por Lenio Luiz Streck
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A pureza do olhar e não do objeto olhado
Propalou-se nos meios jurídicos práticos e acadêmicos uma vulgata acerca do positivismo kelseniano. Ainda hoje (ou cada vez mais) se ouve nas salas de aula e em sentenças e acórdãos que Kelsen separa o Direito da moral e que preconiza a aplicação neutra da lei (ou da letra fria da lei). Nada mais falso.
Para compreender adequadamente a teoria kelseniana, é necessário insistir em um ponto: em Kelsen, há uma cisão entre Direito e Ciência do Direito que irá determinar, de maneira crucial, seu conceito de interpretação. Kelsen separa a Ciência do Direito da Moral. Como sempre ensinou Luis Alberto Warat, a pureza está no olhar e não no objeto olhado. Ou seja, a “pureza” em Kelsen é da Ciência do Direito (que descreve) e não do Direito (descrito). Bem observado, isso já pode ser percebido no título do seu livro que é a “teoria pura do Direito” e não a “teoria do Direito puro”. Por isso, a interpretação, em Kelsen, será fruto de uma cisão: interpretação como ato de vontade (aqui entra moral, política, ideologia, etc.) e interpretação como ato de conhecimento (neutralidade, pureza no olhar). Sendo mais claro: A interpretação como ato de vontade produz, no momento de sua “aplicação”, normas. Já a descrição das normas jurídicas deve ser feita de forma objetiva e neutral, a que Kelsen chamará de ato de conhecimento, que produz proposições.
Devido à característica relativista da moral kelseniana, as normas — que exsurgem de um ato de vontade (do legislador e do juiz na sentença) — terão sempre um espaço de mobilidade sob o qual se movimentará o intérprete. Esse espaço de movimentação é derivado, exatamente, do problema semântico que existe na aplicação de um signo linguístico — por meio do qual a norma superior se manifesta — aos objetos do mundo concreto, que serão afetados pela criação de uma nova norma.
Por outro lado, a interpretação como ato de conhecimento — que descreve, no plano de uma metalinguagem, as normas produzidas pelas autoridades jurídicas — produz proposições que se inter-relacionam de maneira estritamente lógico-formal. Vale dizer: a relação entre as proposições é, essa sim, meramente sintática. A preocupação do pesquisador do Direito não deve pretender, contudo, dar conta dos problemas sistemáticos que envolvem o projeto kelseniano de ciência jurídica, mas, sim, explorar e enfrentar o problema lançado por Kelsen e que perdura de modo difuso e, por vezes, inconsciente no imaginário dos juristas: a ideia de discricionariedade do intérprete ou do decisionismo presente na metáfora da “moldura da norma”.
No fundo, Kelsen estava convicto de que não era possível fazer ciência sobre uma casuística razão prática. Desse modo, todas as questões que exsurgem dos problemas práticos que envolvem a cotidianidade do Direito são menosprezados por sua teoria na perspectiva de extrair da produção desse manancial jurídico algo que possa ser cientificamente analisado. Aqui reside o ponto fulcral, cujas consequências podem ser sentidas mesmo em “tempos pós-positivistas”: um dos fenômenos relegados a esta espécie de “segundo nível” foi exatamente o problema da aplicação judicial do Direito. Não há uma preocupação de Kelsen nem com a interpretação, nem com a aplicação do Direito.
Com efeito, não é sem razão que a interpretação judicial é tratada como um apêndice em sua Teoria Pura do Direito no oitavo capítulo e apenas apresenta interesse para auxiliar a diferenciação entre a interpretação que o cientista do Direito realiza e aquela que os órgãos jurídicos proferem em suas decisões. Daí as conclusões de todos conhecidas: a interpretação dos órgãos jurídicos (dos tribunais, por exemplo) é um problema de vontade (interpretação como ato de vontade), no qual o intérprete sempre possui um espaço que poderá preencher no momento da aplicação da norma (é a chamada “moldura da norma”, que, no limite, pode até ser ultrapassada); mas a interpretação que o cientista do Direito realiza é um ato de conhecimento que pergunta — logicamente — pela validade dos enunciados jurídicos. Dessa forma, as proposições conhecidas pelo cientista do Direito visam tão somente a reduzir, nas palavras de Kelsen, a inevitável pluralidade de significações, de modo que possam fornecer o maior grau possível de segurança jurídica (der größtmögliche Grad von Rechtssicherheit).
É nesse segundo nível, o da aplicação, que reside o cerne do paradigma da filosofia da consciência. É também nesse nível — o da aplicação a ser feita pelos juízes — que faz morada a discricionariedade positivista. Kelsen jamais negou que a interpretação do Direito (e não da Ciência do Direito) está eivada de subjetivismos provenientes de uma razão prática solipsista. Para ele, esse “desvio” era impossível de ser corrigido. O único modo de corrigir essa inevitável indeterminação do sentido do Direito somente poderia ser realizado a partir de uma terapia lógica — da ordem do a priori — que garantisse que o Direito se movimentasse em um solo lógico rigoroso. Esse campo seria o lugar da teoria do Direito ou, em termos kelsenianos, da ciência do Direito. E isso possui uma relação direta com os resultados das pesquisas levadas a cabo pelo Círculo de Viena.
Kelsen tem um tributo epistemológico principalmente com Rudolf Carnap e isso fica muito claro quando escolhe fazer ciência apenas na ordem das proposições jurídicas (ciência), deixando de lado o espaço da “realização concreta do Direito”. Com efeito, para Carnap, apenas a sintaxe e a semântica eram as dimensões da linguagem que interessavam ao labor filosófico. A pragmática, lócus dos valores e da ideologia, estava excluída da filosofia. Kelsen, portanto, privilegiou, em seus esforços teóricos, as dimensões semânticas e sintáticas dos enunciados jurídicos, deixando a pragmática para um segundo plano: o da discricionariedade do intérprete.
Esse ponto é fundamental para podermos compreender o positivismo que se desenvolveu no século XX[1]. Trata-se de chamar a atenção desse positivismo normativista, não de um exegetismo que já havia dado sinais de exaustão no início do século passado. Indubitavelmente, Kelsen já havia superado o positivismo exegético, mas abandonou o principal problema do Direito: a interpretação concreta, no nível da “aplicação”. E nisso reside a “maldição” de sua tese. Não foi bem entendido quando ainda hoje se pensa que, para ele, o juiz deve fazer uma interpretação “pura da lei”. A sua pureza nunca esteve na lei e, sim, na ciência descritiva do Direito.
Na verdade, Kelsen é o corifeu radical do normativismo jurídico, porque concebe o Direito como um conjunto de normas jurídicas. Eleva a imputação ao seu mais alto grau. Reelabora, desse modo, a tradição positivista dominante até então. O Direito não está composto somente de leis (normas), mas é um conceito mais amplo. Por isso ele faz uma concessão, deixando de lado a preocupação com a interpretação e com a decisão, rendendo-se ao fato de que juiz também produz normas. Na teoria kelseniana isso se torna lógico e evidente: para manter a separação entre Direito e Ciência do Direito, ele tem de aceitar que a aplicação do Direito é um ato de política jurídica, envolvendo moral, política, ideologia, enfim, admitindo que, no plano da aplicação, o juiz faz um ato de vontade.
Leonel Severo Rocha acentua que Kelsen, ao contrário do que pensam seus leitores desavisados, por filiar-se à tradição alemã da Teoria do Conhecimento, assume como inevitável a complexidade do mundo em si. Para Kelsen, o social (e o Direito) são devidos às suas heteróclitas manifestações, constituídos por aspectos políticos, éticos, religiosos, psicológicos, históricos, etc. A partir desta constatação é que Kelsen vai procurar, assim como Kant, depurar essa complexidade elaborando um topos científico de inteligibilidade do Direito: uma coisa é o Direito, outra bem distinta é a ciência do Direito. O Direito é a linguagem-objeto, a ciência do Direito a metalinguagem: dois planos distintos e incomunicáveis[2].
É preciso compreender, em síntese, que, enquanto as demais teorias positivistas tratavam diretamente da lei, Kelsen deu um salto e preferiu tratar do discurso científico sobre a lei e o Direito. E isso só foi possível com os pressupostos neopositivistas, reconhecidos por autores como Luiz Alberto Warat e Norberto Bobbio. Nessa construção da ciência como metalinguagem reside a diferença fulcral de sua teoria em relação aos demais positivismos.
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Kelsen e o neopositivismo
Aqui é importante uma advertência, no que toca a afirmações doutrinárias de que Kelsen e sua TPD nada teriam a ver ou dever ao neopositivismo lógico ou ao empirismo contemporâneo/lógico. Já esclareci essa questão em outros livros, mormente no Hermenêutica e Jurisdição — Diálogos com Lenio Streck, Verdade e Consenso e no meu Dicionário de Hermenêutica[3]. De todo modo, vamos deixar isso ainda mais claro. Com efeito, acerca da influência do neopositivismo lógico na obra kelseniana, bem observa Warat — que fez a sua tese de titularidade baseada em Kelsen com o título A Pureza do Poder — possivelmente, se não o melhor trabalho sobre a TPD, um dos mais relevantes: “Kelsen sofre influência de uma dupla fonte de inspiração em suas ideias metodológicas vertebrais: Kant e o positivismo científico, respectivamente redefinidos pelo neokantismo e o neopositivismo lógico. A fusão de algumas ideias do kantismo com outras do positivismo determinou um processo dialético entre ambas as posturas, cuja síntese é a teoria pura do Direito”[4].
No mesmo sentido, Arthur Ferreira Neto, com apoio em Arthur Kaufmann e Winfried Hassemer, afirma que “mesmo que não se possa generalizar tal influência em relação a todas as vertentes do positivismo jurídico, não há dúvidas de que o Círculo de Viena representou um ambiente intelectual que causou grande impacto na formação da proposta positivista que veio a ser de moldada por Hans Kelsen”[5]. Tais constatações partem do fato de que os neopositivistas do Círculo de Viena — Círculo este que Kelsen inclusive frequentou — buscaram a construção de uma linguagem lógica ou de segundo nível (metalinguagem) que não fosse refém da subjetividade da linguagem natural (linguagem objeto). Nesse aspecto, fica evidente a influência que Kelsen sofre quando busca edificar a ciência do Direito em um segundo nível, libertando-a de todos os elementos que, nas suas próprias palavras, lhe são “estranhos”: a psicologia, sociologia, ética e teoria política. Com isso, o objeto da ciência jurídica passa a ser o Direito, que é, assim, a linguagem-objeto, descrito por uma metalinguagem, a Ciência Jurídica (esse é o lugar da teoria pura). O caráter lógico — outra característica marcante do Círculo de Viena — ganha importância para Kelsen na medida em que pode ser aplicado senão direta, indiretamente às normas jurídicas, pois “podem ser aplicados às proposições jurídicas que descrevem estas normas e que, por sua vez, podem ser verdadeiras ou falsas”[6]. Não há como desvencilhar a TPD do neopositivismo lógico. Mais do que isso, é impossível bem compreender a dimensão da TPD sem os pressupostos do neopositivismo lógico. Aliás, por que se chamaria “neopositivismo”? E por que Kelsen, mesmo superando o positivismo exegético, chamaria a sua teoria de “positivismo”? Porque se trata de um positivismo redefinido, exatamente a partir da atmosfera criada (também) pelo movimento do neopositivismo lógico. Assim como os neopositivistas superaram o positivismo científico, de modo similar, Kelsen superou o positivismo jurídico clássico.
Nesse contexto, é importante destacar que, embora Kelsen tenha dito que não pertenceu e não teve influência do Círculo de Viena, trata-se de um esclarecimento que fez em um dado contexto e em uma carta (trata-se de uma resposta à Henk Mulder, em maio de 1963). No entanto, nessa mesma carta, Kelsen reconhece que os escritos de Philipp Frank e Hans Reichenbach sobre a causalidade influenciaram, sim, sua visão. O teor da carta é encontrado em texto de Clemens Jabloner que afirma que, embora as ideias de Kelsen não estivessem livres da metafísica, o jurista de Viena seguiu uma tendência que pode se encaixar na teoria neopositivista lógica[7]. E isso é evidente. No capítulo II de Teoria Pura do Direito, ao tratar da moral, Kelsen reconhece que existem normas que “regulam a conduta dos homens”, que atuam ao lado das normas jurídicas. Tais normas fazem parte da Moral, que deve ser alvo de descrição da Ética. Então, para Kelsen, assim como o Direito (linguagem objeto) deve ser descrito pela ciência do Direito (metalinguagem), a moral é alvo de descrição pela Ética. E é justamente nesse ponto que surge a pequena divergência kelseniana com o Empirismo lógico. Com efeito, em nota de rodapé[8] Kelsen critica Schlick pelo fato de que este interpreta, de forma equivocada, a norma como reprodução de um fato de realidade. Ou seja, para Schlick a própria valoração de uma norma depende necessariamente do “empiricamente verificável”. Depende, portanto, de um fato. Kelsen tem, sim, uma pequena divergência com o nepositivismo pelo fato de que as normas jurídicas não se encontram no âmbito do ser, mas sim no dever-ser. Mas isso apenas reforça a temática. Por isso que Jabloner acerta ao afirmar que Kelsen não está livre da metafísica. A norma é, para Kelsen, o sentido objetivo (significação) ligado a um ato (de vontade). Mas, nesse ponto está a grande questão que passa despercebida por aqueles que negam o influxo neopositivista na TPD: o ato de vontade encontra-se sempre no âmbito do ser, e não do dever-ser. Eis a dependência do “empiricamente verificável”. Observe-se as palavras do próprio Kelsen: “a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser”[9]. Ou seja, o sentido desse ato de vontade — a norma — passa ao dever-ser, mas o ato de vontade em si encontra-se, para Kelsen, no ser. Sem a dicotomia ser e dever-ser do neokantismo (apropriada pelo neopositivismo), Kelsen não teria conseguido trabalhar a cisão “ciência do direito-moral” (eis a questão descrição-prescrição).
Assim, o projeto da TPD dirá que a Ética, assim como a ciência jurídica “tem por objeto normas do dever-ser como conteúdos de sentido, e não os atos da ordem do ser insertos no nexo causal, cujo sentido são as normas”. Entretanto, arremata Kelsen, “isso não significa de forma alguma que as normas, como na Ética de Kant sejam comandos sem um comandar, exigências sem um exigir, isto é, normas sem atos que as ponham”[10]. Veja-se assim mais uma vez a dependência do empirismo. Alguém precisa pôr (colocar) algo. O ato de vontade é o positivo, aqui. A ciência jurídica então passará a se preocupar com o sentido deste ato posto através de um ato de vontade, que é causalidade. Com isso, Kelsen reconhece abertamente — na ética — o mérito do neopositivismo: “A tentativa do positivismo lógico de representar a Ética como ciência empírica de fatos provém claramente do legítimo empenho de a subtrair ao domínio da especulação metafísica. Mas tal empenho já é bastante respeitado quando as normas que formam objeto da Ética são conhecidas como conteúdos de sentido de fatos empíricos postos pelos homens no mundo da realidade, e não como comandos de entidades transcendentes. Se as normas da Moral, assim como as normas do Direito positivo, são o sentido de fatos empíricos, tanto a Ética como a ciência jurídica podem ser designadas como ciências empíricas — em contraposição à especulação metafísica — mesmo que não tenham por objeto fatos mas sim normas”[11].
Veja-se que, assim, Kelsen reconhece no positivismo lógico as vantagens de um afastamento de especulações metafísicas. É isso que Kelsen traz para a ciência do Direito, que é a metalinguagem do Direito: “A ciência jurídica permanece dentro do domínio da experiência na medida em que apenas tem por objeto normas que são estabelecidas por atos humanos e se não refere a norma procedentes de instâncias supra-humanas transcendentes, isto e, na medida em que exclui toda a especulação metafísica”[12]. Com tudo isso, ficam pouco mais do que evidentes pelo menos três grandes influências do neopositivismo na teoria kelseniana, a saber (i) a cisão entre linguagem objeto e metalinguagem; (ii) a aposta em critérios lógicos na construção da metalinguagem e, por fim, (iii) o afastamento de toda “especulação metafísica”, tendo como base sempre o empírico. Ademais, Mario Losano[13] ainda aponta que a ideia de que a ciência constrói a unidade do seu objeto, invariavelmente fundamentando o sistema em um princípio, poderia ser considerada um sinal da influência que o Círculo de Viena exerceu sobre Kelsen, em especial, por Otto Von Neurath.
Com isso, é correto dizer — como sempre fiz, junto com Warat, Leonel Rocha[14] e tantos outros autores, inclusive Bobbio e Ferrajoli — que Kelsen sofreu sim a influência do Círculo de Viena. Poder-se-ia, talvez, dizer que Kelsen deu “toques” neokantianos ao neopositivismo lógico e o fruto disso é a TPD. Vale ressaltar: Jamais se disse que Kelsen é um neopositivista na integralidade, mas, sim, que sofreu fortes influências do neopositivismo lógico. Um estudo muito importante acerca dos pontos que unem a TPD e o neopositivismo lógico também podem ser encontrados em erudito artigo de Vladimir de Carvalho Luz, intitulado “Neopositivismo e Teoria Pura do Direito — Notas sobre a influência do verificacionismo lógico no pensamento de Hans Kelsen”[15]. No mesmo sentido Manoel da Nave Pires, em excelente Dissertação intitulada Tensões no Liberalismo de Kelsen aponta nesse sentido. Vale a pena ainda conferir Juan Cofré[16]. Desse modo, penso que argumentar em sentido contrário baseado no fato de que Kelsen não admite tal questão abertamente não parece ser um monumento à melhor leitura da questão. Trata-se de idêntica discussão que se faz entre Dworkin e Gadamer. Há quem insista na tese de que Gadamer não exerceu influência em Dworkin.
Além do mais, tendo Kelsen participado ou sofrido influência do Círculo de Viena, a pergunta que fica é: no que essa circunstância histórica altera o modo da melhor compreensão da TPD e o do papel exercido por essa teoria? Talvez a insistência nesse ponto de vista possa colaborar para uma compreensão incorreta da obra do mestre de Viena. Isto porque os melhores e mais importantes interpretes da obra TPD são uníssonos em apontar a relação umbilical entre o positivismo advogado por Kelsen e os diversos elementos que ele capturou do neokantismo e do empirismo contemporâneo/lógico. Ou seja, importa, mesmo, é a melhor interpretação a ser feita sobre o pessimismo kelseniano e seu relativismo moral, reconhecido amplamente por autores como Philippe Chanial[17], em relação ao sujeito da modernidade e às impossibilidades de falar do Direito — sob uma ótica positivista — desde o lugar contaminado pela ideologia e valores, que era o caso do positivismo cientifico que teve que se reciclar com o nome de neopositivismo lógico. Do mesmo modo que os neopositivistas chegaram à conclusão de que não era mais possível descrever os dados do mundo face à poluição semântica, Kelsen igualmente se deu conta de que o positivismo clássico-jurídico não dava conta da relação ser e dever-ser. Os neopositivistas resolveram seu problema com a construção de linguagens lógicas, aptas a descrever objetivamente os dados do mundo; Kelsen, para continuar a ser positivista, teve que criar um “andar de cima” no Direito, cindindo a Ciência Jurídica da moral, sob o preço de não cindir Direito e moral. Dessa forma, Kelsen jamais pregou a vinculação do juiz à “literalidade da lei” conforme sustenta o senso comum teórico dos juristas”
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Kelsen e a metaética
Para separar o joio do trigo, penso ser importante analisar Kelsen no plano da metaética. E considero relevante se disso podemos tirar proveito para situar as diversas teorias do direito. Importante para separá-las entre aquelas que acreditam em alguma objetividade e/ou verdades e as céticas ou meramente retóricas. É a diferença entre cognitivismo e não cognitivismo, conceito muito bem trabalhado por Arthur Ferreira Neto[18].
Começando pelo mais fácil, não-cognitivistas seriam aquelas correntes ou posições céticas. Por elas, não é possível exercer controle racional de decisões. Direito, por exemplo, será aquilo que a decisão judicial disser que é. E isso resultará de um ato de verificação empírica. Um ato de poder. E de vontade. Direito vira fato, de novo. Uma nova forma de positivismo. Para essa postura, decisões jurídicas sempre podem ser variadas. Portanto, para os realistas jurídicos ou empiristas, não há resposta correta. Tampouco existe, para eles, a melhor ou uma resposta melhor que outra. Uma postura não-cognitivista — um bom exemplo são as posturas realistas jurídicas — não concebe a possibilidade de existir nenhuma forma de realidade moral objetiva; se aproxima do relativismo; não é possível, por elas, dizer que uma coisa é ruim em qualquer lugar; somente a dimensão empírica é capaz de influenciar a formação do direito. Real e existente é aquilo que o agente pode manejar e dispor. O decisionismo é uma forma não-cognitivista. Niilismo, do mesmo modo é uma forma não-cognitivista, assim como uma corrente chamada emotivista.
Um realista moral é diferente de um realista-empirista jurídico. O primeiro acredita que valores e direitos existem objetivamente. O segundo flerta sempre com o ceticismo. Com o relativismo moral. Mas vamos para a definição do cognitivismo no Direito: acredita na possibilidade controlar decisões judiciais. Acredita que é possível que um discurso moral seja verdadeiro ou possa ser verdadeiro. Dworkin é um típico cognitivista. Cognitivismo quer dizer que é possível fazer juízos de certo e errado sobre um determinado agir e que estes juízos podem ser transmitidos a outras pessoas. Há uma crença em um grau de objetividade. Acreditar em resposta corretas é um modo de se dizer cognitivista.
Fazer essa distinção é relevante, talvez não tanto para a Crítica Hermenêutica do Direito — que de há muito trabalha com critérios para a verificação da correção (ou não) de uma decisão judicial sem nunca ter necessitado adentar no debate cognitivismo vs. não-cognitivismo da metaética —, mas para que possamos identificar determinados discursos. É bom saber que um decisionista não se importa com juízos de certo ou errado, mesmo que ele diga que sim. Mas, se decide como quer, naquilo que, em seu íntimo acha justo, agirá de forma não-cognitivista. Se alguém se diz pragmático no direito, querendo assim dizer que cada decisão deve levar em conta só aquele caso, só aquele problema, está (na prática) diante de um não-cognitivista, porque é uma espécie de nominalista ou neonominalista.
Veja-se que mobilizamos as classificações da metaética mais como pontos de partida para um debate a ser travado no direito. E não apenas sobre o direito. Por que isto? Porque precisamos mapear nossos pressupostos sobre existência, cognoscibilidade e veracidade de juízos normativos, mas sem deixar de discutir como isso se sustenta na prática jurídica. Certas posições intrincadas até se sustentariam metaeticamente, ou na filosofia moral, mas exporiam o jurista ao ridículo se continuasse a falar em direito depois de se comprometer com elas.
Portanto, os conceitos de cognitivismo e não cognitivismo também são úteis para mostrar que uma dogmática jurídica que não se preocupa com critérios ou de buscar discursos de verdade, é igualmente não-cognitivista. Bingo. Para mim, não há saída para o Direito a partir da adoção de posturas não-cognitivistas. Pode-se até adoçar as teses não-cognitivistas. Mas é impossível esconder seu caráter cético. Vou mais fundo nisso. Para dizer que, no Brasil, autores como Luis Roberto Barroso, Ana Paula de Barcellos, Daniel Sarmento, para falar apenas destes, são não cognitivistas, nesse exato sentido. Aqui o conceito de não cognitivismo do Arthur Ferreira Neto se aproxima ao que o Claudio Michelon diz sobre as posturas realistas (jurídicas) e os positivismos descritivos: são as posturas segundo as quais ou bem valores de verdade não podem ser atribuídos a qualquer enunciado sobre o direito ou bem valores de verdade são irrelevantes no que diz respeito aos enunciados jurídicos. Por isso, no Brasil a dogmática jurídica está sempre mais próxima do não cognitivismo ético, porque suas respostas são de acordo com o que pensa o autor. Logo, nisso não reside qualquer critério de coerência e integridade e tampouco a necessária preocupação com a verdade. Como diz Ernildo Stein, quem nos protege dos subjetivismos? Quem nos protege dos pragmatismos?
Vejamos mais. Não-cognitivismo quer dizer que o intérprete não se preocupa com respostas verdadeiras. E isso representa uma autocontradição. Transforma o direito em um jogo de poder. É Kelsen redivivo, que transferiu o conteúdo do Direito para um ato de vontade. No Supremo Tribunal Federal, o Ministro Marco Aurélio encampa essa postura não cognitivista, ao dizer que a interpretação é um ato de vontade. Que é um ato de poder, ao fim e ao cabo. Mas isso não quer dizer que, no plano da identificação do que seja direito, Kelsen não seja também cognitivista. Só que ele não é um cognitivista moral. É um cognitivista epistêmico, como veremos a seguir. Afinal, para ele, há uma hierarquia jurídica a ser observada. Mas, ao mesmo tempo, o Kelsen cientista, ao separar a ciência jurídica da moral, é um não-cognitivista.
No plano de um estudo metaético, Kelsen pode ser considerado um não-cognitivista no nível da política jurídica (nível da aplicação do Direito pelos juízes, em que se coloca no nível similar ao empirismo jurídico). Isto porque, no ato de interpretação de um órgão aplicador, a definição de sentido vincula-se a um ato de vontade suspenso no espaço e no tempo. Essa definição, diz Kelsen, é produto de um ato de vontade. E Ferraz Jr complementa: “Trata-se de um ‘eu quero’ e não de um ‘eu sei’. E sua força vinculante, a capacidade de o sentido definido ser aceito por todos, repousa na competência do órgão (que pode ser o juiz, o próprio legislador quando interpreta o conteúdo de uma norma constitucional, as partes contratantes, quando num contrato interpretam a lei etc.). Havendo dúvidas sobre o sentido estabelecido, recorre-se a uma autoridade superior até que uma última e decisiva competência o estabeleça definitivamente. A sequência é de um ato de vontade para outro de competência superior”[19].
Já no nível da ciência jurídica, ele é um cognitivista epistêmico, porque acredita na possibilidade de conhecermos aquilo que as normas jurídicas prescrevem. Entretanto, por não acreditar que elas são boas ou ruins, justas ou injustas, Kelsen acaba sendo um não-cognitivista ético no nível da ciência jurídica também. Observe-se que norma jurídica, para Kelsen, é o sentido objetivo de um ato de vontade dirigido à conduta de outrem. É o dever ser que dá sentido ao ser. Não há mal em si, ele diz. Matar não é bom, nem ruim. É apenas proibido ou permitido. Eis aí, no plano da meta-ética, o não-cognitivismo de sua teoria pura. Puramente não-cognitivista.
Já a norma fundamental proposta por Kelsen é o fundamento do seu cognitivismo epistêmico[20]. Esse cognitivismo — epistêmico — está assentado em uma imputação, e não de uma relação de causalidade. Para ingressar no ordenamento, uma norma tem de passar por esse filtro. Mas uma vez incorporado como Direito, já não haverá juízo moral por parte do cientista. Como a própria realidade já é um conglomerado entre descrição e prescrição (ex: uma briga entre duas pessoas não é apenas o braço em direção ao rosto do outro), Kelsen fugiu da realidade para construir uma ciência jurídica. Isto é, construiu seu próprio objeto de conhecimento – a ciência jurídica.
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Considerações finais
Kelsen escreveu a Teoria Pura do Direito em 1934. Como se pôde observar nesse curto ensaio, trata-se de uma obra construída sob densas e sofisticadas bases filosóficas. Verificou-se que Kelsen teve pesados influxos do neopositivismo lógico além dos neokantianos. Fora isso, em Kelsen é possível se verificar três níveis de cognitivismo, a saber, um não-cognitivismo ético no plano da linguagem objeto (Direito) e no plano da metalinguagem (ciência do Direito); e um cognitivismo epistêmico no âmbito da ciência do Direito.
Por isso que — ainda e sempre — deve-se revisitar a Teoria Pura do Direito. Muitos positivismos contemporâneos como, por exemplo, o positivismo exclusivo de Scott Shapiro ou o positivismo inclusivo de Jules Coleman acabam se tornando teorias deficientes se comparadas ao normativismo kelseniano. Até hoje, pela falta dos influxos do neopositivismo, nenhum autor positivista conseguiu construir um nível descritivo de forma tão sofisticada como Kelsen. E quem dúvida disso deve-se lembrar que o pai do positivismo anglo-saxão, Herbert Hart, admite em um ensaio que a obra de Kelsen é de extrema complexidade e que muitos pontos que ali estão não foram por ele compreendidos[21].
À evidência que a Crítica Hermenêutica do Direito tem muitas restrições com o normativismo kelseniano. Por outro lado, depois de 1934 o positivismo jurídico tomou um rumo muito mais sofisticado. Por isso que ainda é preciso estudar Kelsen pelo fato de que até hoje nenhum positivista conseguiu construir algo mais consistente que ele e; sempre é preciso estar atento ao normativismo kelseniano, pelo fato de que é ele que permeia a dogmática jurídica, quase que de forma homogênea.
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Notas:
[1] NOGUEIRA DIAS, Gabriel. Positivismo jurídico e a teoria geral do Direito: na obra de Hans Kelsen. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
[2] ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. 2. ed. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2003, p. 72
[3] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e jurisdição: diálogos com Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2017; STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6. ed. ver. e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2017; STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017.
[4] WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao Direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995, p. 131.
[5] FERREIRA NETO, Arthur. Metaética e a fundamentação do direito. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015, p. 225-226.
[6] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, cap. III.
[7] JABLONER, Clemens. Kelsen and his Circle: The Viennese Years. European Journal of International Law. n. 9, 1998. p. 378-380.
[8] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, nota n.º 01 do capítulo II.
[9] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 6.
[10] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, nota n.º 01 do capítulo II.
[11] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, nota n.º 01 do capítulo II.
[12] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, nota n.º 07 do capítulo III.
[13] LOSANO, Mario. Sistema e Estrutura no Direito, volume 2: o Século XX. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p.53.
[14] ROCHA, Leonel Severo. Matrizes Teórico-Politicas da Teoria Jurídica Contemporânea. Sequência (Florianópolis), Florianópolis, v. 24, p. 10-24, 1992.
[15] LUZ, Vladimir de Carvalho. Neopositivismo e Teoria Pura do Direito – Notas sobre a influência do verificacionismo lógico no pensamento de Hans Kelsen Revista Sequencia n. 47, 2003, pp. 11-31.
[16] COFRÉ, Juan. Kelsen, el formalismo y el “Círculo de Viena”. Revista de Derecho da Universidad de Valdivia – Chile, Vol. VI, diciembre 1995, pp. 29-37.
[17] CAILLÉ, Alain; LAZZERI, Christian; SENELLART, Michel (Org). História Argumentada da Filosofia, Moral e Política: a felicidade e o útil. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004, p. 640.
[18] FERREIRA NETO, Arthur. Metaética e a fundamentação do direito. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015, passim.
[19] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2010, p. 228.
[20] A análise dos níveis de cognitivismo em Kelsen também é feita por Arthur Ferreira Neto, com algumas distinções da análise aqui proposta. Ver FERREIRA NETO, Arthur. Metaética e a fundamentação do direito. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015, p. 237 e ss.
[21] Nas palavras de Hart: “In November 1961 I had the enjoyable and instructive experience of meeting Hans Kelsen and debating with him at the Law School of the University of California in Berkeley […] it made me understand better the point of certain Kelsenian doctrines which had long perplexed me, even if it did not finally dispel my perplexities. I am reluctant to believe that I am alone in finding these difficulties in Kelsen’s work”. HART, Herbert. Kelsen visited. Essays in jurisprudence and philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1983, p. 286.
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