por Flávio Ricardo Vassoler
O som e a fúria.
O som dos golpes vertiginosos contra o saco de pancada, jabs, diretos e cruzados, baço, fígado e estômago, o gancho contra o queixo faz a cabeça rodopiar, o cérebro se choca contra o crânio – o som do corpo a se estatelar contra o ringue. 1, 2, 3, 4… – o adversário de Michael Gerard, também conhecido como Iron Mike Tyson, cambaleia junto às cordas, mas ainda tenta ficar de pé. Quando o treinador do adversário vê os punhos de Tyson prontos a fulminar seu lutador, o coach joga a toalha de misericórdia.
A fúria, a fúria difusa, a fúria contra todos (a fúria contra si mesmo), a fúria do mais jovem campeão mundial dos pesos pesados da história do boxe, a fúria contra o pai que não estava lá, a fúria por ter vingado o gueto do Brooklyn, a vergonha de ter vindo do gueto do Brooklyn, o orgulho de ser negro, a pecha de ser negro, o amor da mãe e do pai adotivo, seu treinador Cus D’Amato, a fúria dos nocautes avassaladores, a fúria durante a queda tão meteórica quanto sua ascensão.
O pobre não é apenas invisível. O pobre roto e fedido, dirty Mike, não deve ser visto. Ele deve ser caçado e algemado, peito contra o chão, joelho do PM contra a nuca. Assaltar pra comer? Ora, isso é o que há de mais comezinho. Assaltar pra existir, pra ser notado, pra que, na perseguição, o pega-pega da molecada, enfim!, chame a atenção de alguém. Reformatórios e cadeias são assustadores pra burguesada. Cadeias e reformatórios são a extensão do gueto.
Vocês já entraram em um prédio abandonado? Paredes descascadas, canos podres, poças d’água, fios elétricos expostos. Ratos, muitos ratos. – Era ali que eles queriam que eu brincasse. Eles queriam que eu ficasse confinado ali, que eu não dissesse nada, que eu não fizesse nada. Que, sobretudo, eu não saísse daqui. Eu nunca saí, eu sabia que um dia voltaria pra cá, mas, antes, eles teriam que conhecer meu terremoto. Furtos, roubos, agressões. Era só isso que sabiam de mim. Os juízes, os dedos em riste da sociedade, só me conheciam lendo minha ficha corrida. Mas vocês já viram uma quadrada brilhando à noite? Nego atira e fica surdo, cachorro para de latir na hora – aquele latido ao longe que sempre tem no gueto do Brooklyn e em qualquer cu do mundo. Nego não faz ideia do que é uma arma na mão. Ei, olha pra mim, filho da puta! Se eu te digo bom dia, meu bem, ela se afasta. O burguês sequer imagina o que é precisar de respeito. Ele logo estende a mão quando encontra alguém. Se eu fizer isso, vocês vão dar um passo pra trás, vão me medir com pavor nos olhos. E se eu quiser conversar com vocês? Eu quero lhes dizer one or two things. A pobreza não faz apenas o estômago roncar, não. Você é um merda, você é um loser, as mulheres não te querem, ninguém te nota – você é aquele soslaio de medo da menina que abraça a bolsa, você é o fedor e o nojo que chegam antes quando os pedestres se afastam, você é o grito de “polícia!”, você é o pivete, a urina no reboco, a seringa vazia no meio-fio. Mas uma vez eu não aguentei, o juiz ali me dando sermão atrás de sermão, daí eu olho bem pra ele, do mesmo jeito que no futuro começaria a ganhar as lutas antes de o gongo soar, fulminando meus adversários com o olhar, eu olho pro juiz, ouçam essa, e lhe pergunto se o senhor sabe que eu cuido de um monte de pombas. Ora, ora, o falastrão da lei, vejam só!, a matraca da lei não sabe o que dizer. Ele queria que eu dissesse “sim, senhor”, ou então que, mais uma vez, eu ficasse de cabeça baixa, que só balbuciasse e choramingasse. Mas o senhor precisa conhecer minhas pombas, senhor juiz. Elas não são ratos com asas, não. Elas são limpinhas, elas vêm comer na minha boca, levam minhas cartinhas de amor pras vizinhas, são vistosas e imponentes. Agora o senhor me explique, senhor juiz: por que as pombas não têm medo de mim? Por que vocês têm tanto medo de mim? Por que ninguém fica próximo de mim? O senhor gosta de atirar pedras, né? Pois o reverendo, domingo passado, falou sobre aquela passagem em que Jesus fala praquela velharada toda pensar sobre as próprias faltas antes de apedrejar a adúltera. O senhor já fez isso hoje, senhor juiz? O senhor consegue se ver aqui embaixo, sem essa toga, à minha frente? O senhor não quer ouvir quem eu sou, de onde eu venho e o que eu quero? Não seria melhor me julgar depois que o senhor conhecesse a dimensão do que eu sonho? Minhas pombas podem contar isso aí pro senhor. Minha mãe também poderia, senhor juiz, se ela não tivesse que se revezar entre 4 empregos. Eu não sei o que senhor quer, senhor juiz, eu não sei como o senhor se tornou importante, eu não sei o que lhe fez querer julgar quem tá aqui embaixo, quem tá abaixo do senhor. Mas não é só o senhor que quer mais, não. Vamos, me manda de novo praquele lixo de reformatório, me cospe de novo pelo ralo! Eu vou voltar, eu vou entender o que eu tenho a dizer, eu vou, sim, ah, se vou!
Não é sintomático que o talento descomunal de Mike Tyson para o boxe tenha sido descoberto em uma de suas dezenas de passagens por reformatórios? A cumplicidade do Estado administra a sociopatia para dar ao esgoto alguma finalidade. (Tanto melhor para os gângsteres e o show business se a fúria puder gerar e gerir espetáculos.)
Aos 12 anos, Mike já pesa mais de 80 kg e enverga um porte físico completamente desproporcional à sua idade. Aos 15, já como peso pesado, tem início sua trajetória de nocautes acachapantes. Os diletantes que assistimos a lutas de boxe apenas discernimos os socos e os clinches. Quem procurar os vídeos dos treinamentos de Tyson verá que o pêndulo da esquiva e a mobilidade da cintura e das pernas são a base da defesa e do contra-ataque. Os leitores e, eventualmente, as leitoras que já saíram na mão com alguém sabem que, no calor da briga, é dificílimo se esquivar de um soco bem dado. O murro corta o ar e dribla facilmente os olhos. Só depois reconhecemos o local da pancada quando a mãe ou a namorada vem colocar um bife gelado sobre o inchaço. Pois bem: imaginem uma sequência de Mike Tyson com a potência e a velocidade de 5 socos por segundo! Cus D’Amato lhe ordena que jamais observe o rosto do adversário. É preciso caçar fixamente os movimentos da musculatura peitoral. Quando o peito se mover, você se esquiva – e bang! Punhos colados ao queixo, Mike, vamos! Tyson traz os lutadores pra si, vai se esquivando como um rato do gueto e, quando o adversário desfere o soco e abre a guarda, o homem de aço e o relâmpago de sua rapidez encaixam um cruzado de esquerda e um direto de direita que desmaiam a própria contagem. [É preciso reinventar a valentia para ser juiz em uma luta de Tyson e (tentar) impedir o lutador de continuar a golpear os adversários já estatelados sobre a lona.] Quem já assistiu aos ataques de Tyson bem sabe o que é atirar com uma espingarda calibre 12. Consta que, após enfaixar as mãos e calçar as luvas, Tyson transformava as colunas de concreto do ginásio em sparrings. “I am the most brutal and ruthless champion that has ever been, there’s no one who can stop me, I’m the best ever, there’s no one that can match me! My style is impetuous, my defense is impregnable!” [Eu sou o campeão mais brutal e implacável que já existiu, não há ninguém que possa me parar, eu sou o melhor de todos os tempos, não há quem possa se comparar! Meu estilo é impetuoso, minha defesa é inexpugnável!”].
Das 15 primeiras lutas de Mike Tyson como boxeador profissional, apenas 4 passaram do primeiro assalto. Das 11 lutas que terminaram antes de o gongo decretar o fim do primeiro round, 6 acabaram em menos de 1 minuto e 10 terminaram antes de 1 minuto e meio. Todas as 15 lutas em questão foram vencidas por nocaute. (Em 1982, aos 16 anos, Tyson lutou na Junior Olympics e precisou de apenas 8 segundos para nocautear o adversário com um swing de direita contra o queixo.) No dia 22 de novembro de 1986, com um cartel de 28 lutas, sendo 28 vitórias, 25 nocautes, 2 vitórias por decisão dos árbitros e 1 desqualificação do adversário, o prodígio Michael Gerard Tyson, de apenas 20 anos, desafia o campeão dos pesos pesados, o jamaicano Trevor Berbick. A luta é um verdadeiro massacre. Tyson desfere toda a pletora de sua força e técnica, Berbick só faz provocar clinches, ao que Tyson responde com socos no baço e upper-cuts que levam o jamaicano à lona várias vezes até que o árbitro, aos 2 minutos e 35 segundos do segundo round, decreta o nocaute e transforma o outrora lumpemproletário do Brooklyn no mais jovem campeão mundial dos pesos pesados da história do boxe. Todos entram no ringue para abraçá-lo e beijá-lo, o dirty Mike outrora invisível, o trombadinha e meliante dos reformatórios, agora é o campeão mais querido de todos e, principalmente, de todas. Mas onde está a mãe de Mike? Onde está seu querido treinador e pai adotivo, o bom e velho Cus D’Amato? Quando Tyson se sagra campeoníssimo e quer repartir o pão da vitória com aqueles que mais o amam, o lutador descobre a aridez das palavras de Cristo: “Deixa que os mortos enterrem seus mortos” (Lucas 9, 60). Por que todos aqueles que eu amo morrem? Por quê, meu Deus?! Quando um jornalista consegue se esgueirar pela massa de amigos, treinadores, empresários, fãs e oportunistas para obter as primeiras palavras do mais novo campeão mundial dos pesos pesados, assim agradece Mike Tyson: “Faz um mês que Cus D’Amato, meu pai e inesquecível treinador, nos deixou. Essa vitória, Cus, é pra você, porque eu sei que, aí de cima, você está nos vendo e está muito feliz por mim. Devo isso a você, Cus, eu te amo, pai!”
Os cidadãos comezinhos, sobretudo os membros da massa de pequenos-burgueses, não fazem sequer a mais pálida ideia do que é dormir com fome e acordar querendo – ou melhor, exigindo – tudo o que antes era inalcançável. Os bem nascidos se deitam sobre redes e lençóis de seda para, quiçá (e muito de vez em quando), desejarem algo para além da pasmaceira das propriedades de aluguel. Os pobres, cujo horizonte é ceifado a priori, são condenados a uma aridez material análoga à vacuidade de ímpeto de um considerável filão da burguesia que os explora. (Não à toa Oscar Wilde certa vez sentenciou que só há uma classe que pensa mais em dinheiro do que os ricos – ora, só poderiam ser os pobres.) Mas o capitalismo, aqui e ali, permite a ascensão (e a queda) de figuras vorazes e ambiciosas pelos interstícios de seus corredores poloneses. É na ascensão e na queda de alguém como Mike Tyson que parece residir o caráter emancipatório e regressivo de nossa guerra de todos contra todos. Mike não aceita sua própria condição, um tigre não consegue viver no canil. A explosão de sua fúria ganha sentido, calções e luvas nos ringues. Conforme nocauteia os adversários, Tyson golpeia e afaga a sociedade que antes o expelia e agora o idolatra. A fama e a notoriedade o confundem. Quem não gostaria de ser ovacionado? Quem não quereria um harém a seus pés? Mas, ora, é gozado, antes me vigiavam de outra forma. Vejam só: antes ninguém me notava se eu ficasse lá no meu bueiro. Se eu ficasse quietinho, se já tivesse aprendido o meu lugar, se eu mesmo me vigiasse, nenhum PM vinha me caçar. Mas se eu ousasse infectar Manhattan com o fedor da minha pele, vixe!, aí a coisa fica feia, aí os policiais saem não sei de onde, aparecem viaturas e batalhões num instante. E o curioso, agora, é que trocaram a vigilância: a polícia, as algemas e os retratos falados deram lugar às câmeras dos fotógrafos e das TVs. Mas, de uma forma ou de outra, do Cidade Alerta ao TV Fama, eu continuo a ser manchete. E quem são meus irmãos? Quem são meus amigos? Qual delas será minha namorada? Eu já não sou feio, elas me querem. Mas o que é que elas querem? Entrevistas com os treinadores e (supostos) amigos de Mike Tyson relatam uma personalidade tão densa e contraditória quanto sua vida impetuosa. (Ao colosso Tyson corresponde a voz aguda e insegura de Mike.)
Enquanto o árbitro anuncia as regras do combate aos dois boxeadores e demanda honra e decência na luta que só irá começar quando ambos touch gloves e se cumprimentarem, Tyson já nocauteia o oponente com os cruzados de seus olhares. Sua cara de ódio é o semblante da humilhação recorrente – o mesmo semblante que o show business gosta de focalizar para incitar o sonho (rentável) dos telespectadores de que o prodígio de Mike Tyson pode ser imitado (e, quiçá, superado). Quem quer que se oponha a Tyson faz com que ele se lembre do pai que se evadiu quando Mike tinha apenas 2 anos. Será que se eu nocautear o meu pai ele vai voltar? Será que se eu nocautear o meu pai ele vai me respeitar? Será que se eu nocautear o meu pai vou conseguir perdoá-lo? Pai, eu te amo – e te golpeio. As feridas mais profundas pressupõem cicatrizes purulentas. Os pontos que suturam as facadas também legam frestas e flancos pelos quais o rancor e o ressentimento voltam a infeccionar. Tornar-se campeão, milionário e mundialmente reconhecido trouxe a Tyson, durante 4 anos de vitórias, fanfarras e mulheres, a trégua com o buldogue enjaulado no porão de sua memória. Aos corpos desfalecidos de seus adversários sobre a lona – corpos em sua maioria negros como os de seus ancestrais e amigos de pobreza dos quais Mike sente falta e dos quais Tyson já não quer se lembrar – se contrapõem os corpos nus das mulheres sobre sua cama king size. Brancas que antes sequer o desprezavam (já que ele não existia), negras que talvez já não o temam (tanto), latinas, asiáticas, índias, eslavas: a cada orgia em suítes presidenciais e limusines, o dinheiro realiza a integração da humanidade que o torpor pós-cocaína e pós-orgasmo volta a cindir. Mas Mike logo sente que o caos precisa ser domado. O que o Cus faria em meu lugar? O que ele me diria? Chegou a hora de escolher uma esposa. Quem diria que o fedido do gueto conseguiria se casar, hein? Mike está confuso, ele não consegue entender como ter todas as opções gera ainda mais ansiedade do que não ter nenhuma. Eu achei que ia tá tudo resolvido. Antes o que eu queria não tinha nome, o que eu queria não tinha forma. Agora tem todos os nomes e assume a forma que eu quiser. Mas o que é que eu quero? Quem é que eu vou escolher? Afinidades eletivas: o campeão reconhece a campeã. (Verdade seja dita: os comerciais ajudam Tyson a separar o joio do trigo.) É assim que a bela e bem educada atriz Robin Givens lhe acende o desejo. O nocauteador é nocauteado. O senhor volta a se tornar escravo. (Ora, vocês não imaginariam que o impetuoso Mike Tyson viveria um amor plácido, não é mesmo?)
Quem perde os pais ainda jovem sabe o quanto é forte a vontade de constituir um novo lar. Todo o homem precisa ter um lugar para onde possa voltar.
Minha vida é um ringue aberto: a grande mídia veicula, pari passu, os rounds da relação de Tyson e Givens. “You know, Mike gosta de me agradar. Ele é muito romântico and full of surprises! Numa noite eu encontro um anel cravejado de diamantes sob o meu travesseiro. Certa manhã, é o ronco do meu novo Porsche que me desperta. Eu te amo, Miky!” Um beijo cinematográfico em rede (inter)nacional enternece os corações de todos.
Home sweet home: dos prédios abandonados do gueto do Brooklyn a um palácio de 4,5 milhões de dólares. (Mano Brown deveria ter aconselhado Tyson: É muito difícil, mas um ou outro até consegue sair da favela. O problema é que a favela não sai de dentro de você.) Um nocaute em rede (inter)nacional enrijece os corações de todos: “You know, Tyson é um maníaco-depressivo”. (Mike está bem ao lado de Robin, o programa está sendo gravado na suíte presidencial de seu palácio.) “Tem sido muito, mas muito difícil viver com ele. Minha mãe e eu estamos tentando ajudá-lo, mas, antes de mais nada, é ele que precisa querer se ajudar. Faz tempo que nós não nos entendemos”. (Robin olha com pesar para um Mike inusitadamente cabisbaixo.) “Eu já não sei o que vai acontecer…”
Consta que o menino dirty Mike não gostava muito de voltar para casa. Quando o fazia, ele muitas vezes via sua mãe sendo espancada e abusada pelo(s) namorado(s). [Será por isso que Tyson comprou um enorme tigre siberiano para domá-lo como animal de estimação? (Quão intrincada é a impotência que se converte no ápice do poder!)]
O pós-divórcio em rede (inter)nacional divide os corações de todos. Robin Givens: “Mike Tyson me agrediu diversas vezes. Só que ele sabe onde e como bater para que não haja marcas, para não deixar provas…” Ewald D’Amato, mãe adotiva de Tyson: “Se eu estivesse no lugar do Mike quando Robin disse todas aquelas coisas, eu teria tapado a boca dela!”
Consta que um dos treinadores de Tyson não conseguia entender como aquele boxeador estupendo, no início da carreira, tremia de medo antes das lutas. “Eu não quero desapontar o Cus, eu não posso, diz pra mim que eu vou ganhar, diz pra mim que eu tenho chance!” E isso se repetia mesmo após sucessivos e incontestáveis nocautes.
De seu berço quente e confortável, o bem-nascido não consegue entender o que significa a ausência, a perda e a impotência. Assistir à mãe sendo continuamente violentada e não poder fazer nada mutila dirty Mike a ponto de o torpor da cola de sapateiro ser a única terapia. O gueto do Brooklyn não fornece a seus desovados a fraternidade paga dos analistas para que as autoilusões ressignifiquem a brutalidade como a depressão que pode ser alopaticamente arrefecida. No gueto, as mulheres são ainda mais espoliadas. Assim, a sociopatologia começa a nocautear Mike com o seu cotidiano. O menino que assiste ao estupro recorrente de sua mãe sem poder fazer nada, sem poder nocautear e desmaiar e trucidar aquele(s) filho(s) da puta!, sente a culpa como um punhal, sente ódio de si mesmo, sente pena de sua pobre mãe, e, como menino do gueto, como alguém que quer sobreviver, ele começa a desejar as mulheres que, assim parece, não dizem o que realmente querem, elas precisam ser domadas – ah, então elas não são tão vítimas quanto eu pensava, minha mãe bem que queria tudo aquilo, minha mãe talvez pudesse fazer alguma coisa, e, olha só, e se, de repente, ela até ficasse me esperando pra começar a dar praquele(s) filho(s) da puta sempre que eu abrisse a porta de casa?
A reincidência cotidiana transforma a compaixão de Mike pela mãe em cumplicidade com o(s) carrasco(s). (Cumplicidade incestuosa.) Para que dirty Mike consiga sobreviver, a mãe/vítima também precisa ser culpada. O esquecimento – ou pior, a asfixia da memória – pressupõe a reprodução da violência contra quem é ainda mais fraco. É assim que o darwinismo social seleciona os mais fortes entre os mais fracos. Por um mero acaso, a sociopatia de Mike Tyson pôde ser ejaculada como violência legítima – e lucrativa. Se Michael Gerard não fosse um gênio dos ringues, a América poderia ter listado mais uma personagem em seu inventário de sociopatas. Assim, sempre que Mike amar, sempre que estiver diante de seres mais frágeis e indefesos – diante de Tyson, trata-se da humanidade como um todo –, o adulto voltará a se deparar com o dirty Mike entre lágrimas de impotência e cumplicidade. A ferocidade dessa dor pode ser atestada pelas concussões e cicatrizes de todos aqueles que ousaram enfrentar Mike em um ringue, o ringue que mimetiza a cama e o chão da cozinha (os locais contumazes do estupro de sua mãe), os lutadores que lembram o(s) namorado(s) da mãe de Tyson.
Será que os bem-nascidos, os parentes distantes da rainha francesa Maria Antonieta, entenderão que não adianta alimentar Mike Tyson com os brioches do show business? Os milhões e bilhões de dirty Mikes precisam de lares amorosos – e de perdão. (Na verdade, a tatuagem de Che Guevara que Mike enverga sobre as costelas bem sabe que tudo isso só vai cicatrizar com uma sociedade verdadeiramente outra.)
O naufrágio do matrimônio (business as usual) e os múltiplos compromissos publicitários (dentro e) fora dos ringues começam a fundir o Iron Man. Mesmo a fortaleza Tyson não consegue se manter no topo diante da vontade e da necessidade de transformar cada cômodo de sua vida em negócios lucrativos. Bonés, camisetas, luvas de boxe, calções, tênis, video games, perfumes – olha como o mundo dá voltas, dirty Mike! –, canetas, participações em (minis)séries, participações em filmes, entrevistas, retrospectivas, discursos, prêmios, doações beneficentes (abatimentos no imposto de renda), empresas, franquias, namoradas plantadas na mídia, paparazzi, indenizações por (supostas) agressões e câmeras quebradas.
Tóquio, 11 de fevereiro de 1990: o campeoníssimo Mike Tyson enfrenta o azarão James “Buster” Douglas para defender o título mundial dos pesos pesados. Até sua 38ª luta, Tyson tinha um cartel de 37 vitórias, sendo 32 nocautes, 4 vitórias por decisão dos árbitros e 1 desqualificação do adversário. Das 37 vitórias, 27 haviam sido obtidas até o segundo round, dentre as quais 17 não haviam passado sequer do primeiro assalto. Um Mike Tyson disperso e não devidamente treinado – o show business que o deifica coloca em xeque a necessidade (e a possibilidade) dos treinamentos diante de sua onipotência (comercial) – ainda consegue levar Douglas à lona com um upper-cut de direita. Mas a estafa de Mike vai ficando patente conforme Douglas consegue empurrar a luta para os rounds finais – uma situação inusitada para a Blitzkrieg de Tyson que via de regra precisa de poucos minutos para desmaiar o oponente. O campeão vai sendo castigado com boas sequências de Douglas. Não fossem as cordas, em dada altura da luta o mundo teria visto, pela primeira vez, o imbatível Michael Gerard Tyson beijar a lona. 10º round: o locutor da luta, impressionado com a tenacidade de “Buster” Douglas, revela que a mãe do boxeador havia morrido poucos meses antes do combate. Para a imensa maioria da humanidade, o luto dolorosíssimo de “Buster” Douglas leva à instropecção e à paralisia. Para pouquíssimos, no entanto, a dor – ou melhor, a ardência da dor – se transforma no mais propulsor dos combustíveis. “Ninguém acredita em mim, mas eu vou honrar minha mãe com essa vitória!” Mike Tyson, irmão da mesma dor de “Buster” Douglas, se esqueceu, em sua 38ª luta, de que o chicote que fustiga o negro Chico também pode fustigar o crioulo Francisco. 10º round. Ao discernir o inchaço ao redor do olho esquerdo de Mike, o locutor sentencia: Tyson is now a desperate one-eye fighter! Súbito, “Buster” Douglas encurta a distância e passa a golpear Tyson com um vaivém de jabs de esquerda cada vez mais fortes: um, dois, três, quatro, cinco! A guarda inexpugnável de Mike está definitivamente aberta, então Douglas encaixa um upper-cut de direita seguido de três cruzados – direita, esquerda e direita – que levam o mito à lona. Mesmo não acreditando em seus olhos tarimbados, o árbitro grisalho abre a contagem: one, two (Mike se apoia sobre o cotovelo direito), three, four (Tyson está de quatro), five, six, seven (Mike Tyson, atordoado, tenta, em vão, colocar o protetor dental), eight [o (ex-)campeão se escora no árbitro para se levantar], nine – it’s over, o árbitro enlaça Tyson com a circunferência de seus braços e decreta o nocaute. O locutor: “It’s over, it’s over, Mike Tyson has been knocked out! Unbelievable!” O comentarista: “What ‘Buster’ Douglas has done here tonight makes Cinderella look like a sad story…” [O que ‘Buster’ Douglas fez aqui esta noite faz Cinderela parecer uma história triste…] O locutor: Let’s go ahead and call it the biggest upset in the history of heavy weight championship fights. Say it now, gentlemen: James ‘Buster’ Douglas, undisputed heavy weight champion of the world! [Digamos mais e chamemos este de o maior tombo na história da campeonato dos peso-pesados. Digam agora, senhores: James ‘Buster’ Douglas, campeão indisputável do mundo!] A câmera focaliza um Mike Tyson inchado, extenuado e completamente transtornado. Mike não acredita que a mesma massa que sempre o ovaciona e aplaude, a massa de fiéis que o veem como a um deus, a massa cúmplice de seus nocautes, a massa de cidadãos de bem (e de bens) cuja infração mais contumaz é a sonegação de impostos, a massa que sempre torna espesso o ar das arenas para impulsionar o punho de Tyson como um aríete de carvalho maciço, a massa castrada que já não pode vibrar como seus ancestrais aspergidos com o sangue dos cristãos no coliseu romano, a massa que se sente fundida ao aço do Iron Mike – como é possível que todos tenham me abandonado e estejam ensandecidos com a vitória de James José Ninguém Douglas?
Se o direito de conhecer a história humana não tivesse sido usurpado do gueto onde dirty Mike se escondia, Roma teria one or two things a lhe ensinar, Tyson. A massa, Mike, aclamou o general Marco Antônio como a um pai após seu discurso inflamado no funeral de absolutamente ninguém mais que o generalíssimo Júlio César. “Sim, morte aos assassinos de César, morte aos conspiradores! Ó grande Marco, você é o sucessor do nosso César, viva Marco Antônio, viva!” A massa, Mike, também se regozijava com as estripulias viris de Marco Antônio e seu harém de Cleópatras. Quando o espólio de César foi dividido entre Otávio e Marco Antônio, o aclamado sucessor de Augusto se instalou no celeiro do império, o Egito. Em meio às encarniçadas disputas políticas dos dois líderes, não demorou para que Otávio, instalado no coração de Roma, começasse a manobrar as paixões da massa para atribuir a uma traição de Marco Antônio a crise pelo não suprimento de grãos – “o ex-general romano se tornou um eunuco de Cleópatra!” “Sim, Marco Antônio nos faz passar fome, morte ao eunuco de Cleópatra, morte ao conspirador! Ó grande Otávio, você é o sucessor do sucessor do nosso César, viva Otávio, viva!”
Marco Antônio também lhe poderia ensinar algo para além da volubilidade da massa, Mike. Quando as tropas de Otávio fazem a aura da invencibilidade militar de Marco Antônio cair por terra, consta que o general assim teria se pronunciado diante da aurora do dia seguinte: “Sempre temi a derrota e sempre procurei afugentá-la com minhas vitórias. Se queres paz, prepara-te para a guerra. Mas, ora, quer dizer, então, que o sol volta a nascer mesmo depois da derrota?”
Ocorre que Tyson jamais voltaria a ser o mesmo Iron Man após a perda da invencibilidade. Quando o naufrágio do ex-campeão o leva a pique, o buldogue consegue escapar da jaula e passa a arremeter contra o porão da memória. Em julho de 1991, Mike Tyson vai a Indianápolis para prestigiar o desfile das beldades que participam do concurso Miss Black America. As concorrentes se põem em polvorosa: “Oh, my God, it’s Mike Tyson, I cannot believe my eyes!” Consta que, ao tirar uma foto com as competidoras, Tyson as teria apalpado e abraçado com a velha voracidade do gueto. (Depois da acusação de estupro – depois, portanto, do leite derramado –, muitas participantes testemunhariam que Tyson lhes teria feito propostas “nojentas”.) Ainda assim, o lutador impressiona Desiree Washington, uma estudante universitária de Rhode Island. Após um concerto de Johnny Gill na noite de 19 de julho, Tyson se vê sem nenhuma acompanhante. De sua limusine estacionada em frente ao hotel em que Desiree está hospedada, Tyson liga para o quarto da moça e a convida para uma (suposta) festa repleta de celebridades. São quase 2 horas da manhã. Quando as colegas de quarto se dão conta de que Desiree está falando com Mike Tyson, todas se põem novamente em polvorosa. Desiree lhes teria perguntado se deveria aceitar o convite de Tyson, já que era tarde e, afinal, os dois poderiam se ver no dia seguinte. As garotas a teriam incentivado quando o lutador respondeu que iria embora na manhã seguinte. Já na limusine – e quiçá entre beijos impetuosos –, Desiree concorda em ir até o hotel de Tyson antes da (suposta) festa para que ele possa pegar algo que esquecera em seu quarto. Já no quarto, Mike surpreende Desiree assim que ela sai do banheiro e a leva para a cama. O lutador lhe pede para relaxar enquanto, segundo Desiree, Tyson a teria forçado a fazer sexo com ele. Desiree Washington sai do quarto sozinha cerca de 30 minutos depois de sua chegada. Um exame médico é realizado e dá respaldo à versão de Desiree. Tyson redargue dizendo que o encontro sexual teria sido totalmente consensual e que Desiree teria inventado a estória para ganhar notoriedade e dinheiro e porque ela teria ficado nervosa pelo fato de ele não a ter acompanhado de volta à limusine. No dia 10 de fevereiro de 1992, Tyson é condenado a uma pena de 6 anos de reclusão por estupro. Devido a seu bom comportamento, o lutador cumpre apenas metade da pena e, em março de 1995, é posto em liberdade.
O julgamento de Mike Tyson, como não poderia deixar de ser, causa um enorme furor em todo o mundo. Tyson e Desiree são negros. Tyson é o esportista de maior renome mundial, um dos maiores ícones da história do boxe e um self-made man milionário. Desiree é uma jovem negra, estudiosa e sonhadora de quem, até então, jamais se ouvira falar. Tyson e sua defesa alegam que houve uma ampla perseguição ao lutador. Que teria havido racismo, que a fama de Tyson sobre a voracidade com as fãs e sobre as (supostas) agressões à sua ex-esposa teriam sido veiculadas de forma tão reiterada e acintosa que as versões já teriam se transformado em “fatos”. (Habitué do show business, Tyson já deveria saber que a grande mídia é ainda mais volúvel do que a massa de seus seguidores.)
É um trágico e lamentável fato histórico que o racismo nos Estados Unidos tenha impregnado a aura dos negros com o ideário da sexualidade desenfreada – e violenta. (No Brasil, a brutalidade que se mascara de cordialidade já chegou a batizar a telenovela Da cor do pecado com o mesmo ideário da “besta sexual”.) Mas, nesse caso, a jovem negra Desiree Washington também poderia afirmar ter sido vítima de uma onda avassaladora de racismo e machismo, a velha combinação que acomete um número descomunal de mulheres negras.
Se quisermos ser lenientes, devemos dizer que a linha de argumentação da defesa de Tyson é, no mínimo, dúbia. Em primeiro lugar, a defesa insiste no furor que todas e cada uma das competidoras do Miss Black America haviam demonstrado diante da presença de Mike Tyson. Ora, e poderia ter sido diferente? Tyson é um herói – e um herói negro em meio à competição que escolherá a mais bela afro-americana. Em segundo lugar, a defesa afirma que Desiree Washington não poderia alegar ingenuidade ao aceitar um convite de Tyson ao redor das 2 horas da madrugada. Afinal, ela sabia ou não sabia o que estava fazendo? O advogado prossegue: se você tem um Rolex e está num bairro perigoso, você esconde o Rolex e, certamente, não entra em vielas duvidosas. Quem toma um atalho não iluminado portando um Rolex o faz por sua própria conta e risco. Ora, tal argumentação insinua que a possível vítima – ou pior, a “lasciva” e, portanto, a “culpada” – é que teria lançado mão de um dolo eventual, isto é, Desiree é que teria assumido os riscos de sair com a fera Mike Tyson àquela hora. [A vulgaridade mercantil do capitalismo norte-americano sequer titubeia ao associar o Rolex à vagina e o banditismo ao desejo sexual de Tyson. (Um membro da Klu Klux Klan teria o maior prazer em arrematar a arguição do advogado de defesa: “Afinal, essa prática é comum aos negros em suas tocas, é tudo muito rude e selvagem”.)]
Suponhamos que Desiree Washington tenha calculado que ser vista em uma festa repleta de celebridades ao lado de Mike Tyson pudesse impulsionar sua carreira. Se Desiree chegou a pensar dessa forma, em que tal raciocínio rente à lógica do show business é diferente da estratégia de marketing que sempre administrou a carreira de Tyson? O boxeador, por sua vez, não impulsionaria sua imagem viril ao aparecer com uma bela acompanhante à (suposta) festa? Ora, mas nós sabemos que Eva Desiree Washington é covardemente associada a uma antiquíssima tradição de misoginia que faz com que as mulheres precisem responder a questões que jamais são feitas aos homens.
Suponhamos que tenha passado pela cabeça de Desiree que o (suposto) fato de Mike Tyson ter esquecido algo em seu quarto de hotel poderia ser uma desculpa do lutador para atraí-la até lá. Ora, Desiree também poderia ter pensado que um ídolo mundial jamais a forçaria a fazer algo contra a sua vontade, por mais que ele a desejasse. Por que as dezenas de cultos e celebrações das comunidades protestantes e islâmicas a favor de Mike Tyson não consideraram plausível tal argumento? E por que não houve cultos ou celebrações a favor de Desiree?
Não se trata de re-condenar ou inocentar Tyson. Sua história de vida – ou pior, sua ficha criminal – de fato tende a ser manipulada para condená-lo a priori. (Imaginemos o campeoníssimo negro Mike Tyson novamente sentado no banco dos réus como dirty Mike diante dos juízes togados de sua juventude.) Mas o racismo que coloca Tyson contra as cordas empareda a mulher, negra, “lasciva” e “oportunista” Desiree Washington com ainda mais violência. Se Tyson também alega ter sido vítima da militância feminista, é possível dizer que dezenas de milhares de mulheres são estupradas todos os anos sem que haja a necessidade de qualquer militância para (re)produzir tal opressão.
Culpado e/ou inocente, Mike Tyson, após três anos de reclusão, volta aos ringues. O homem de aço vence 4 lutas, sendo 3 delas por nocaute e 1 por desqualificação do adversário. A vitória por nocaute contra o britânico Frank Bruno, em março de 1996, lhe devolve o cinturão de campeão. 6 meses depois, o Iron Man precisa defender o título de campeão mundial dos pesos pesados diante do desafiante Evander Holyfield.
No dia 09 de setembro de 1996, os dois pugilistas se defrontam em Las Vegas. Ao final do 10º round, uma sequência duríssima de golpes bem aplicados por Holyfield só não leva Tyson à lona porque o gongo o salva. Porém, assim que tem início o 11º round, Evander volta à carga e, aos 37 segundos, o árbitro interrompe Holyfield e enlaça Tyson para decretar o nocaute e alçar Evander Holyfield à condição de mais novo campeão mundial dos pesos pesados.
Las Vegas, 28 de junho de 1997: nove meses gestam a revanche pela qual Tyson tanto esperou. Considerada a luta do século, a revanche entrou para a história do boxe (e do show business). A massa vibra e delira, Tyson abre o terceiro round com uma bela sequência de golpes – reclamações de que Holyfield lhe estaria dando cabeçadas durante os clinches, coisa de que Tyson já reclamara na primeira luta, continuam –, até que, em mais um clinche, Mike abocanha a orelha direita de Holyfield. O lutador pula de dor e raiva, a orelha mutilada jorra sangue, mas a bolsa de apostas ao redor do mundo tem mais peso do que o fair play. A luta continua após uma breve interrupção – quiçá para que os juízes reavaliem suas próprias apostas e para que a ferida auricular de Holyfield seja estancada. Afinal, regras são regras: milhões de dólares não podem ser desqualificados, mas a vítima com a orelha rasgada só poderá voltar a lutar se não estiver sangrando. (Enquanto isso, a câmera dá um close no vampiro Mike Tyson a lamber o sangue nos lábios.) O terceiro round recomeça. Para que a orelha direita de Holyfield não se sinta privilegiada, a segunda mordida de Tyson rasga a orelha esquerda – ainda assim, o árbitro não para a luta, e os pugilistas continuam a trocar socos. Quando o gongo soa, a luta, finalmente, é interrompida, e Mike Tyson é desqualificado. Let’s be reasonable, gentlemen, ‘cause nós não estamos em nossas colônias. Aqui não é o Terceiro Mundo, não é possível tolerar que uma luta valendo o título mundial dos pesos pesados se transforme em uma rinha de cães.
Pouco tempo depois, a assessoria de imprensa de Evander Holyfield anuncia que o lutador estará presente em grande estilo – e com as orelhas redesenhadas pelo cubismo de Mike Tyson – para o lançamento mundial de suas orelhas de chocolate, em Las Vegas.
15 anos após a luta do século, Evander Holyfield e Mike Tyson, friends with benefits, relembram (e renegociam) a fome auricular do Iron Man. Às 04:53 do dia 29 de junho de 2012, em sua conta no Twitter, (a assessoria de imprensa de) Evander Holyfield afirma que seu molho de churrasco Real Deal Barbecue Sauce will make you wanna take a bite out of someone’s ear! Ask @MikeTyson – Love you, brother! (2.079 retweets; 263 curtiram.) Menos de 5 horas e milhares de retweets e curtidas depois, às 09:35, em sua conta no Twitter, (a assessoria de imprensa de) Mike Tyson paga o carinho com a mesma moeda e afirma que @holyfield’s ear would have been much better with this new BBQ [barbecue] sauce. Check it out. (11.574 retweets; 2.028 curtiram.) Em fevereiro de 2017, a condenação de Mike Tyson por estupro fará 25 anos. Será que haverá sondagens empresariais para a confecção de genitálias de chocolate?
Em agosto de 2003, após vários anos seguidos de colapsos financeiros, Tyson declara falência. Dirty Mike incinerou uma fortuna estimada em US$ 400.000.000,00. Os bem-nascidos não entendem como um trombadinha do gueto que consegue amealhar tamanha fortuna não a protege, amamenta e acalenta como a mãe que protege os filhotes. Quem recebeu leite com pêra, ações e indolência pelo cordão umbilical não consegue contabilizar o dinheiro senão como um fim em si mesmo: crescei e multiplicai-vos. Para Mike Tyson, no entanto, o dinheiro deve estancar e remodelar o tempo. O dinheiro deve contratar um matador de aluguel para vingar a mãe de dirty Mike enquanto ele ainda não é Tyson. O dinheiro deve parir a mãe de Mike em cada uma de suas amantes. O dinheiro deve convencer seu pai a assistir às lutas. O dinheiro deve ressuscitar e adotar Cus D’Amato. O dinheiro deve indenizar Michael Gerard Tyson por ter nascido. O dinheiro deve empilhar mansões, iates, carros e mulheres, desnecessariamente nessa ordem, sobre o porão da memória. O dinheiro deve desacorrentar o buldogue. O dinheiro deve levar o buldogue para passear. O dinheiro deve caçar o pai de Mike e contratá-lo como guarda-costas de Tyson. O dinheiro não deve se lembrar. O dinheiro deve impermeabilizar o porão da memória. O dinheiro deve implodir os prédios abandonados do gueto do Brooklyn. O dinheiro deve contratar todas as pombas como mensageiras. O dinheiro deve esquecer. O dinheiro deve ser companheiro. O dinheiro deve ter companheiras. O dinheiro não deve chorar.
Em 2005, uma exposição de fotos no Instituto Goethe, em São Paulo, trazia uma fotografia de Diego Armando Maradona que bem poderia ter sido tirada por Mike Tyson. Em 1986, na Copa do Mundo que deu à Argentina o bicampeonato mundial e consagrou Maradona como um dos maiores jogadores da história do futebol, o fotógrafo estanca o momento em que o camisa 10, de costas para a câmera, acena para a torcida alucinada – Maradona acabara de fazer um gol antológico contra a Inglaterra no jogo válido pelas quartas de final. O meia conduz a bola como um corisco desde a intermediária e dribla meio time adversário até passar pelo goleiro e disparar a bola rumo ao fundo das redes inglesas como um míssil a vingar a derrota argentina na Guerra das Malvinas quatro anos antes. Torcedores e torcedoras do mundo inteiro ovacionam Maradona, o gênio baixote é elevado à altura da Torre de Babel. No primeiro plano da foto, o gigantismo da camisa 10 de Maradona contrasta com o anonimato colorido dos torcedores ao fundo. Maradona ergue o punho direito como se sua mão contivesse o mundo. (Se o leitor e a leitora, neste momento, fossem Diego Armando Maradona ou Mike Tyson, vocês quereriam que tal glória passasse?)
O dinheiro deve estancar o tempo. O que é que o melhor do mundo ainda tem a desejar? Quando se é o melhor do mundo, é preciso ser eterno – é preciso ser eternamente o melhor. O dinheiro deve moldar o tempo. O dinheiro deve insuflar as aspirarões. O dinheiro deve aspirar cocaína. Como o melhor do mundo não será eternamente o melhor, Tyson e Maradona passam a ter inveja de si mesmos. O gueto traz o passado de vergonha e humilhações, o reinado traz a glória que já vai passar. O melhor do mundo não pode envelhecer. O melhor do mundo não pode perecer. Ao cavalgarem a cocaína, Tyson e Maradona esculpem suas estátuas em templos imperecíveis. O melhor do mundo odeia tudo aquilo que perece. O melhor do mundo, ao se tornar o melhor do mundo, já odeia a si mesmo. Ao cavalgarem a cocaína, Tyson e Maradona nocauteiam a si mesmos.
O dinheiro deve curar o gueto – mas, por si só, o dinheiro nada consegue cicatrizar. O dinheiro pode transformar a reconciliação do gueto em filme – mas não em vida. Tyson incinera seu império, Tyson incinera sua fortuna, Tyson vai à falência – Mike não quer mais se lembrar, Mike quer explodir, Mike quer voltar para o Brooklyn. Tudo o que perde merece perecer. Tudo o que não cicatriza merece perecer. Tudo o que regurgita merece perecer. Tudo o que sobrevive merece perecer. Tudo o que sobrepuja merece perecer. Tudo o que vence merece perecer. Os socos de Tyson quebram a harmonia dos ossos, os golpes aceleram a putrefação. Tyson são os escombros após o bombardeio, Mike é o ímpeto redivivo da plantação após o incêndio. Tyson é a incineração, o vento que espraia o pó – o pó branco sobre a pele negra –, Mike é o vento que espraia o pólen. Iron Mike Tyson é a fusão do aço. Para Mike, tudo o que perece ainda merece existir. Para Mike Tyson, tudo o que existe merece perecer.
Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa junto à Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, no prelo), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012). Escreve, periodicamente, para o caderno literário Aliás, do jornal O Estado de S. Paulo.
Página na internet: Portal Heráclito – www.portalheraclito.com.br.