por Alysson Augusto
Uma parceria com o Livres
Em seu livro Sapiens, o autor israelense Yuval Harari demonstra que o marco de diferenciação entre a espécie humana e as demais espécies animais está no domínio da linguagem e da articulação comunicativa. Embora certas revoluções sejam marcos da história humana, como há 10.000 anos foi a revolução agrícola e, mais recentemente, a revolução científica, foi justamente a revolução cognitiva que permitiu um descolamento tamanho do homo sapiens da sua condição de apenas mais um animal marginalizado no mundo, um animal sem relevância global. Outros humanos, como os neandertais e os erectus com os quais convivemos em nossa origem evolutiva, foram varridos de sua existência, restando ao gênero homo o poderio que os sapiens adquirimos com a capacidade sem precedentes de falarmos sobre coisas que não existem. Embora os neandertais pudessem ser mais fortes, maiores e mesmo ter cérebros mais avantajados, foi a linguagem que permitiu aos sapiens agregar-se em grupos enormes, formando tribos racionalmente articuladas e impondo seus interesses a partir da união entre seres individualmente fracos, mas coletivamente fortes. Este foi o começo da dominação humana sobre a Terra.
Por força evolutiva, nos últimos 70.000 anos as bases cognitivas humanas não têm sido tão diferentes — ao menos não o suficiente a ponto de certos traços genéticos relevantes serem perdidos. Para historiadores e mesmo para filósofos, a história do pensamento é irrefutavelmente relevante para entendermos o nexo causal entre a realidade em que vivemos e as razões que possibilitam alguma coerência sistêmica nessa realidade. Como pode sequer haver tripartição de poderes para regular uma sociedade plural, democrática e complexa, agregando milhões e milhões de sapiens, se não devido ao fato da revolução cognitiva? Afinal, existe algo como “justiça” na concretude da realidade, ou essa é uma abstração realizada devido a um processo evolutivo extremamente lento que nos fez entender que nossa sobrevivência enquanto animais sociais depende da nossa racionalidade, da nossa capacidade de falarmos sobre coisas que não existem?
Para nós, liberais, certos princípios são reguladores de nossos juízos sobre o mundo. Ora, sequer é possível dizer que somos liberais sem que coloquemos a ideia de liberdade num patamar especial, num nível de sacralidade. A violação da liberdade facilmente é interpretada como uma violação das melhores aspirações da sociedade livre que desejamos. De fato, existe todo um background educacional (e talvez histórico) que permite que alguém se entenda liberal. Deirdre McCloskey, economista e historiadora reconhecida pela defesa de um liberalismo por inteiro, acredita que a melhor resposta disponível para explicar o grande enriquecimento das nações nos últimos séculos não passa pela interpretação conservadora, pela visão marxista ou pela mera mudança institucional, mas pela ascensão de uma mentalidade favorável às liberdades individuais, que tornou a inventividade humana cada vez mais premente, resolvendo problemas sociais de modo descentralizado e conforme as demandas específicas de cada sociedade. Tal compreensão trata-se de um liberalismo por inteiro pois contempla não apenas os números frios da economia, como também os corações quentes de seres humanos reais, com sonhos e metas muitas vezes egoístas, ajustando seus interesses aos interesses alheios, pois mergulhados em uma mentalidade de liberdade (minha e do meu semelhante, uma liberdade comum), algo tipicamente iluminista, humanista e liberal.
Ainda assim, a questão que permeia todas as discussões abstratas continua: existe algo como “liberdade” no mundo concreto? Não seria isso uma simples abstração que serve de mote para a organização social, como se estivéssemos fazendo referência a esse termo para garantir certa estabilidade coletiva e coerência comportamental nos ânimos individuais?
Este tipo de questionamento é ilustrado por psicólogos como Jonathan Haidt, o qual parte do fato de que, enquanto espécie, evoluímos por meio de conflitos tribais, e nossa articulação em grandes grupos muito dependeu da abstração possível graças à nossa especial cognição: lendas, mitos, religiões, deuses dos mais variados… Tantos são os exemplos de abstração para muito além do mundo concreto que permitiram a organização social. Para Haidt, nossa capacidade de “girar” em torno de objetos e princípios tidos como sagrados dá coesão grupal, de modo que as ideias e crenças que adotamos moldam o mundo à nossa volta, uma vez que estamos inclinados a concretizar as aspirações abstratas que tomamos como verdade.
De fato, recentemente temos visto exatamente este tipo de comportamento evolutivo e, portanto, tribal que nos acompanha desde as nossas origens. A política nacional brasileira, diante do fato de que somos especialmente polarizados entre vermelhos e amarelos, tem servido de experimento curiosíssimo para sociólogos e cientistas políticos, que precisam interpretar diferentes fenômenos sociais para jogar alguma luz explicativa sobre, por exemplo, por que certa manifestação foi um sucesso ou por que tal político fisiológico tornou-se um mito brasileiro. Entretanto, a carga evolutiva que possibilita sociedades complexas tem sido atualmente campo para reflexão de psicólogos cognitivos e evolutivos, menos preocupados em explorar o fenômeno social a nível macro, e mais preocupados em identificar os fundamentos micro, dispostos em nossas inclinações psíquicas e que tornam nossos comportamentos enquanto sociedade relativamente previsíveis diante de polêmicas, corrupções, imoralidades das mais variadas e conflitos inter-tribais. Haidt chega mesmo a mapear perfis políticos a partir de teorias psicológicas como a chamada Big Five, mostrando que é possível saber quando uma pessoa será “de esquerda” ou “de direita” a partir de suas configurações psíquicas.
Outro psicólogo de renome a buscar entender e superar a mentalidade tribal é Steven Pinker. Em seu livro O Novo Iluminismo, o autor nos leva a rechaçar o alarmismo dos noticiários sensacionalistas e os apontamentos de intelectuais pessimistas que acreditam que o mundo está em declínio. Conforme Pinker, os dados disponíveis nos obrigam a crer que o mundo tem melhorado em tantas e variadas formas que, talvez, a única explicação plausível para a crença de que o mundo está em declínio se dê no contraste entre a natureza das notícias e a natureza da nossa cognição – se querem ser lucrativos, os portais de notícias precisam da atenção do público, e nosso interesse é mais facilmente despertado com desastres e calamidades do que com notícias positivas sobre como o mundo tem melhorado (e isso é evolutivamente compreensível, pois nossa sobrevivência sempre dependeu de nossa sensibilidade a desastres, o que muito nos ajudou a identificá-los para evitá-los). Para Ray Kurzweil, renomado futurista e diretor de engenharia da Google, nossa percepção de que o mundo está cada vez pior deriva do fato de que nosso acesso à informação está muito maior, e se séculos atrás povos inteiros eram dizimados, hoje em dia qualquer desastre de menor escala é noticiado globalmente e vivenciado pelas telas de nossos smartphones. Nossa visão sobre a realidade está deturpada, e não por culpa da parcialidade da grande mídia ou das fake news que buscam nos manipular; estamos inseridos num contexto totalmente inédito na história humana, no qual nossas inclinações evolutivas não conseguem acompanhar a evolução artificial da comunicação e da tecnologia numa sociedade global. A solução passa pela busca de um entendimento amplo sobre quem somos e o que podemos fazer a respeito das discrepâncias entre nosso lado mais primitivo e as constantes inovações do mundo contemporâneo.
E, incrivelmente, todo o aparato cognitivo que tem nos permitido construir o mundo em torno de aspirações abstratas a fim de resolver problemas concretos é, exatamente, o mesmo aparato que nos capacita distinguir quando estamos sendo guiados por nossos impulsos e quando a razão abstrata está imperando em nosso comportamento. Em outras palavras, é justamente poder abstrair sobre o mundo que nos torna capazes de abstrair que estamos abstraindo sobre o mundo. Essa meta cognição (ou seja, nossa capacidade de pensar sobre o pensamento) nos permitiu ir além da regulação coercitiva de um grande número de indivíduos; nos permitiu aplicar a regulação comportamental não mais apenas a nível da sociedade, mas a nível da autonomia, a nível do próprio pensamento. Nomes clássicos do pensamento ocidental, como Aristóteles, entenderam a necessidade de pensarmos sobre como pensamos, buscando então o que seria um pensamento correto e límpido. Aí nasceu a lógica, e a lógica ganhou vida própria ao longo dos séculos, de modo que hoje falemos em diferentes lógicas para resolver diferentes problemas, inclusive a nível computacional e quântico. Atualmente, muitos problemas extremamente relevantes para nós, sapiens, não são mais de ordem prática, e dependem de uma elite intelectual e científica.
Estes diferentes tipos de feitos inéditos têm nos permitido identificar, com relativa facilidade, quando outros indivíduos estão cometendo erros intencionais de raciocínio, ou mesmo quando estão sendo vítimas de atalhos mentais convenientes para a manutenção de suas crenças. Na lógica, costumamos falar em falácias, que são raciocínios errados que aparentam ser verdadeiros, e justamente por aparentarem é que podem ser utilizados de modo intencional por políticos demagogos e com tribos bem definidas: seu adversário vai falar? Diga que ele não é honesto (prepare o terreno para tornar o público mais suscetível às suas ideias, e ataque a autoridade de seu adversário ao invés de seu conteúdo — envenenamento do poço); ele defende a reforma da previdência? Diga que essa reforma fará muitos aposentados morrerem de fome (apele ao medo do contribuinte como se isso fosse sequer um argumento— apelo à consequência); seu adversário é contra o desarmamento? Diga que se armas forem liberadas as pessoas vão se matar nas ruas (como se uma consequência absurda fosse necessariamente derivar de um fato isolado — ladeira escorregadia).
A ilustração das falácias acima ganha ainda mais poder com o que se sabe atualmente sobre erros de raciocínio não a nível lógico, mas a nível psíquico. Os chamados vieses cognitivos permitem que o político demagogo ilustrado tenha sucesso, levando os ouvintes a decisões irracionais. Por exemplo, se o ouvinte já compartilha das mesmas crenças do político demagogo, o viés de confirmação operará com força, confirmando suas crenças a partir de qualquer coisa que tenha sido dita por tal autoridade política. O político do outro time refutou a crença do ouvinte? Então o viés de backfire effect fará o ouvinte reagir ao que foi dito como se tal refutação, na verdade, apenas fortalecesse suas crenças. Enfim, a lista de vieses cognitivos talvez seja tão grande quanto as de falácias lógicas.
Numa compreensão evolutiva destes processos, podemos entender que tais falácias e tais vieses são tribal e psicologicamente úteis, pois tanto mantém a coesão social (ainda que em torno de falsidades) como também geram conforto psíquico no indivíduo que sofre ao ter suas crenças confrontadas. Psicólogo, filósofo e neurocientista em Harvard, Joshua Greene traz insights correlatos em seu livro Tribos Morais, reconhecendo o papel fundamental do antagonismo para a manutenção de nossos valores e interesses enquanto grupos, o que com toda certeza permitiu o florescimento da nossa espécie, tal como descrito por Harari. Entretanto, o surgimento acelerado das megalópoles fez chocar diferentes pessoas com diferentes backgrounds éticos e culturais, de modo que a resolução de conflitos numa democracia muitas vezes soe como a imposição dos valores de uma tribo sobre outra, causando constante indignação nos lados que se sentem injustiçados ou diminuídos, e polarizando ainda mais o debate público. Como nossas crenças e valores são compartilhados apenas por nossa tribo moral, há certa coesão social quando o conflito se dá entre “eu contra nós” (ou seja, entre eu e meu próprio grupo), pois os valores comuns facilitam a absorção de críticas e o reparo de prejuízos; Entretanto, a verdadeira dificuldade reside nos conflitos de tipo “nós contra eles”, ou seja quando os mesmos valores já não são mais compartilhados pelos diferentes lados. Aqui, nossas emoções refletem nossos valores tribais e o conflito muitas vezes se torna insolúvel. Para Greene, a complexidade do mundo contemporâneo, que faz muitos entenderem disputas políticas como uma guerra cultural, exige soluções controladas pelo raciocínio consciente, ponderado e reflexivo – o que é uma poderosa antítese de nossas inclinações tribais.
Existe aí, portanto, um problema de natureza humana, um problema que é político mas que é, também, anterior à própria política, uma vez que fornece as bases pelas quais assistimos o que assistimos no cenário nacional (e, por certo, global). A pergunta aqui feita não é fácil de responder, e talvez exija um novo ser humano e uma nova revolução cognitiva: afinal, será possível superar a política tribal? Se um palpite for permitido, talvez não pela própria política. Assim como nossos problemas a nível de sobrevivência foram superados graças à revolução cognitiva, talvez a resposta continue a mesma: precisamos de mais doses de racionalidade, e desta vez na própria abstração do debate público. Uma racionalidade tipicamente iluminista.
Enquanto a revolução cognitiva nos deu a capacidade de organizar sociedades cada vez mais complexas em torno de mitos e com um senso de justiça tribal, o iluminismo nos aproximou do mindset necessário para o enriquecimento econômico e cultural, amparados numa cultura cada vez mais secular e humanista. O liberalismo, nos fazendo “girar” em torno das mais variadas ideias da liberdade, evidenciou a possibilidade de não sermos mais meros gados tribais, cultivando nossa própria identidade em torno de nossas necessidades e aspirações, apaziguando interesses conflituosos a partir de fundamentos éticos e jurídicos comuns, como autonomia e propriedade. Se a paz entre as nações está ancorada numa prática generalizada de liberdade econômica – como bem apontou Milton Friedman ao contar a história de um simples lápis –, talvez a paz entre as tribos dependa de um campo menos amplo em extensão geográfica, mas profundamente mais profícuo em termos de superação das nossas inclinações mais primitivas, que é a busca de uma mentalidade pós-tribal, que entenda a necessidade de um entendimento analítico sobre a realidade, adequando as diferentes interpretações de mundo aos dados disponíveis, guiando nossas condutas em comum acordo com a pluralidade, respeitando os limites racionais e razoáveis impostos pelas instituições, com abertura à criatividade inventiva e, acima de tudo, condicionando nossas ações pela ponderação e o calmo entendimento – algo que virá pela educação de valores meta-tribais, que sejam comuns aos povos por apregoarem a possibilidade da convivência pela diferença, ancorada na mais igual e distribuída liberdade.
Alysson Augusto é licenciado e mestrando em filosofia pela PUCRS.