por Rodrigo Coppe Caldeira e Adelaide de Faria Pimenta
O eminente Prof. Dr. Hans Maier, nascido em 18 de junho de 1931 em Freiburg im Breisgau, Alemanha, é professor Emérito de Ciência Política e Teoria Religiosa e Cultural na Universidade de Munique. Entre 1970-1986 foi Ministro da Educação e Cultura da Baviera, e entre 1976-1988, Presidente do Comitê Central dos Católicos Alemães. Possui inúmeras publicações sobre a história da igreja, o Estado administrativo moderno e a teoria do totalitarismo e das religiões políticas. Recebeu vários prêmios e medalhas, dentre eles a Medalha Constitucional da Baviera, em ouro (1999), o Prêmio Cultura da Baviera (2005) e o Prêmio Karl Jaspers (2014).
Fundamental para a compreensão dos movimentos totalitários, Totalitarianism and Political Religions: concepts for the comparison of dictatorships é uma de suas obras fundamentais. Publicadas pela Routledge em 2004 e 2012, Maier organizou e editou a coleção de três volumes traduzidos do alemão para o inglês. As obras trazem a reflexão de vários autores sobre o tema das religiões políticas em várias perspectivas analíticas. A preocupação com esse trabalho foi não apenas distinguir o comunismo, fascismo, nacional-socialismo, maoísmo, mas precisamente encontrar as características comuns a eles e a reflexão sobre a pertinência dos conceitos de totalitarismo e religião política para o século XXI.
Dr. Maier, prestes a completar 88 anos, gentilmente nos concedeu uma breve entrevista por e-mail, brindando o leitor de O Estado da Arte com considerações fundamentais para a compreensão do mundo contemporâneo, relevantes inclusive para o momento político brasileiro:
As relações entre política e religião são imemoráveis. No Ocidente, a diferenciação das esferas políticas e religiosas foi alcançada pelo longo processo de secularização. Como o senhor compreende esse processo?
Hans Maier – Na minha opinião, há uma “secularidade cristã”. O cristianismo, longe de ser uma contrapartida da secularidade, é na sua origem um mundo “divinizador”, um elemento secularizante. (“Dê a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”). Historicamente, ele dissolve a unidade autoevidente da religião e da política na antiguidade, supera os antigos cultos estatais, libera a política como um campo do homem. Através do seu conceito transcendente de Deus, o Cristianismo quebra o encanto da imanência político-religiosa. Além da polis, a civitas – a “igreja” da religião antiga – a comunidade cristã emerge como o povo dos redimidos; ela nega o culto dos deuses ao imperador e “exibe” o poder dos governantes terrenos em nome de Deus. A política se torna um “trabalho da humanidade” em um sentido radical na era cristã.
Poderíamos dizer que a ascensão das “religiões seculares”, para usar o conceito de Raymond Aron, é uma das consequências da secularização? Por quê?
Hans Maier –O mundo secular co-criado pelo cristianismo não é um mundo secularista. Da mesma maneira que o surgimento das modernas “religiões seculares” não é uma consequência do cristianismo. As principais diferenças: de acordo com a compreensão cristã, este mundo é criado, provisoriamente, final – não é o último, mas um penúltimo (enquanto na antiguidade o cosmos era autossuficiente). Então, “mundo” e “igreja” estão em um “relacionamento” dialético entre si – especialmente do ponto de vista de sua criatividade – eles interagem, competem um com o outro, como pode ser visto, entre outras coisas, na história dos direitos humanos, mas também do estado de bem-estar social.
Pode-se dizer que os totalitarismos do século XX são uma herança da modernidade? Formou-se algum tipo de “padrão” de totalitarismo para os dias atuais?
Hans Maier –Para mim, o totalitarismo não é uma herança da era moderna – no máximo, a consequência de uma modernidade reincidente e perversa, que recaiu na antiga desunião entre religião e política, e nega o divórcio cristão dos poderes. O termo “totalitarismo” foi desenvolvido no século XX (antes não faz sentido). Ele ainda está de pé hoje.
O totalitarismo não é uma herança da era moderna – no máximo, a consequência de uma modernidade reincidente e perversa
Podemos observar, nas discussões políticas, que grupos em choque acusam uns aos outros de “totalitários”, ou mesmo “fascistas”. Parece que distorcem os fatos e denominam o outro de “totalitário” utilizando-se dos mesmos argumentos. Esse é o tipo de distorção da realidade pensado por Eric Voegelin? O senhor pode, por favor, explicar mais sobre a “segunda realidade” como descrita por Voegelin?
Hans Maier –A ciência, no sentido estrito, só é possível se houver concordância entre os grupos opostos sobre os princípios do pensamento. Se não existir, nenhuma discussão é possível. O escolasticismo, por exemplo, dizia: Contra principia negantem non est disputandum. [não se deve discutir com alguém que nega os princípios]. Isto também se aplica aos totalitarismos modernos; nenhuma conversa é possível entre eles. Sistemas totalitários excluem ao oponente o pensar. Eles se absolutizam de uma maneira fetichista.
A ideologia cria a “segunda realidade” de que Eric Voegelin fala. A ideologia nada mais é que uma crença fanática, uma imitação perversa da ciência. Com a queda dos totalitarismos (nacional-socialismo, comunismo) também sua ideologia caiu, porque não era uma realidade “real”, mas sim uma “segunda” realidade.
Parece que o uso da palavra “fascismo” ficou banalizado. Tudo e todos contrários aos próprios ideais são chamados de “fascistas”. Como o senhor vê isso?
Hans Maier –Em minha opinião, deve-se distinguir cuidadosamente entre comunismo, fascismo, nacional-socialismo, de um lado, totalitarismo e religiões políticas, de outro.
O comunismo, o fascismo, o nacional-socialismo são entidades políticas que estão em sua ordem cronológica desde 1917. O totalitarismo e as religiões políticas são marcas conceituais sumárias de políticos e estudiosos (inclusive Amendola, Sturzo, Heller, Voegelin, Aron).
Embora o “fascismo” tenha se tornado um termo coletivo comumente usado para o fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão, bem como para seus Movimentos Trabalhistas na Segunda Guerra Mundial, o fascismo histórico (italiano) se presta pouco a tal uso geral. O fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão são claramente diferentes. O fascismo italiano tinha limites de expansão que faltam no nacional-socialismo alemão; ele era organizado pelo Estado, enquanto na Alemanha a sentença era: “O partido comanda o Estado”, e “o movimento” agia sem restrições, sem restrições como a monarquia e a igreja na Itália. Os “fascis” e os Camisas Negras de Mussolini, que são reminiscentes das tradições romanas, diferem claramente da cor marrom-terrosa [em referência aos “die Braunen” ou “Braunhemden” – “marrons” ou “Camisas Marrons” do nacional-socialismo, pela cor de seu uniforme] e das bandeiras esvoaçando ao vento, dos nacional-socialistas.
Em relação aos conceitos, deve-se dizer que o “totalitário”, no sentido de uma política ilimitada, era apenas o comunismo e o nacional-socialismo. O critério mais claro é o de uso de campos de concentração e assassinatos em massa. O fascismo italiano não atinge o mesmo grau de fusão do comunismo e do nacional-socialismo. Claro, ele também é uma “religião política” (vide a própria tentativa do calendário da “Marcha sobre Roma”!) [refere-se à manifestação que levou Mussoline ao poder, quando houve a tentativa de implantar um novo calendário na Itália: a proposta seria colocar o primeiro dia do ano zero, como o dia em que a “Marcha sobre Roma” teria supostamente ocorrido: 28 de outubro de 1922].
O senhor considera os conceitos de “totalitarismos” e “religiões políticas” válidos para alguns movimentos na atualidade ou algo já mudou?
Hans Maier – Eu acho que os dois conceitos não podem ser dispensados na interpretação dos movimentos políticos contemporâneos. Quero apenas relembrar exemplos grosseiros de totalitarismos recentes, como o milhão de extermínios em massa na China Vermelha de Mao Tse Tung, e no Camboja de Pol Pot.
A ciência só é possível se houver concordância entre os grupos opostos sobre os princípios do pensamento. Se não existir, nenhuma discussão é possível
Qual seria a diferença entre um líder verdadeiro e um líder totalitarista?
Hans Maier – Um líder legítimo é obrigado pela lei e pela justiça – ele renuncia quando seu tempo acabou. Ele se move em uma normalidade calculável. Um líder totalitário, por outro lado, não reconhece nenhuma restrição legal; ele mantém o poder, que possui até o fim (Hitler, Stalin, Mao). Ele se move em uma política exaltada; o poder não está mais baseado na lei, mas na ponta das baionetas: todo conflito é dirigido para o existencial “Entweder-Oder” [no português, “ou…ou”: ou isso ou aquilo].
Como o senhor analisa o contexto político atual e o lugar da discussão sobre os totalitarismos?
Hans Maier – Sem dúvida, o mundo de hoje é mais transparente do que na época do surgimento das ditaduras modernas. Sistemas totalitários não podem ser estabelecidos tão facilmente como costumavam ser – as preparações não passam despercebidas. Na “aldeia global” todo mundo vê o outro em casa. Mas a globalização, em particular, tem suas desvantagens: é mais fácil de penetrar, é mais vulnerável do que o Estado-Nação clássico. Ela não só abre novos caminhos para o intercâmbio comercial e científico, mas também oferece oportunidades para o crime global. Assim, um novo totalitarismo não poderia permanecer um fenômeno local, mas atuaria e agiria em todo o mundo.
Os ataques terroristas em Nova York em 11 de setembro de 2001, bem como numerosas ações terroristas desde então, confrontaram o mundo – provavelmente pela primeira vez desde as guerras religiosas do início do período moderno – com perpetradores que confiavam em instruções religiosas, sob as “ordens de Deus”. Este é um novo fenômeno de fortalecimento de poder. Inquestionável, e com certeza você não pode ser assim no mundo atual. A riqueza continuará sendo o preço da liberdade também nos tempos futuros.
Adelaide de Faria Pimenta é psicóloga e analista junguiana, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC Minas.