governo de clara oposição a réus que condenou, leigos e juristas terão a mesma firmeza em defender a imparcialidade de Moro nos processos que julgou? À parte o caráter um tanto histérico-apelativo das reações de réus e políticos ao mero convite, o aceite do magistrado carrega inexoravelmente o deletério efeito de dar força à politização de tudo que, nos últimos anos, tentou-se dizer que era estritamente jurídico.
Em um ou outro episódio, com efeito, o magistrado resvalou e agiu mais política do que juridicamente, destacando-se o evento da liberação dos áudios das conversas de Lula e Dilma. Porém, até o momento, malgrado as críticas de autoritarismo e atuação política de Sergio Moro nos processos que conduziu e julgou, suas ações foram, em geral, caracterizadas pela fundamentação técnica, tanto assim que mantidas, na maior parte, pelas Cortes superiores.
Mas o Direito compartilha com a política uma natureza argumentativa, sendo nesses campos, em geral, mais importante convencer do que ser (aqueles que reputam o Direito uma ciência hão de me perdoar nesse ponto). Por mais que se entenda que as decisões de Moro foram juridicamente corretas, é difícil negar que o argumento de motivação política ganha força com sua adesão ao novo Governo.
Não acredito em neutralidade, no sentido de ausência de vieses e pré-compreensões. Nesse sentido, Moro nunca foi neutro: sempre mostrou-se opositor ao garantismo exacerbado propagado pela doutrina pátria, formada essencialmente por advogados criminalistas, e abraçado por uma parcela expressiva de nosso Poder Judiciário. Todavia, isso não se revela suficiente para afirmar que suas sentenças tenham sido fruto de preferência político-partidária, para considerá-lo parcial e, portanto, suspeito para julgar os processos da Lava Jato, como incansavelmente alegam as defesas dos réus que vêm sendo condenados.
Porém, repito, no Direito, convencer frequentemente é mais importante do que ser. Em consequência, parece-me que Moro prestaria um serviço maior à nação resistindo à tentação e deixando a outra pessoa com filosofia e representatividade semelhantes a função de Ministro da Justiça.
A priori, não há razões para nos preocuparmos com as “narrativas” que serão criadas por parte da oposição a Bolsonaro – coincidente com a que sempre tentou atribuir a Moro a pecha de parcialidade. O desempenho do juiz federal foi marcado pelo extremo rigor com que conduziu processos criminais, mas o espectro de atingidos pelas condenações não permite concluir que tal severidade foi seletiva e direcionada para um grupo ou partido. Daí não decorre, contudo, que o futuro da Operação Lava Jato seja imune aos efeitos da escolha do magistrado cuja atuação pôs fim à carreira de alguns dos políticos mais poderosos do país – Lula entre eles.
No hoje já clássico filme de Christopher Nolan, O Cavaleiro das Trevas, o personagem Harvey Dent, promotor de justiça de Gotham City, afirma: “ou você morre um herói, ou você vive o suficiente para se ver transformar em vilão”. Tendo Moro aceitado o convite do Presidente eleito, resta torcer para que não seja um bom exemplo do aforismo de Dent.