As palavras importam (no direito brasileiro?)

Por que é tão difícil cumprir e aplicar uma lei no Brasil? Por que, afinal, é possível questionar aqui se uma lei vai “pegar” ou não? Um ensaio sobre a força das palavras no direito brasileiro, pelo jurista Lenio Streck.

por Lenio Streck

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Por que é tão difícil cumprir e aplicar uma lei no Brasil? Por que, afinal, é possível questionar aqui se uma lei vai “pegar” ou não?

Há casos em que isso fica quase desenhado. Vejamos.

Sabemos que a nova Lei 13.926/2019, apelidada pelo governo de “pacote anticrime”, estabeleceu que os juízes não podem mais decretar prisões preventivas de ofício. Só poderão fazê-lo a requerimento do Ministério Público, do assistente de acusação ou “por representação da autoridade policial”. A expressão “de ofício” foi expungida, deletada.

Pois na última sessão em que participou o ministro Celso de Mello na 2ª Turma do STF houve unanimidade, não só nas homenagens ao sainte, como para sufragar aquilo que o legislador disse. Já explicarei.

Nas palavras de Celso de Mello, a Lei 13.926 “ao suprimir a expressão ‘de ofício’, vedou de forma total e absoluta a decretação da prisão preventiva sem o prévio requerimento das partes ou por representação da polícia e do Ministério Público”. Ou seja, a partir do caso “deixa de ser lícita a atuação ‘ex officio’ do juízo processante em tema de privação cautelar da liberdade”.

Pronto. Por 5×0, o STF disse que onde não estava mais escrito x, devia-se ler exatamente “não há mais x”.

Ora, não advogo e nunca advoguei textualismo. Ou originalismo. Escrevi muito sobre hermenêutica, o fit (ajuste institucional entre regra e princípio, norma e exigências do caso concreto e do ordenamento em seu todo coerente), lancei livros, tudo justamente para superar essas falsas dicotomias.

A questão que fica é: por qual razão é tão difícil cumprir a lei em uma democracia? Por que isso teve que chegar ao STF, se era tão fácil? É mais ou menos como levar ao STF a prisão de alguém por um sabonete e “obrigar” o STF a conceder habeas corpus. Mas veja-se: tribunais da federação e o próprio STJ interpreta(va)m a retirada da expressão “de ofício” como irrelevante. Por isso, a interferência do Supremo Tribunal. Por 5×0.

O ponto é: Por que isso não “funcionou” antes, na origem e nos tribunais intermediários, que se encontram antes do STF? Essa é a pergunta que deve ser feita pela teoria do direito. E esse é um sintoma da falta de filosofia no direito no Brasil.

Uma prisão decretada de ofício é ilegal, disse o STF. Por quê? Porque é uma prisão decretada contra expresso texto legal. Óbvio do óbvio.

Na verdade, um caso como esse deveria ser um easy case, mesmo que, para quem foi preso, tenha sido um hard case. E pouco importa de que crime se tratou. O direito é do fato e não do autor.

Vejam o tamanho do imbróglio hermenêutico bem brasileiro: precisamos ir até a Suprema Corte para que saibamos que “não se pode decretar preventiva de ofício” porque a lei mudou. E que não se deu atenção à essa alteração. Permito-me dizer, em uma respeitosa análise hermenêutica: no Brasil, cumprir a Constituição, enfim, a legalidade constitucional (Elias Diaz) virou uma atitude revolucionária.

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Elias Díaz

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Seguindo a mesma linha interpretativa do STF no caso desse HC (n. 188.888), tem-se muito claramente que também o artigo 371 do CPC expungiu a expressão “livre”. Antes de 2015, dizia que “o juiz apreciará […] e indicará na decisão as razões da formação do seu livre convencimento”. Com o novo CPC, foi retirada a palavra “livre”. E isso não é pouca coisa. Assim, se o STF enfim disse que devemos ler x onde a lei diz que x, bom, será que enfim poderemos dizer que não há mais livre convencimento? O raciocínio é o mesmo.

Imaginem um originalista norte-americano interpretando esse texto do CPC. Olharia a exposição de motivos e lá encontraria claramente que o objetivo da emenda supressiva foi a de retirar o livre convencimento para evitar a apropriação da prova, o subjetivismo etc. “Intenção do legislador”, não é? Talvez isso seja mais controverso em questão constitucional lá nos EUA, onde se busca descobrir o que os pais fundadores ou os drafters queriam dizer. Aqui, não é assim tão difícil saber o que o legislador quis dizer. Está claro o que constou na justificativa da emenda feita pelo Relator Paulo Teixeira. Posso dizer como testemunha, porque fui eu quem elaborou a sugestão. Fredie Didier estava presente.

Embora a clareza do texto e da mens legislatoris, há muitos autores de direito dizendo que a expulsão da palavra “livre” nada quer dizer. A própria prática às vezes insiste em dizer isso. Pois é. No caso da prisão “de ofício”, os mesmos doutrinadores que negam a força da supressão da palavra “livre” diriam a mesma coisa? Diriam que, embora não mais existir a previsão de “preventiva de ofício”, isso não tem importância e os juízes podem continuar a prender de ofício? Quer dizer: Não pode mais prender de ofício, mas ‘não é bem assim’?

Como seria então? Que bom que temos a Suprema Corte para dizer que é bem assim quando é bem assim, embora ela — a Suprema Corte — por vezes assim não proceda.

Ao mesmo tempo, há que se dizer: que pena que precisamos da Suprema Corte para desvelar a obviedade do óbvio. Tão fácil. E tão difícil.

Numa palavra final: Há coisas que não deveriam ser tema de discussão. Deveriam gerar acordos fáceis. Todos nós sabemos o que está dito ali. É claro que eu reconheço a importância de disputas interpretativas em vários momentos do direito. Mas tudo tem limite. Se as autoridades competentes começam a inventar o sentido do texto de maneira completamente arbitrária, acabou a hermenêutica jurídica e aí a discussão é para a ciência política: podemos chamar isso de democracia? Lembro aqui de Gadamer:

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[ . . . ] para a possibilidade de uma hermene?utica juri?dica e? essencial que a lei vincule por igual todos os membros da comunidade juri?dica. Quando na?o e? este o caso, como no absolutismo, onde a vontade do chefe supremo esta? acima da lei, ja? na?o e? possi?vel hermene?utica alguma, “pois um chefe supremo pode explicar suas palavras ate? contra as regras da interpretac?a?o comum”. Neste caso nem sequer se coloca a tarefa de interpretar a lei, de modo que o caso concreto se decida com justic?a dentro do sentido juri?dico da lei. A vontade do monarca na?o sujeito a? lei pode sempre impor o que lhe parece justo, sem atender a? lei, isto e?, sem o esforc?o de interpretac?a?o. A tarefa de compreender e de interpretar subsiste onde uma regra estabelecida tem valor vinculante e irrevoga?vel.[*]

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Essa reflexão de Gadamer me inspirou para o Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Aprendi que, para que haja hermenêutica jurídica é preciso que haja democracia. E vice-versa, me permito acrescentar!

Enfim, deixo a pergunta para os leitores: em uma democracia saudável, é normal termos que fazer uma verdadeira guerra doutrinária e jurisprudencial, apenas para afirmar que a retirada das palavras “de ofício” e “livre” querem dizer que a decisão não é mais de ofício e a apreciação da prova não é mais livre?

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Hans-Georg Gadamer (Steve Pyke/Getty Images)

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Nota:

[*] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Me?todo I: Trac?os fundamentais de uma hermene?utica filoso?fica. Traduc?a?o de E?nio Paulo Giachini. 12. ed. Petro?polis: Vozes, 2012, p. 432.

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