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A pensadora italiana Angela Ales Bello é fundadora e diretora do Centro Italiano di Ricerche Fenomenologiche, com sede em Roma, e docente de História da Filosofia Contemporânea da Faculdade de Filosofia da Pontifícia Università Lateranense (PUL). É especialista na fenomenologia de Edmund Husserl e uma das mais renomadas pesquisadoras do pensamento de Edith Stein, cujas obras completas foram editadas por Ales Bello.
Em uma entrevista conduzida — e traduzida, com auxílio do Prof. Miguel Mahfoud — por nosso colaborador, Rodrigo Coppe, a Professora Angela Ales Bello falou sobre Edith Stein, sobre cultura e modernidade, sobre religião e fenomenologia.…..
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Qual é a importância do método fenomenológico para o estudo do fenômeno religioso?
O termo fenomeno-logia significa reflexão sobre o fenômeno, sobre o que se manifesta a nós, sobre o que vem ao nosso encontro. Até nós vamos ao encontro de nós mesmos. Como Husserl disse, somos um “paradoxo”. Somos complexos, seres que vivem muitas experiências: somos sujeitos mas podemos analisar a nós mesmos como objeto. É inegável que dentre nossas experiências há a que chamamos de religiosa: experiência de vinculação com algo que se apresenta com sua excepcionalidade própria. É oportuno analisá-la, ou seja, efetivar uma investigação fenomenológica que tenha a religião como objeto: precisamente, a fenomenologia da religião. Ela se configura, a meu ver, como uma nova disciplina na fronteira entre a história das religiões e a filosofia fenomenológica.
Considero Gerardus van der Leeuw o genial fundador desse tipo de pesquisa, com sua obra Fenomenologia da Religião. O avanço de sua investigação mostra um equilíbrio extraordinário e profícuo entre o reconhecimento de um vasto continente – representado pelas “religiões” – e a identificação de um núcleo presente em todas elas, um denominador comum que nos permite afirmar que sejam, de fato, religiões. Para alcançar esse objetivo, van der Leeuw encontra na fenomenologia – aquela proposta por Husserl – um método eficaz: parte da “coisa”, ou seja, do fenômeno religioso em sua concretude histórica, e o examina procurando as suas características essenciais. Ao examinar a contribuição de van der Leeuw, nota-se que a história das religiões – além de ser legítima como disciplina autônoma – pressupõe todas as disciplinas, ainda que muitas vezes não estejam cientes disso. Trata-se de uma questão teórica muito exigente. De fato, trata-se de estabelecer o que seja religião, precisamente para tomar os fenômenos indicados como religiosos (e não como políticos ou artísticos etc). Essa questão é a base e o pressuposto da investigação histórica, mas é também seu resultado: eis por que, a meu ver, a história das religiões leva o pensador holandês a elaborar uma fenomenologia da religião. Em cada manifestação que se declara ou aparece como “religiosa”, ele encontra a presença de uma Potência cujos vestígios todo ser humano descobre em si mesmo. A reflexão sobre a experiência religiosa – que é a experiência dessa presença – remete, portanto, à escavação no ser humano e às análises de manifestações históricas, em uma circularidade incessante, buscando, em ambos os casos, um elemento característico, essencial, invariável em sua qualidade, que pode ser expresso e nomeado de diferentes maneiras mas permanece como uma busca da Potência e uma tentativa, nunca plenamente concluída, de lhe dar uma configuração: cada religião dá a ela uma configuração.
Assim, resolve-se também a questão da unidade do fato religioso – o porquê de ele ser religioso – e a da pluralidade de configurações históricas do fenômeno. Unidade e multiplicidade estão presentes juntas e não se contradizem; de fato, constituem prova da validade da descrição filosófica da experiência religiosa – possível graças a um aprofundamento da antropologia filosófica. Esta nova descrição histórico-filosófica do fenômeno “experiência religiosa” iniciada por van der Leeuw, aprofundando-se na presença do divino no ser humano por meio de uma antropologia filosófico-fenomenológica, nomeio como “fenomenologia da religião”. Ela confere sentido à constatação de uma experiência peculiar presente no ser humano, que muitas vezes se tenta e se tentou reduzir a outra coisa, mas que sempre reemerge e volta com sua característica específica: a experiência de uma Potência que preenche totalmente. Trata-se de um encontro peculiar entre o sujeito humano e o objeto divino, presente, mas de uma maneira não totalmente conhecida, e sentida como uma “revelação”, justamente porque o ser humano, capax Dei, sabe que a iniciativa dessa Presença vem de um Outro. E esta é a base tanto da revelação natural – cada ser humano sente essa Presença – quanto da revelação sobrenatural – uma peculiar e posterior especificação do Divino, que se move desde o próprio Divino. Em ambos os casos, é a revelação mesma que é “extraordinária”, pois se trata de algo oculto, inacessível, que vem a ser mostrado e está presente. Nesta paradoxalidade reside a essência profunda da experiência religiosa: ela nos faz, precisamente, afirmar a presença-ausência do divino em todo ser humano..
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Como avalia a presença do método fenomenológico nos departamentos que desenvolvem pesquisa na área de Ciências da Religião e Teologia?
A disciplina “Fenomenologia da Religião” é ministrada em Roma apenas em três universidades da Faculdade de Filosofia: uma é estadual, a Universidade de Roma La Sapienza, e duas são pontificas: a Universidade Urbaniana e a Universidade Lateranense (onde lecionei e onde foi criada a disciplina, há alguns anos, a meu pedido). Além disso, há aplicações do método fenomenológico – também com bons resultados – nas Faculdades de Teologia e nos Institutos de Ciências Religiosas na Itália.
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Religião e cultura são grandezas que parecem quase se definir uma a outra. Como a senhora compreende essa relação?
Considero importante reivindicar a autonomia da religião, que tem função própria e não pode ser reduzida a outras dimensões, como a psicológica ou sociológica, por exemplo. A análise fenomenológica nos permite enfrentar a questão da pluralidade de religiões, vinculando-a à pluralidade de culturas, estabelecendo também uma hierarquia, pois cultura e religião não ficam lado a lado, mas uma é subordinada à outra, no sentido de que religião, oferecendo a visão mais ampla e abrangente do mundo, é a base das perspectivas culturais. Isso também é válido no caso das culturas secularizadas, porque o afastamento da dimensão religiosa é uma escolha, tendo como referência a mesma dimensão que é rejeitada: quem se declara laico, o faz referindo-se à possibilidade ser religioso (que ele ou ela não aceita). Além do mais, o processo de secularização do Ocidente manteve fortes vínculos com a religião cristã; de fato, o tema dos direitos humanos remonta ao reconhecimento da dignidade do ser humano proclamado no Evangelho de Jesus Cristo.
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O século XX foi marcado por uma presença crescente do número de mulheres no âmbito da reflexão filosófica. Qual o papel que tiveram no pensamento filosófico no último século e no início do XXI?
A entrada oficial das mulheres na história da filosofia ocorre no século XX, mas a presença de filósofas é documentada desde o início da história da filosofia ocidental, especialmente na escola de pitagóricos e platônicos. De fato, houve marginalização e silêncio – por parte dos homens – sobre a presença das mulheres na filosofia. Na contemporaneidade, as mulheres que estiveram ligadas à escola fenomenológica de Edmund Husserl tiveram particular importância. Lembre-se de Edith Stein, sua aluna direta, e também de Gerda Walther, que frequentara os seminários ministrados por Stein, assim como Hedwig Conrad-Martius. São três exemplos de mulheres filósofas de grande profundidade teórica, cujos trabalhos eu estudei e que continuo estudando com grande interesse. Meu livro Fenomenologia dell’essere umano: Per una filosofia al femminile foi traduzido também para o português, pela editora Edusc. Vínculos com a fenomenologia também são encontrados também em Maria Zambrano através de Ortega y Gasset e em Hannah Arendt através de Heidegger. A contribuição das filósofas, também presentes em outras correntes de pensamento de nossa época, é importante por terem demonstrado, e continuar demonstrando, que as questões filosóficas podem ser abordadas com uma sensibilidade feminina, ou seja, com atenção as temas que, embora tratados no pensamento masculino, encontram peculiaridades entre as mulheres.
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Uma dessas grandes mulheres, sobre quem a senhora se debruçou a fim de compreender seu pensamento, foi a alemã Edith Stein. Como na produção filosófica de Stein reverberou sua própria experiência subjetiva?
A figura de Edith Stein é particularmente importante para mim, dada sua capacidade de penetrar em todas as questões que dizem respeito ao ser humano para depois voltar-se ao relacionamento com o Ser divino. Eu fui atraída, na minha juventude, pela fenomenologia de Husserl, que é meu pensador de referência, porque ele é capaz de colocar em evidência o sentido das coisas de uma maneira muito convincente. De ??fato, através de suas análises, ele nos leva para entender como o ser humano se constitui em seu relacionamento com o mundo circundante e também com o Princípio das coisas, isto é, com Deus. Sua discípula Edith Stein faz o mesmo caminho, seguindo não apenas a fenomenologia husserliana – cuja linha de fundo nunca abandonou –, mas também as sugestões que encontra no pensamento medieval, particularmente em Tomás de Aquino e Agostinho. Tudo isso me interessa muito, mas achei importante, sobretudo, sua análise da relação entre o feminino e o masculino, muito inovadora. Em 2017 dediquei um livro a esse tópico: Tutta colpa di Eva: Antropologia e religione dal femminismo alla gender theory, que será traduzido para o português. Além disso, suas reflexões sobre o tema da educação e formação humanas parecem-me particularmente significativas. Pessoalmente, tive grande proveito com a leitura e meditação de suas obras, do ponto de vista teórico e espiritual.
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A senhora publicou um livro em 1998 com título Edith Stein: La passione per la verità. Que verdade é essa pela qual Edith Stein é apaxionada?
A verdade é o objetivo da busca humana em geral. Edith Stein sublinha isso também em referência a seu mestre Husserl, dizendo que, mesmo que ele não tenha lidado especificamente com a questão de Deus, ou pelo menos não tanto quanto ela gostaria, ele sempre procurou Deus, porque buscava a verdade. Ela observa, no entanto, que os seres humanos nunca podem alcançar a Verdade, mas com suas habilidades intelectuais podem apenas alcançar fragmentos da verdade, os quais, no entanto, são muito importantes.
Além disso, para quem é religioso – e em particular, cristão – a Revelação fornece outros elementos da verdade que são indispensáveis ??e que podem iluminar também a investigação filosófica. A dignidade da pessoa humana pregada por Jesus Cristo foi recebida na cultura ocidental também pelos filósofos: por exemplo, a noção de ser humano como “pessoa” se origina de uma “iluminação” que veio de fonte religiosa, depois, aprofundando, verificou-se que o ser humano – enquanto ser não apenas corporal mas também espiritual – tem sempre e em todo lugar o mesmo valor. Isso permitiu que se organizassem, no Ocidente, associações políticas de tipo democrático que consideramos muito válidas, porque baseadas no reconhecimento da humanidade em comum. Para Stein, a Verdade, enquanto tal, se identifica com Deus que não é plenamente alcançável nesta vida, mas que será compreendido em uma vida futura.
.A senhora traduziu para o italiano em 1993 o livro de Stein Eine Untersuchung über den Staat (Una ricerca sullo Stato). Como a filósofa compreendia o papel do Estado no tempo em que vivia?
A obra Una ricerca sullo Stato, de Stein, lida com temas teóricos em vista de analisar a estrutura dos Estados modernos. Portanto, lida com questões de doutrinas políticas, doutrina do Estado e filosofia do direito. Ela tem interesse pela função da estrutura jurídica do Estado que, na sua opinião, se baseia em uma comunidade, a qual dá a si mesma uma estrutura jurídica. Naquela obra ela não fala sobre o Estado de seu tempo, mas seu interesse pelas questões políticas fica demonstrado por sua participação no Partido Democrata Alemão em 1919, quando se constituiu a República de Weimar. Ela participou ativamente e dele esperava muito, mas se afastou da vida política porque se decepcionara com o conservadorismo de alguns membros mais velhos e também por causa dos jogos de poder que a enojavam. Quando os nazistas chegaram ao poder em 1933, as perseguições contra os judeus já haviam começado e ela escreveu uma carta a Pio XI pedindo para que o pontífice interviesse oficialmente; de ??fato, ela havia previsto também as perseguições que ocorreriam contra os católicos. Somente em 1937 o papa escreveu uma encíclica em alemão, intitulada Mit brenneder Sorge (Com ardente preocupação), denunciando as perseguições. Estas a atingiram, pessoalmente, quando morava no Carmelo de Echt, na Holanda, sendo assassinada no campo de concentração de Auswitz-Birkenau em agosto de 1942.
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Edith Stein é compreendida por muitos como uma mística. Como a senhora avalia essa afirmação?
Edith Stein, desde jovem, se interessou por mística, particularmente pela experiência mística de Santa Teresa de Ávila. A leitura das obras da santa carmelita levou Stein a se tornar cristã católica e a desejar viver em um Carmelo. Ela conseguiu realizar seu projeto somente em 1933. Em seus textos dedicados a Santa Teresa e a São João da Cruz, ela explica em que consiste a experiência mística: um contato especial com Deus que vai além de toda experiência religiosa, porque é do próprio Deus a iniciativa de descer ao íntimo do ser humano, preenchendo a alma humana de uma maneira especial. Os dois santos carmelitas narram, com muitos detalhes, a experiência deles, mas não temos um relato específico de Edith sobre sua experiência mística; portanto, não podemos dizer se ela experimentou essa presença extraordinária do divino.
Em algumas sociedades ocidentais observamos uma obsessão por si mesmo e um narcisismo naturalizado e incentivado. Há lugar nesse contexto para a experiência de santidade como é vivida por Stein?
A cultura ocidental contemporânea é atravessada por um processo de secularização, ou melhor, de dessacralização, como busquei demonstrar em meu livro de 2016 Il senso del sacro, traduzido para o português e publicado no Brasil pela editora Paulus. Iniciado esse processo, os envolvidos caem em uma situação de absolutização de si mesmos: o ser humano precisa de Deus e, se não puder encontrá-lo, passa a se considerar como Deus, mostrando as tendências narcísicas de sua psique; além disso, como os outros são necessários, o “contágio psíquico” ocorre e o narcisismo se espalha.
Naturalmente, o narcisismo pode também ser uma patologia, devendo ser tratada. Mas nem sempre: pode ser também resultado de falta de controle espiritual sobre si mesmo. Edith Stein nunca cedeu a essas tendências e, em sua juventude, quando percebeu que estava se fechando-se em si mesma, imediatamente se corrigiu. O encontro com a mensagem de Jesus fortaleceu sua capacidade de dirigir a própria conduta, até alcançar a santidade. Como as coisas estão, parece-nos que essa sua atitude não pode chegar a incidir no mundo contemporâneo; mas penso que devemos ter “esperança”, mostrar sua figura como um exemplo a ser seguido, porque as pessoas narcisistas não são felizes, nunca se satisfazem com o que alcançam. Devemos esperar que ela opere o “milagre” em muitas pessoas: não cansar de contar sua história e descrever sua pessoa, divulgando sua mensagem.…