Uma ode à jurisdição constitucional

Passados mais de 30 anos da promulgação da Constituição Federal, Lenio Luiz Streck elabora uma ode à sua força normativa. Uma ode à jurisdição constitucional.

por Lenio Luiz Streck

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No dia 06 de outubro de 1988, fiz meu primeiro controle difuso de constitucionalidade tendo por base a parametricidade da recém promulgada Constituição cidadã. Como Promotor de Justiça, recebi um conjunto de processos judicialiformes vindos da Polícia Civil. Com efeito, à época do regime militar, foi editada a Lei 4611, pela qual os crimes previstos nos artigos 121, § 3º, e 129, § 6º, do Código Penal, teriam seus processos sob o rito sumário. O que acontecia era que o delegado era, ao mesmo tempo, policial, promotor e juiz. De imediato, suscitei o controle difuso ao juiz da Vara no município de Panambi/RS, que, depois de muita discussão, atendeu ao meu pedido. Deixou de aplicar a lei 4611 e aplicou a Constituição. Dali em diante, esses procedimentos judicialiformes deixavam de existir na Comarca. O titular da ação penal, o Ministério Público, passou a ter o domínio dos inquéritos, passando, inclusive, a participar ativamente de uma espécie de controle externo da atividade policial, em obediência ao artigo 129, VII, da Lei Maior. Dia desses, em painel realizado na AJURIS-RS em curso de atualização para juízes, o Desembargador Conrado Kurtz, que passou pela Comarca de Panambi quando juiz de instância intermediária, lembrou que encontrou, muitos anos depois de 1988, um processo judicial em que eu participara da oitiva de testemunhas de indiciado na fase do inquérito na Delegacia de Polícia.

Minha ortodoxia constitucional começou ali, no dia seguinte à promulgação da Constituição. E por esse caminho venho trilhando dia a dia, lutando pela preservação do grau de autonomia do Direito minimamente necessário para que os predadores externos e internos não façam soçobrar o direito legislado, desde que, é claro, esteja em conformidade com a Constituição. Por isso, tenho insistido nos seguintes pontos: Direito não é moral. Direito não é sociologia. Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador. Ou seja, ele possui, sim, elementos (fortes) decorrentes de análises sociológicas, morais, etc. Só que estas, depois que o Direito está posto — nesta nova perspectiva (paradigma do Estado Democrático de Direito) —, não podem vir a corrigi-lo.

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Ulysses e a Constituição (Arquivo ABr)

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Nestes 30 anos de Constituição, houve — e continua a haver — uma enorme dificuldade de nos livramos dos fantasmas do passado. Face ao predomínio, anterior à Constituição, de um formalismo sustentado no positivismo legalista (clássico), os primeiros anos de vigência da CF foram palco de uma invasão de posturas, teses e teorias que visavam a matar o velho inimigo até então identificado: o juiz boca da lei, que representava, no imaginário jurídico, o positivismo que atravessava o século XIX e ingressara no século XX. E o lema passou a ser: “com a nova Constituição, morreu o juiz ‘boca da lei’ e nasceu o ‘juiz dos princípios’.” Não haveria mais subsunção. “Sentença vem de ‘sentire’, dizia-se aos quatro ventos. O novo tempo passara a ter como protagonista uma coisa chamada “valores”, com o fundamento de que, superado o positivismo, agora tínhamos que argumentar para sustentar o juiz protagonista. Claro: desamarrado da subsunção, como que a lembrar os voluntarismos da Escola do Direito Livre ou da Livre Investigação Cientifica, nossa doutrina passou a dar a alforria para a livre criação do Direito, como se a nova Constituição não apontasse exatamente para o contrário: agora precisávamos fazer cumpri-la, sem que isso significasse “ser positivista”.

As práticas jurídicas de então (ensino, doutrina e jurisprudência) — problemática que se estende até os dias de hoje —, ainda atreladas ao velho imaginário de predominância formalista, misturavam diversas posturas, que mais serviam para justificar o solipsismo judicial. Esse, aliás, era o paradoxo, que, todavia, ainda não foi superado: embora a cultura jurídica estivesse contaminada por um formalismo que, de certo modo, reproduzia elementos exegéticos, ao mesmo tempo, mesclava-se com mecanismos despistadores, como o discricionarismo e o livre convencimento, tendo fértil terreno nas escolas instrumentalistas no processo civil (herança do solipsismo de Oskar von Bülow e dos processualistas que o seguiram) e no inquisitivismo no processo penal.

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Oskar von Bülow

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Tudo isso pode ser traduzido do seguinte modo: a promulgação da Constituição enfrentou uma longa caminhada, cheia de percalços: do formalismo civilista “conservador” (em verdade, autoritário), que insistia em interpretar a Constituição a partir da lei, para uma tardia Jurisprudência dos Valores (recepcionada, aliás, no marco do velho culturalismo jurídico realeano, não menos “conservador”-autoritário), que despreza(va) a lei e reduz(ia) a Constituição a valores abstratos. A intenção inicial poderia até ser boa; afinal, a teoria até então usada, de modo distorcido ou não, para tratar da normatividade constitucional, era a da aplicabilidade das normas constitucionais de José Afonso da Silva, que nega o caráter normativo dos princípios.

Todavia, trocar o velho formalismo por uma Jurisprudência de Valores tardia (difícil dizer e aquilar o estrago feito pelas mixagens das diversas teses e posturas empiristas-voluntaristas que se sucederam pós-1988) contribuiu para que não se consolidasse uma nova teoria da decisão que, rompendo com o privatismo, respeitasse a Constituição como norma.

Dito de outro modo, promulgada a Constituição, ocorreu uma corrida buscando mecanismos que implementassem um novo “juiz dos princípios” que pudesse “derrotar” o juiz “boca da lei”, sem que a doutrina explicasse o que era isto — o princípio (isso é dito até hoje, quando ainda se repete o enunciado performativo de que “princípios são valores”). Parcela majoritária da doutrina mais apostou em seguir o que a jurisprudência passou a dizer; isto é, em vez de prescrever o sentido da normatividade da Constituição, contentou-se em legitimar o uso de um ainda embrionário ativismo que foi se forjando a partir do início dos anos 90.

No âmbito do Direito Constitucional, foi sendo formatado o constitucionalismo da efetividade, uma mistura de realismo jurídico e altas doses de subjetivismo, dependendo do protagonismo judicial em doses equiparáveis àquilo que Bülow reivindicava dos juízes alemães para a importação do direito romano naquele fim de século XIX. Sem dúvida, era sedutor ver determinados juízes e tribunais assumirem a vanguarda da implementação dos direitos constitucionais, coisa que não se via antes da Constituição. Não esqueçamos que, no ancien régime decorrente do Golpe Militar de 1964, os juristas críticos buscávamos um acionalismo judicial, a partir de teses alternativistas (baseadas na filosofia da linguagem ordinária e, basicamente — ainda que implicitamente — nos realismos jurídicos escandinavo e norte-americano) e em teorias marxistas que descontruíam o establishment jurídico-político-dogmático. Só que, uma vez promulgada a Constituição, esse acionalismo poderia ser prejudicial — como acabou sendo — dependendo o modo como se colocava o papel do Judiciário.

Com efeito, nos primeiros anos, começou a florescer a tese advinda do constitucionalismo alemão e seus derivativos espanhol e português, pela qual uma constituição do tipo compromissório representava um deslocamento do polo de legitimidade em direção ao Judiciário — esquecendo-se, porém, toda a história institucional que apontava para o perigo em se apostar em um Judiciário forjado em um imaginário no qual predominantemente se raciocinava a partir da dicotomia “positivismo-jusnaturalismo” ou “juiz boca da lei-juiz dos princípios”.

De minha parte, embora concordasse com a tese de que, de fato, havia um deslocamento forte do polo de tensão em favor do Judiciário (ou dos Tribunais Constitucionais), sempre coloquei desconfiança para com o protagonismo judicial. Por isso, sempre estive afastado do Direito Alternativo, embora tivesse participado de congressos e seminários tratando da temática. É evidente que nos primeiros anos era necessário absorver esse novo paradigma constitucional e fazer a transição de um imaginário jurídico que desconhecia o significado de Constituição em direção ao Estado Constitucional. Lembremos que, no Regime Militar, tivemos a Carta de 1967 determinada pelos militares e, em 1969, o “golpe dentro do golpe”, com a EC n. 1 — outorgada de acordo com o AI-5. Nem sequer havia a disciplina de Direito Constitucional na maioria dos cursos jurídicos. Daí sempre a pergunta que fazia em textos, palestras e salas de aula: como olhar o novo com os olhos do velho? O novo tinha enormes dificuldades de nascer, porque o velho teimava em não morrer.

É induvidoso que, no começo da era pós-88, o velho ranço formalista ainda resistia à aplicação da própria Constituição — como se uma lei infraconstitucional pudesse sobreviver sem uma devida filtragem hermenêutico-constitucional —, problemática bem denunciada nas teses garantistas de Ferrajoli. Vigência não é igual a validade — eis um ponto fulcral de Ferrajoli para derrotar leis anteriores à Constituição. Imagine o leitor o problema em um país como o Brasil, em que, promulgada a Constituição, todos os Códigos eram de décadas atrás (alguns, aliás, ainda em vigor no aniversário dos 30 anos). Lembro que, nos primeiros anos, a metáfora da katchanga real era usada,[1] por mim, como um remédio para enfrentar as velhas teses formalistas. Em um segundo momento, percebi que essa metáfora poderia estar sustentando, ideologicamente, o protagonismo decorrente do ingresso da vulgata da ponderação, fruto de uma errônea leitura da teoria dos princípios de Robert Alexy.

O mesmo ocorreu com a proporcionalidade, também utilizada — inclusive por mim — para superar a aplicação dedutivista-subsuntiva de dispositivos do Código Penal. Nesse sentido, nos primeiros anos, construí raciocínios estratégicos para, por exemplo, por intermédio de uma proporcionalidade “forçada”, considerar não recepcionados dispositivos como a reincidência e a Lei das Contravenções Penais, assim como para aplicar a Lei da Sonegação de Tributos em casos de furto em que não restara prejuízo para a vítima, cuja tese capitaneei junto ao Tribunal de Justiça do RS. Do mesmo modo, sustentei que a pena de furto não podia ser duplicada face à coautoria, se, ao mesmo tempo, no caso do roubo, o concurso de agentes apenas majorava em um terço a pena.

Quando foi aprovada a Lei n. Lei 10.792, de 1.º.12.2003, os acusados eram interrogados sem a presença de defensor. Já bem antes dessa lei, meus pareceres como Procurador de Justiça eram todos no sentido da anulação do feito se o interrogatório havia se dado sem a presença de defensor. Os acórdãos (v.g., da 5.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul) que anulavam interrogatórios realizados sem a presença de advogado eram sistematicamente atacados — pelo próprio Ministério Público — via recursos especial e extraordinário. E, registre-se, o Superior Tribunal de Justiça anulou os acórdãos que aplicavam a Constituição (princípio do devido processo legal e ampla defesa), reforçando, assim, a problemática relacionada aos obstáculos à plena implementação dos direitos e garantias constitucionais. De qualquer sorte, não há notícia de que os manuais de direito processual penal, neste espaço de vigência da Constituição, tenham apontado, antes da edição da Lei 10.792, na direção de que seria nulo qualquer interrogatório sem a presença do defensor. Mas — e aqui vai a con?ssão da crise paradigmática — bastou que a nova lei viesse ao encontro da (tênue) jurisprudência forjada inicialmente na 5.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul para que a polêmica — instantaneamente — se dissolvesse no ar. Sendo mais claro: os juristas preferiam não obedecer à Constituição, da qual era possível extrair, com relativa facilidade, o império do princípio do devido processo legal e da ampla defesa; entretanto, com o advento da Lei 10.792/2003, estabelecendo exatamente o que dizia a Constituição, cessaram-se os problemas (claro que alguns processualistas penais continuavam a dizer que essa nulidade era relativa, demorando alguns anos para alterarem sua posição. Em suma, obedece-se à lei, mas não se obedece à lei das leis…!

Enfim posso dizer que pratiquei o garantismo cotidianamente como modo de implementar a melhor jurisdição possível no contexto de um Judiciário refratário à inovações. Não posso deixar de registrar, também, a tese de que entre o velho e novo se estabeleceu uma crise paradigmática, que denominei, de um lado, de crise do paradigma liberal individualista normativista, e, de outro, no plano da compreensão, de crise dos paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência, problemática sobre a qual me debrucei ao longo dos anos, principalmente no livro Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, hoje em sua 11ª. Edição.  Com efeito, o garantismo foi, desde o início, um excelente mecanismo para implementar a força normativa da Constituição, aos moldes do que falavam Hesse, Canotilho e Ferrajoli. Já em 1990, eu dizia que garantismo era forma de fazer democracia no e pelo Direito. Anos depois, quando Canotilho disse que a Constituição Dirigente morrera, de imediato propus que adotássemos uma Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia. De todo modo, confesso a enorme dificuldade para superar o acionalismo que buscávamos antes da CF/88 — afinal, o Estado era autoritário, e a estrutura jurídica era produto de um paradigma liberal-individualista (lembro que eu dizia, nos anos 90, que o Brasil era como um micro ônibus: tem direção hidráulica, ar condicionado, mas só cabem vinte e cinco pessoas) — e ingressar em um patamar no qual passaríamos a depender de uma nova linguagem pública, representada por uma Constituição compromissória e dirigente.

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J.J. Gomes Canotilho

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Lembro também que, já nos anos 90, eu repetia um julgado do Tribunal Constitucional da Espanha, do ano de 1981, que determinava que os juízes aplicassem a Constituição. Repetia esse julgado Brasil afora como um mantra, assim como aquilo que Ferrajoli chamava de interpretação em conformidade com a Constituição, que nada mais era do que dizer que uma lei vigente só é válida se estiver em conformidade com a Constituição. Malgrado essa dificuldade de fazer a transição do ancien régime para o Estado Democrático de Direito constante na Constituição, sempre contestei os mecanismos que tornavam o Judiciário um criador de Direito, como se pode ver em minhas incontáveis críticas às sumulas e, depois, das súmulas vinculantes.

É possível dizer que já na metade dos anos 90 os sintomas desse neoprotagonismo começaram a aparecer. Não no sentido de uma efetiva judicialização da política, mas, sim, na implementação de ativismos judiciais. Como é sabido, um dos problemas da doutrina constitucional e da própria jurisprudência é não fazerem, até hoje, a devida distinção entre ativismo e judicialização, o primeiro sempre deletério e prejudicial à democracia, porque behaviorista, e o segundo sempre contingencial, dependendo de competências e incompetências dos demais poderes.  Isso me levou à elaboração de uma fórmula — confesso, um pouco tardia (todos temos certa dose de culpa no florescimento do ativismo) — para firmar essa distinção, que pode ser feita a partir das três perguntas que um juiz-tribunal deve fazer: se está diante de um direito fundamental com exigibilidade, se o atendimento a esse pedido pode ser, em situações similares, universalizado — quer dizer, concedido às demais pessoas — e se, para atender aquele Direito, está-se ou não fazendo uma transferência ilegal-inconstitucional de recursos, que fere a igualdade e a isonomia. Com essas três perguntas será possível verificar se o ato judicial é ativista ou está apenas realizando, contingencialmente, a judicialização da política. Sendo uma das três perguntas respondida negativamente, estar-se-á, com razoável grau de certeza, em face de uma atitude ativista.

Como dizia a Rainha Vermelha, de Alice no País das Maravilhas, é preciso correr muito para ficar no mesmo lugar. Com efeito, como tudo no Brasil chega tardiamente, sobrevinda a Constituição, em um primeiro momento foi necessário desmi(s)tificar as posturas formalistas ainda sustentadas no positivismo clássico, o tradicional juiz boca da lei. Só que isso não estava claro no âmbito da dogmática jurídica. Aliás, até hoje, nas salas de aula, em parcela da doutrina e nas práticas jurisprudenciais, ainda se pensa que positivismo é igual a juiz boca da lei. Esquecem-se de que o próprio Kelsen foi um positivista pós-exegético, olvidam o que foi produzido pelos positivistas pós-hartianos, que apontaram suas baterias para longe do velho exegetismo — isto porque o positivismo da era pós-Hart já não obriga(va) os juízes. Só que os juristas brasileiros (e falo apenas destes para não criar incidentes internacionais) não se deram conta deste “pequeno” detalhe, porque continua(ra)m a pensar que positivismo é(ra) cumprir a letra da lei.

Talvez por causa desses detalhes nebulosos é que, em um segundo momento, parte da doutrina se enebriou com certas teorias argumentativas e com uma vulgata da ponderação — o que provocou um verdadeiro estado de natureza interpretativo —, tornando necessário, então, que os juristas críticos começássemos a elaborar críticas aos diversos voluntarismos.  Dito de outro modo, a crítica do Direito não poderia ser uma crítica fora de ordem. Tão grave é essa questão que, passados os 30 anos, quase 31, ainda há forte resistência à tese de que os juízes não possuem livre convencimento. O CPC de 2015 — por minha direta intervenção no Parlamento — expungiu a palavra “livre” e, mesmo assim, parcela considerável dos processualistas continua a sustentar o livre convencimento. Circunstância esta que também se faz presente na própria Suprema Corte, conforme é possível verificar no comentário ao julgamento do caso da AP 470.

Mas a gravidade chega ao patamar de dramaticidade, uma vez que o projeto do CPP de 2010 insistiu na tese de que o juiz tem livre apreciação da prova — o que se repetiu no projeto apresentado em 2018 na Câmara dos Deputados. Nesse sentido, parece grande o déficit da dogmática processual penal (assim como da dogmática processual civil, que continua a insistir na subjetivista e voluntarista tese do poder de livre convencimento).

E o protagonismo judicial foi se tornando cada dia mais intenso. As fragilidades do presidencialismo de coalizão (Abranches) foram ajudando a tornar o Judiciário cada vez mais proativo, passando a ditar “políticas” de forma ad hoc, sem a devida preocupação com os requisitos da judicialização, dentro da diferença entre esta e o ativismo. Já publiquei textos sobre judiciariocracia de coalizão, explicando que, do mesmo modo como o Presidencialismo brasileiro é de coalizão, enredado em atendimentos de pleitos políticos ad hoc, circunstância que causa enormes problemas para a assim denominada “governabilidade”, também o Supremo Tribunal Federal acaba ingressando perigosamente nesse terreno de (atendimento a) demandas de grupos. E também — e isso precisa ser dito — demandas provenientes da falta de resolução dos problemas das liberdades públicas no plano dos demais tribunais do país. Eles falham e tudo acaba no STF. Ele cresce. Mas sofre. E sangra na legitimidade. Assim como a Presidência da República tem de atender aos pleitos dos partidos, o STF, durante esses mais de vinte anos, acabou por engendrar uma espécie de “julgamentos políticos”.

Isso está diretamente ligado a outro ponto: se, ao lado do realismo e dos diversos voluntarismos (aqui incluída a ponderação à brasileira e a má compreensão acerca do positivismo), formos eleger outro aspecto que determinou a fragilização da Constituição (e portanto, do Direito), não podemos deixar de fora a repristinação do dualismo metodológico predominante no século XIX e que adentrou o século XX e está presente nestes dias. Esse fenômeno esteve presente no conceito de mutação constitucional de Laband e Jellinek e mereceu mais tarde conhecidos desenvolvimentos por Hsu Dau-lin. Nesse sentido, como bem afirmam Artur J. Jacobson e Bernhard Schlink, em Weimar: a jurisprudence of crisis, o dualismo metodológico — positivismo legalista-positivismo sociológico —, que perpassa toda a obra de Jellinek e que serve de base para a tese da mutação constitucional (Verfassungswandlung), impediu o jurista alemão de lidar normativamente com o reconhecimento daquelas que seriam “as influências das realidades sociais no direito”.  A mutação constitucional é assim tida como fenômeno empírico, que não é resolvido normativamente: “Jellinek não apresenta um substituto para o positivismo legalista, mas apenas tenta suplementá-lo com uma análise empírica ou descritiva dos processos político-sociais”.[2] Na verdade, o conceito de mutação constitucional mostra apenas a incapacidade do positivismo legalista da velha Staatsrechtslehre do Reich alemão de 1870 em lidar construtivamente com a profundidade de sua própria crise paradigmática.

Mesmo em Hsu-Dau-Lin e sua classificação “quadripartite” do fenômeno da mutação constitucional[3] não se leva em conta aquilo que é central para o pós-segunda guerra e em especial para a construção do Estado Democrático de Direito na atualidade: o caráter principiológico do direito e a exigência de integridade que este direito democrático expõe — muito embora, registre-se, Lin, discípulo de Rudolf Smend,  tenha tido a sua disposição a obra de Hermann Heller, um dos primeiros a falar em força normativa da Constituição (nele está o nascedouro da Constituição como norma jurídica).[4] Smend, embora também tenha trabalhado a noção de princípios, era, assim como Schmitt, admirador do fascismo, como aliás Kelsen muito bem mostrou na crítica brilhante que este fez à teoria do Estado como integração.

Observe-se que essa fenomenologia parece tratar do que ocorreu e continua ocorrendo no Brasil: coloca-se uma contraposição da realidade social à normatividade constitucional. A opção parece que tem sido, predominantemente, pela primeira.  Em síntese, a tese dualista herdada de Laband e Jellinek justifica, passados mais de um século, uma concepção decisionista da jurisdição e contribui para a compreensão das cortes constitucionais como poderes constituintes permanentes.

Assim, muitos dos grandes julgamentos incorporaram essa dualização, propiciando que uma dita realidade social se sobrepusesse à realidade normativa. Assim foi no Mensalão, na Operação Lava-Jato (e os recursos judiciais decorrente de seus julgamentos), e no caso das diversas ações envolvendo aquele que é o maior julgamento destas décadas: a presunção da inocência e sua redefinição a partir do HC 126.292, ocasião pela qual o STF ignorou a literalidade do artigo 283 do CPP sem, no entanto, declará-lo inconstitucional. Essa problemática se arrastou por mais de dois anos, incluindo três ações declaratórias de constitucionalidade, até que finalmente o STF reconhecesse que x deve ser lido como… x.

Não somente a Suprema Corte, mas também as demais instâncias do Judiciário e do Ministério Público aos poucos foram institucionalizando uma disputa entre o Direito e a moral, tendo dado ganho de causa aos argumentos morais: até mesmo nos casos em que a questão constitucional se apresentava como um easy case, houve já pronunciamentos invocando ponderações inexistentes.

Nestes mais de 30 anos da Constituição, ainda há um déficit considerável acerca do verdadeiro papel do rule of law. As faculdades de Direito colaboraram enormemente para que o ensino do Direito viesse a ser substituído por péssimas teorias políticas do poder. Resultado: na hora em que precisamos de resistência constitucional, o debate é tomado por posições ideológicas, em que soçobra(ra)m as garantias constitucionais, mormente no âmbito do processo penal. Com efeito, além de invocações de argumentos morais, políticos e econômicos, parcela considerável dos tribunais ainda inverte o ônus da prova nas ações penais; sequer conseguimos implementar o artigo 212 do CPP, por uma equivocada compreensão acerca do sentido do que seja um sistema acusatório.

Uma questão, portanto, que marca estes anos de Constituição pode ser resumida do seguinte modo: Quando um magistrado diz que julga “conforme sua consciência” ou julga “conforme o justo” ou “primeiro decide e depois vai encontrar um fundamento” ou ainda “julga conforme os clamores da sociedade”, é porque está repetindo algo enraizado no imaginário jurídico. Um comportamento que se naturaliza leva muitos anos para “desnaturalizar”. Transforma-se em dogmática, eliminando o tempo e as coisas (cronofobia e factumfobia). O que ocorre é que não queremos admitir que ideologizamos — para usar uma palavra suave — a aplicação da lei no país. Daí a pergunta que deve ser respondida: o Direito, ao fim e ao cabo, é o que dele se diz por aí ou, melhor, ele é o que o Judiciário diz que ele é? Mas se isso é assim, se já se “naturalizou” essa concepção, por que continuamos a estudar ou escrever sobre o Direito? Não seria melhor deixar que “quem decide é quem sabe”?

Os brasileiros não temos certeza se (já) atravessamos o Rubicão. São mais 30 anos de Constituição, em que dia a dia os predadores — endógenos e exógenos[5] — avançam em direção à cidadela do Direito. Enquanto as democracias europeias se deram conta de que o direito pós-bélico necessitava de um elevado grau de autonomia — afinal, o grande mote foi “Constituição (agora) é norma —, por aqui, o Direito continuou a ser tratado como uma mera racionalidade instrumental. Isso é possível de perceber pelo crescimento vertiginoso das teorias ou posturas empiristas — da qual a mais perigosa é o realismo jurídico, não devendo, todavia, serem desprezadas as posturas que se baseiam em análises econômicas do Direito e as teses que admitem o discricionarismo e pamprincipiologismos, que chegaram ao ápice quando um “princípio” como o da “afetividade”, para falar apenas deste, derrota uma regra do Código Civil.

Esta é uma ode à jurisdição constitucional. Sempre fazemos jurisdição constitucional. Uma lei só é lei se for constitucional. Logo, é um exercício pleno e efetivo de jurisdição constitucional. Mesmo quando praticamos os clássicos critérios de antinomias, trabalhamos a partir de princípios e preceitos constitucionais, como igualdade, legalidade, isonomia, etc. Venho desenvolvendo essas temáticas nestes mais de 30 anos de nossa Lei Maior a partir do que denominei, de há muito, de Crítica Hermenêutica do Direito. Ela é a matriz teórica que sustenta minhas reflexões. Por ela, devemos revolver o chão linguístico em que está assentada a tradição e reconstruir a história institucional de cada instituto (lei, principio, etc.), descascando o fenômeno, para permitir que ele se mostre em sua inteireza hermenêutica. Os conceitos jurídicos — e não é difícil perceber isso — vão sendo tomados por uma poluição semântica. Ao lado disso, existe o perigo da anemia significativa (Warat).

Daí a necessidade de resistir. Defender a legalidade constitucional — conceito que aprendi há décadas com o grande constitucionalista espanhol Elias Díaz — é um ato revolucionário, a ponto de poder afirmar que o professor de direito constitucional é, hoje, um subversivo, se trabalhar, efetivamente, com a força normativa da Constituição.  Esse professor, se estiver acompanhado de outros pesquisadores (quatro ou mais), corre sempre o risco de ser processado pelo crime de obstrução epistêmica da justiça. Parafraseando T. S. Eliot — para quem, em um país de fugitivos, quem anda na contramão parece que está fugindo —, permito-me dizer que, em um país de voluntaristas e realistas, quem defende a legalidade é taxado de “positivista” — o que não apenas significa ignorância, como também um sintoma dos efeitos deletérios que uma má teoria do direito provocou, e continua provocando, no seio do direito brasileiro.

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Streck (arquivo pessoal do autor)

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Notas:

[1] A estória da Katchanga foi inventada pelo saudoso Luis Alberto Warat. Ele a chamava de “O Jogo da Katchanga”. Não falava português: retrabalhou os “escravos de Jô”, que jogavam “caxangá”. No seu portunhol, virou katchangá e, depois, simplesmente… katchanga. Discuti muito em sala de aula e contei várias vezes a estorinha em conferências. Warat contou a estória para metaforizar (e criticar acidamente) a dogmática jurídica. Afinal, dizia “a dogmática jurídica é um jogo de cartas marcadas”. E quando alguém consegue entender “as regras”, ela mesma, a própria dogmática, tem sempre um modo de superar os paradoxos e decidir a “coisa” ao seu modo. Quem quiser ler a estorinha, pode vê-la em uma coluna que escrevi para o portal da ConJur, intitulada A Katchanga e o bullying interpretativo no Brasil. Em <https://www.conjur.com.br/2012-jun-28/senso-incomum-katchanga-bullying-interpretativo-brasil>.

[2] Jacobson, Artur J., Schlink, Bernhard. A Jurisprudence of Crisis. pp. 46 e 54-57.

[3] De todo modo, lembremos que Hsu dau-Lin escreveu o seu texto no contexto da República de Weimar, havendo todo um debate sob a Lei Fundamental, por exemplo, com Konrad Hesse e Böckenförde.

[4] Nesta genealogia acerca da transição de CF/88 para os anos posteriores, é de perguntar se os primeiros anos da Lei Fundamental alemã também não foram ainda marcados pelos discípulos de Schmitt e Smend (aí sim) nas universidades. Ou seja, vai demorar um pouco ainda para a chegada da hermenêutica de Hesse e Kriele, do patriotismo da Constituição de Steinberger e mais tarde de um crítico da jurisprudência dos valores como é Friedrich Müller e sua teoria estruturante. Talvez esse fenômeno tenha se repetido no Brasil, claro que em uma dimensão maior, pela demora de se incorporar a ideia de que Constituição é norma, problemática que, passados 30 anos, continua a mostrar as suas extremas fragilidades, face a presença das mais variadas teses subjetivistas, realistas, empiristas lato sensu, pelas quais “princípios são valores” e o protagonismo do judiciário não encontra limites nem na estrutura do texto constitucional.

[5] Ao lado dos predadores exógenos — política, moral e economia —, temos os predadores endógenos, internos, que são o poder discricionário dos juízes, o livre convencimento, a livre apreciação da prova, os diversos modos de enfraquecimento da coisa julgada, o uso precário da jurisdição constitucional, os próprios embargos declaratórios (que acabam sendo um remédio contra decisões mal fundamentadas), o modo como nós fazemos o filtro dos recursos e vamos trabalhando muito mais com efetividades quantitativas em vez de qualitativas. Esse conjunto de elementos vai enfraquecendo internamente o Direito.

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