I. Em louvor da Caridade
(Tirado da primeira epístola de São Paulo aos coríntios, Cp. 13.)
Os maus se gabam com suas mentiras
imbecis;
Mas eu só amo o que diz
A eterna verdade.
O fogo de Deus me inspira,
E sagro hoje minha lira
À celeste Caridade.
Em vão a língua dos anjos eu falaria;
Em vão, meu Deus, te louvaria
Preenchendo todo o céu;
Sem amor, meu lustre é tão longo
Quanto o lustre do gongo
Cujo vão rumor treme ao léu.
Que serve à minh’alma penetrar abismos
Dos mais sublimes misticismos,
E prever o destino?
Sem amor a ciência é vã
Como o sonho, que de manhã
Se desfaz em desatino.
Que serve à minha fé transportar
montanhas;
Ou que nas áridas campanhas
Torrentes nasçam sob meu andar,
Ou que, revivendo a argila,
Dê aos mortos luz que cintila,
Se o amor não a animar?
Sim, meu Deus, se de minha herança
minha mão
Aos pobres fizesse partição;
Se mesmo, pela cristã cruzada
Ante as cruzes de pior fama,
Eu desse meu corpo à chama;
Se eu não amar, não sou nada.
Quantas virtudes brilham se tua sombra
passa,
Caridade, filha da Graça!
A doçura vai quieta,
Seguindo com ar afável
A Paciência, inseparável
Da Paz, sua irmã dileta.
Tal como o astro do dia afasta a negrura,
Da noite parceira obscura:
Impões veloz tua vitória
À inveja a nós tão fatal,
E a toda tropa infernal
De vícios, filhos da vanglória.
Sem artifício, simples, livre de cobiça,
Tanto odeias a injustiça,
Quanto amas a verdade.
Que pode o rancor irado
Sobre um coração intocado
Pela ânsia por sua felicidade?
Às faltas dos outros jamais és inexorável,
Sempre com um véu favorável
Te esforças por os cobrir:
Que falta à tua glória conquistar?
Amor, sabes tudo crer, esperar,
Tudo vencer e resistir.
Os oráculos perderão de Deus o prestígio;
O dom das línguas, o prodígio,
A ciência terá seu declínio:
O amor, a divina caridade
Nascida na eternidade,
Não verá fim a seu domínio.
As luzes daqui são enigmas sombrios
ao léu;
Mas Deus sem sombra e sem véu
Nos céus há de nos iluminar;
E este sol inacessível,
Como a seu olhar sou visível,
Será visível a meu olhar.
O amor vence todo dom com justa razão.
À nossa celeste edificação
A fé viva dá estabilidade;
A santa esperança a concretiza,
A ardente caridade a organiza
E mantém na eternidade.
Quando poderei ofertar, ó caridade
suprema,
No seio da luz serena,
O cântico da minha agonia;
E, queimando pra te gloriar,
Sempre beber sem esgotar
A fonte da vera alegria!
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